do Substack: Amanhã não existe ainda

Óleo sobre Tesla

por Luis Felipe Miguel

A ficção meritocrática é, hoje, o principal dispositivo ideológico para legitimar as desigualdades sociais. Elas não seriam injustas; seriam o reflexo dos diferenciais de mérito entre os indivíduos. Os mais talentosos, os mais inteligentes e os que se esforçam mais ficam com as melhores posições, exercem mais poder, ganham mais – quem pode reclamar disso?

O subtexto é que, em um mundo em que todo mundo quer dinheiro, quem fica rico mostrou ser mais competente. Não vem de hoje; John Locke, no século XVII, já pensava que o trabalhador provava sua racionalidade inferior pelo simples fato de não conseguir se tornar proprietário, o que justificaria sua exclusão da cidadania ativa (ao lado de outros seres humanos menos racionais, como crianças e mulheres).

Existem muitas maneiras de refutar o discurso da meritocracia. É possível observar que as condições de largada estão muito longe de ser equitativas. Por exemplo, o estudante que tem que trabalhar, além de frequentar as aulas, tem o dobro do desgaste para ter a metade do desempenho daquele que não precisa se preocupar com o próprio sustento. Só muita má fé impede de reconhecer isso. Se precisar desenhar, já está desenhado: não me canso de recomendar o quadrinho de Toby Morris sobre o tema.

Ou podemos lembrar que nenhuma diferença natural entre talentos chega perto do abismo que, nas sociedades humanas, separa os muito pobres dos muitos ricos. Entre uma pessoa forte e outra fraca pode ter muita diferença, mas não as – literalmente –milhões de vezes, que é o resultado da conta quando dividimos o patrimônio de um Jorge Paulo Lemman pelo de um trabalhador de salário mínimo. Aliás, Jean-Jacques Rousseau liquidou esta questão já no século XVIII, no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.

Ou, então, podemos apontar que a maior parte da desigualdade existente é devida ao acaso, sobretudo à loteria do nascimento. A correlação entre ser rico ou pobre e nascer em família rica ou pobre é, como todos sabemos, espantosa. Se alguém acha que é uma carga genética superior que foi transmitida dos pais para a prole, sugiro que entre em contato com o “pensamento vivo” dos herdeiros que andam por aí – servem os vídeos do Jorginho Guinle no TikTok ou os artigos de Hélio Beltrão filho, tanto faz.

Também é possível dizer que o foco no mérito e na competição interpessoal exila o compromisso com nossa humanidade comum e a solidariedade com nossos semelhantes. Ou que nenhum talento, por maior que seja, pode frutificar na ausência da cooperação com outras pessoas; logo, não existe justiça sem solidariedade.

Ou ainda, com uma pegada um pouco mais filosófica, que não existe mérito em ter mérito: ser mais inteligente, mais determinado ou mais produtivo é, também, uma característica devida ao acaso, à loteria genética. Se aprendemos (felizmente) que não podemos punir ninguém por nascido com uma deficiência, a coerência nos obriga a reconhecer que não é justo premiar alguém por ser dotado de talentos extraordinários, exceto na medida em que esses talentos beneficiem a todos. Aqui, podemos voltar a Rousseau, mas outra opção é ler um autor liberal esclarecido do século XX, John Rawls.

São todos caminhos eficazes para demonstrar que a meritocracia é uma farsa. Outro caminho é olhar para Elon Musk. Ele é o homem mais rico do mundo, com uma fortuna beirando os 400 bilhões de dólares – sim, alguns trilhões de reais.

Sabe o prêmio acumulado da loteria, de R$ 50 milhões, com que você está sonhando? Pois Musk pode gastar esse dinheiro todos os dias, por bem mais de um século, antes que sua fortuna acabe.

Mas, espera aí: é esse sujeito que a meritocracia premia?

Um camarada que paga para outros jogarem por ele, para que possa posar de mestre do videogame? Que aparece chapado nas reuniões do conselho de suas empresas? Que se dispõe a colocar seus negócios em risco para poder lançar um tuíte malcriado? Que acredita que Donald Trump vai salvar os Estados Unidos? Que passou dos 50 anos de idade mas continua lendo o mundo a partir de gibis de super-herói, até onde se saiba sua única dieta intelectual? Que sonha com esposas reborn porque não consegue lidar com mulheres de verdade? Que insiste em iniciativas que já sabe que vão dar errado e se associa repetidamente a fiascos garantidos, como robôs dançantes e a eterna promessa do carro autônomo “no ano que vem”? Que comprou uma grande empresa de tecnologia, o Twitter, e demitiu quase todo mundo “para cortar gastos” e depois teve que lidar com o fato de que tudo estava entrando em pane?

À frente do Departamento de Eficiência Governamental de Trump, Musk desenvolveu uma atividade destrutiva, a todo vapor. Ele mesmo confessou que a meta declarada, diminuir o gasto público, não foi alcançada. Mas a revogação das regulações, a promoção da incivilidade, estes objetivos ocultos foram muito bem, obrigado.

Com as empresas sofrendo baques, Musk largou o cargo. Mas não foi só a posição de czar efêmero do governo Trump. Ele marcou suas empresas à medida que se afirmou mais e mais como líder do neofascismo mundial.

A mais emblemática delas, a Tesla, vive uma contradição. É uma montadora de veículos elétricos, isto é, seu marketing diz que ela contribui para salvar o planeta. (Não é verdade, o planeta não tem como ser salvo sob o império do automóvel particular, mas essa é outra discussão.) Só que a extrema-direita à qual o empresário sul-africano se alinha insiste que salvar o planeta é coisa de comunistas e de maricas; o cidadão de bem queima combustível fóssil.

Os clientes reais e potenciais da Tesla, assim, se concentram na oposição ao trumpismo. Na Europa, as vendas têm despencado. Seria possível apontar a concorrência dos elétricos chineses, mais baratos e eficientes, mas eles ainda enfrentam a desconfiança dos consumidores locais – ainda assim, a BYD já se tornou a marca mais vendida.

Os problemas da Tesla começaram desde que Musk decidiu participar de eventos da extrema-direita europeia, incluindo comícios dos neonazistas alemães do Alternative für Deutschland, e do governo Trump.

Já nos Estados Unidos, cresce a pressão para que os proprietários se desfaçam de seus Teslas. Algumas lojas da marca foram vandalizadas e o governo Trump anunciou que ataques à montadora de Musk serão classificados como terrorismo doméstico.

Às vezes, os automóveis aparecem pichados com suásticas. O Sensacionalista cravou: “Óleo sobre Tesla”.

Eu curti. Tenho um ódio profundo pelos automóveis da Tesla – por seu marketing ambientalista desonesto, por suas maçanetas metidas a futuristas que mordem os dedos dos usuários, por seus bancos igualmente metidos a futuristas e terrivelmente desconfortáveis, pelo hábito que têm de pegar fogo sem razão aparente.

Então, eu ri diante da foto dos carros pichados e também da boa sacada do Sensacionalista. Fiquei pensando o que o avô de Musk, aquele que fugiu do Canadá para a África do Sul depois que seu movimento pró-nazista foi posto na ilegalidade, pensaria do fato.

Coisas do carma.

Mas, parando para pensar, há uma questão ética envolvida aí.

Vivemos numa sociedade que empurra as pessoas para a aquisição de veículos privados. Em boa parte das cidades do mundo, com sistemas de transporte coletivo insuficientes e sucateados, quem tem algum dinheiro precisa de muita força de vontade para não adquirir um carro.

Ao mesmo tempo, como todos nós sabemos, não existe grande corporação boa – todas elas exploram ao máximo a mão-de-obra, fraudam impostos e legislação ambiental, corrompem políticos, apoiam regimes autoritários, financiam desinformação. Puxando pelo fio de suas cadeias produtivas, fatalmente chegamos a trabalho infantil, trabalho em condições de escravidão, desastres ambientais.

Não é impressão. Faz uns anos, tive em mãos o relatório de uma ONG que analisava as 500 (acho que eram 500) maiores corporações globais. Analisava quanto a condições de trabalho, exploração do trabalho infantil, proteção ambiental, transparência na relação com o consumidor, direitos humanos, corrupção de agentes públicos, subversão da ordem democrática. Vários quesitos, envolvendo as empresas, suas subsidiárias e a cadeia produtiva por elas induzida. O resultado é fácil de ser resumido: todas as corporações foram reprovadas em todos os quesitos.

Volkswagen, Chevrolet, Ford, BYD, Toyota, Fiat, não importa. São todas assim. A Tesla não é diferente. Só tem um dono mais sem noção.

O consumidor não tem como ser responsável pelas escolhas das empresas. Caso contrário, teríamos que abandonar todos, literalmente todos, os confortos da civilização. Enquanto o capitalismo subsistir, lamento dizer, será assim.

Você gostaria de que alguém pichasse seu Gol ou seu Polo em protesto contra a Volkswagen, que apoiou o nazismo, apoiou a ditadura militar no Brasil, cria softwares para mascarar o quanto polui e ainda por cima vilipendiou a memória de Elis Regina com aquele anúncio grotesco gerado por inteligência artificial?

Imagino que não.

Outra coisa é o boicote relacionado a vendas futuras, que no caso da Tesla tem ocorrido de forma quase espontânea. Boicote de consumidor é uma coisa difícil de dar certo, como sabe quem quer que tenha estudado o dilema do prisioneiro (modelo clássico usado para indicar os problemas da coordenação da ação entre agentes não hierarquizados). Mas, quando é adotado por uma fatia expressiva de pessoas, ainda que esta fatia seja bem minoritária, as empresas sentem.

Sim, as outras são iguais ou quase. Mas todas pensam (ou deveriam pensar): e se nós formos as próximas?

Que o diga o MacDonald’s, hoje, fechando lojas pelo mundo árabe inteiro. Eu mesmo tenho minha lista – empresas indicadas pelo movimento BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções) como cúmplices do genocídio do povo palestino, como Carrefour e o próprio MacDonald’s; Nike, pelas condições de produção no Sudeste asiático; Zara, pelo racismo; Ypê, pelo bolsonarismo… Não é grande coisa, talvez seja mais uma forma de acreditar que estou fazendo algo.

Nem por isso eu acharia bacana se alguém viesse rasgar uma camiseta que no passado comprei em algum desses lugares, em nome de algum ativismo. É preciso ter um pouco de bom senso.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

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Last Update: 06/06/2025