Oliver Sacks, neurologista que virou referência mundial, mentiu sobre pacientes e inventou casos

Oliver Sacks

Oliver Sacks, um dos neurologistas mais famosos do mundo e ícone da chamada medicina narrativa, construiu parte de sua reputação sobre relatos clínicos que não correspondiam à realidade de seus pacientes.

Diários pessoais e documentos privados revelados após sua morte mostram que o médico britânico, celebrado por livros como “Enxaqueca”, “Tempo de despertar” e “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”, admitiu ter exagerado, romanceado e até fabricado trechos de histórias para transformá-las em espécie de autobiografia disfarçada.

Segundo a revista New Yorker, ele admitiu que atribuía a seus pacientes “alguns dos meus próprios poderes e fantasias” e que produzia “versões simbólicas de mim mesmo” por meio deles.

Sacks ganhou status de celebridade com o filme “Tempo de despertar”, de 1990, estrelado por Robin Williams (no papel do médico) e Robert De Niro (como Leonard L., o paciente). O filme e o livro narram a história “real” de pacientes que ficaram em estado catatônico por décadas devido a uma epidemia de encefalite letárgica e foram “despertados” por uma nova droga, mostrando a beleza e a dificuldade dessa redescoberta da vida. 

Os casos descritos em “Tempo de despertar” e “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” são os exemplos mais críticos. O paciente chamado Leonard L., retratado como um intelectual solitário e quase assexuado antes da doença, deixou um manuscrito em que falava de adolescência com amigos, experiências sexuais e episódios de violência que desapareceram na versão do médico, substituídos por uma figura idealizada, “o paciente perfeito”.

Já a personagem Rebecca, apresentada no livro como alguém que, depois da morte da avó, encontra força criativa, entra para um grupo de teatro e renasce emocionalmente, continuava, nos registros reais, deprimida, insegura e sem qualquer trajetória de “florescimento artístico”. Em outro capítulo, sobre gêmeos autistas que supostamente trocariam entre si longas sequências de números primos, não há comprovação independente de que eles tivessem a capacidade matemática descrita.

Nos bastidores, Sacks se debateu com a dimensão ética dessas escolhas. Em anotações, dizia sentir “culpa severa e duradoura” e reconhecia que algumas descrições eram “pura fabricação”, ainda que alegasse uma intenção “mais profunda” do que buscar fama. Ele via seus livros menos como registro técnico e mais como um tipo de “autobiografia externa”, em que projetava conflitos pessoais – entre eles a homossexualidade reprimida, a relação traumática com a mãe e décadas de solidão afetiva – sobre a vida de doentes internados em hospitais públicos e praticamente esquecidos.

O próprio escritor reconhecia o risco de ultrapassar o limite entre empatia e apropriação e chegou a se perguntar, sobre sua prática de incentivar pacientes a viverem a doença “com máxima intensidade” para depois descrevê-la, se isso não seria “monstruoso”.

A revelação desses bastidores lança nova luz sobre o impacto de Sacks na formação de médicos e na consolidação da medicina narrativa, corrente que defende a escuta profunda e a reconstrução de histórias de vida como parte do tratamento. Seus livros passaram a ser adotados em faculdades e ajudaram a fixar a figura do “médico humanista” capaz de “ver a genialidade da doença”.

Ao mesmo tempo, os registros póstumos mostram que boa parte dessas narrativas foi filtrada por angústias e desejos do próprio autor, levantando dúvidas sobre até que ponto ele de fato “deu voz” aos pacientes – ou se, muitas vezes, falou por eles, moldando suas vidas reais à imagem do enredo que queria contar.

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