O zoo humano. I. Incesto, aborto, a falsa luta pró-vida e os perigos da consanguinidade.

por Felipe A. P. L. Costa [*].

APRESENTAÇÃO. – O incesto, o aborto e o filicídio são fenômenos naturais. São também problemas que atormentam e assombram mentes e corações. Tormentos e assombros esses que costumam ser explorados por gente oportunista. São explorados também por organizações criminosas, sobretudo seitas obscurantistas e partidos políticos de extrema direita. Em todos esses casos, o tripé tolerar o incesto, criminalizar o aborto e ignorar o filicídio é benquisto, seja como ideário pessoal, seja como agenda política [1]. Este artigo adota a premissa de que o incesto, o aborto e o filicídio são problemas graves e sensíveis, diante dos quais todo e qualquer observador deve manter uma postura séria e crítica. O artigo tem dois objetivos: (i) expor algumas conexões (efetivas ou suspeitas) entre os problemas abordados; e (ii) chamar a atenção para certas inconsistências ou incongruências argumentativas que povoam o debate público sobre o aborto, mesmo quando o debate conta com a participação de renomados especialistas (e.g., médicos, psicólogos, juristas e autoridades religiosas). Para fins de publicação, o artigo foi dividido em dois. Esta é a parte I. O filicídio, entendido como o ato de alguém matar os próprios filhos [2], será o tema da parte II.

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1. A CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO.

Dos três problemas examinados neste artigo (partes I e II), o incesto talvez seja o mais democrático deles [3]. Afinal, trata-se de algo universal: a ocorrência de incestos não se restringe a vilarejos isolados ou a comunidades rurais, assim como não se restringe a segmentos sociais específicos. A rigor, o problema assombra tanto as famílias que vivem em grotões remotos como as que vivem em coberturas luxuosas à beira-mar.

Trocando em miúdos, o incesto atinge tanto os grã-finos como os pés-rapados, tanto os patrões como os empregados, tanto os que usam o elevador social como os que usam o elevador de serviço. Há eletricistas, garis e pedreiros incestuosos, assim como há artistas, banqueiros, cientistas, juízes, médicos, militares e professores incestuosos.

1.1. Incesto não é sinônimo de estupro.

O incesto não deve ser confundido com estupro, ainda que os dois às vezes se sobreponham. A definição de incesto leva em conta o grau de parentesco entre os envolvidos. A definição de estupro está assentada na assimetria da relação: a vítima é coagida a agir de acordo com as vontades de um violentador, em geral um homem. Estupro pode ou não envolver uma relação incestuosa.

Outra diferença importante tem a ver com a identidade sexual dos envolvidos. O incesto costuma ser entendido como a efetivação de uma cópula (para fins reprodutivos ou não) entre indivíduos intimamente aparentados e, claro, de sexos diferentes (e.g., pai e filha). A definição de estupro independe não só do grau de parentesco, mas também do sexo dos envolvidos.

1.2. Abusos e abusadores.

Todavia, ao contrário do que imaginam alguns, o incesto não envolve apenas pais e filhas. Longe disso. Várias outras combinações ocorrem com bastante frequência, como tios(as) e sobrinhas(os), irmãos e irmãs (e.g., Babchishin et al. 2024).

A quantidade de casos a envolver mães e filhos também é expressiva. E estamos a falar de mães que eram mentalmente sadias à época do ocorrido (digo: a maioria delas não era portadora de distúrbios mentais graves). Nos Estados Unidos, por exemplo, levantamentos recentes indicam que de todas as crianças vítimas de abuso sexual, 5% das meninas e 20% dos meninos foram vítimas de ataques promovidos por mulheres [4]. Resultados parecidos têm sido obtidos em outros países.

Abusos deixam sequelas profundas e duradouras. Quando as vítimas são mulheres, especificamente, há impactos previsíveis na vida futura delas. Por exemplo, mulheres que sofrem abusos sexuais [5] na infância (<12 anos de idade) têm duas vezes mais chances de engravidar na adolescência (12-20 anos) do que aquelas que não passaram pela mesma experiência traumática.

Nas palavras de Hillis et al. (2004, p. 325; trad. livre):

“O envolvimento em atividades sexuais precoces e desprotegidas, que levam à gravidez na adolescência, pode representar uma tentativa equivocada de obter alguma conexão interpessoal, apoio e esperança, que estiveram ausentes no [início da vida] de quem foi exposto a [experiências adversas na infância].”

As sequelas são ainda mais angustiantes e dramáticas quando o abusador está dentro de casa.

1.3. Famílias incestuosas.

Na opinião de alguns estudiosos, o problema do incesto não se resume à psicologia do abusador. De fato, para entendermos melhor o que se passa, deveríamos investigar também o contexto familiar. Maddock & Larson (1995) tentaram caracterizar as diferentes famílias incestuosas. Segundo eles, é possível falar em ao menos quatro tipos de incesto: afetivo, erótico, agressivo e raivoso.

O incesto afetivo tipicamente ocorre em famílias com pouco ou nenhum calor humano; a criança, visando muitas vezes suprir suas carências afetivas, sucumbe a certas armadilhas. No convívio fora de casa, o pai incestuoso costuma ser visto como um sujeito normal, um cidadão de bem. De todos os casos registrados de incesto, mais da metade estaria concentrada nesta categoria. O incesto erótico é quase que o oposto, pois em geral ocorre em ambientes muito erotizados. Os limites são frágeis ou imperceptíveis; a nudez dentro de casa é tolerada. Mães incestuosas estão concentradas nesta categoria. O incesto agressivo envolve coação ou mesmo agressão física; o abuso sexual é visto como um tipo de punição ou lição que o pai impõe à filha. É o segundo tipo mais comum. Por fim, temos o incesto raivoso – é o mais intempestivo e violento de todos (e, por isso mesmo, talvez seja o que perdura menos tempo); o ataque costuma resultar em vítimas machucadas; assassinatos não são raros.

1.4. Medo, vergonha e a dupla face dos abusadores.

Além de sensível, o assunto ainda é nebuloso; as estatísticas ainda são precárias e, ao que tudo indica, ainda há muitas subestimativas. É compreensível: medo e vergonha tendem a fazer com que as vítimas se mantenham em silêncio e não busquem ajuda. Nas últimas duas ou três décadas, porém, algumas novidades vieram à tona. O suficiente para se descobrir que o fenômeno é bem mais comum do que até então se imaginava. Nos últimos anos, especificamente, graças à crescente popularização do sequenciamento genômico, muita gente descobriu que é filho do incesto [6].

Muitos frutos do incesto, porém, ainda estão debaixo do tapete ou atrás da cortina. Há ao menos dois motivos para isso. Um deles seriam as paternidades não assumidas – e.g., consumada a gravidez, os abusadores simplesmente fogem. O outro seriam os abortos induzidos (digo: muitos frutos são abortados).

Considere a seguinte questão: qual deve ser a reação de um pai ao descobrir que engravidou a própria filha? Não vamos nos aprofundar nessa discussão, mas podemos especular um pouco. Em primeiro lugar, presumo que muitos abusadores sejam indivíduos de dupla personalidade: o mesmo sujeito que é um homem de bem no trabalho e na rua, converte-se em uma besta-fera quando está com os filhos pequenos, dentro de casa. Em segundo lugar, quando confrontados, os abusadores tendem a negar o que fizeram. Seja de modo falacioso, negando qualquer envolvimento com a gravidez da filha, seja induzindo a filha a abortar – “Não se preocupe, querida, vai dar tudo certo!

1.5. Normas sociais como meios-termos.

Chegamos então a uma encruzilhada. De um lado, temos a trilha do interesse individual imediato; de outro, temos a trilha dos interesses sociais mais duradouros. Na primeira trilha, temos um abusador (patológico ou não) em busca de satisfação sexual; na segunda, temos a noção de que o incesto é um beco sem saída reprodutivo. (A endogamia, como nós veremos a seguir, leva à ruína genética – e.g., malformações e perda de variabilidade genética – e à extinção de grupos.)

Historicamente, a resolução do conflito satisfação imediata do indivíduo vs. persistência prolongada do grupo se deu por meio da adoção de normas e convenções sociais. No que têm de melhor, essas normas talvez possam ser vistas como um meio-termo entre o egocentrismo do indivíduo e a estabilidade do grupo. Esse meio-termo se desenvolveu ainda na pré-história, há milhares de gerações, de sorte que algumas condutas anti-incesto parecem estar enraizadas em nosso comportamento. Outras condutas são mais voláteis, do tipo que precisa ser reforçado a cada geração, seja por meio de ações educativas, seja por meio de ações repressivas. Razão pela qual, aliás, as crianças deveriam receber noções elementares de educação sexual já nos primeiros anos do ensino fundamental.

1.6. Quando o incesto e o abordo andam juntos.

Defendo aqui a hipótese de que indivíduos que praticam o incesto tendem também a promover o aborto, sobretudo quando a motivação do abusador não envolve fantasias ideológicas. Em se tratando de gente poderosa ou endinheirada, os abusadores não devem ter muito trabalho para convencer suas vítimas [7]. Pouco importa se as normas legais vigentes criminalizam ou não o aborto induzido.

Longe dos holofotes, eu diria que é mais ou menos isto o que se passa: (i) magnatas incestuosos levam a filha grávida para abortar em uma clínica no estrangeiro (os barões devem ir para a Europa, os novos ricos devem ir para a Flórida); e (ii) abusadores de classe média devem se contentar com uma clínica clandestina local – digo: em alguma capital ou em alguma cidade grande. (Em todos esses casos, abortar longe de casa pode ser um modo de atenuar os fuxicos e evitar maiores constrangimentos.)

1.7. Descriminalizar é a verdadeira opção pró-vida.

É neste ponto que a luta pró-descriminalização do aborto se torna uma luta a favor da vida, na contramão da ladainha que é apregoada por grupos obscurantistas.

Criminalizar o aborto, porém, ainda é a regra em muitas sociedades mundo afora. Trata-se, a rigor, de uma medida sabidamente ineficiente, além de covarde e letal. Primeiro, porque o aborto (legal ou ilegal) continua a ser praticado todos os dias, em todas as grandes cidades do mundo, com ou sem apoio médico [8]. Segundo, e o mais importante, porque a criminalização mata gente de verdade – estou a pensar em mulheres de carne e osso, não em fantasmas uterinos.

Não é difícil entender o que se passa (i) a criminalização do aborto favorece a proliferação de estabelecimentos clandestinos, muitos dos quais não atendem sequer as exigências para se abrir uma clínica veterinária; e (ii) criminalizar o aborto eleva a taxa de mortalidade de mulheres em idade reprodutiva, sobretudo nos segmentos mais pobres da sociedade; na impossibilidade de ir a uma clínica qualquer, mulheres desesperadas tentam elas próprias conduzir um autoaborto; costuma dar errado; e é assim que muitas delas perdem o útero, quando não a própria vida.

No Brasil, procedimentos clandestinos e inseguros provocam a morte de 39 mil mulheres a cada ano (Drezett & Kotzias 2025). É uma tragédia anunciada, mas é, sobretudo, uma vergonha para todos nós – afinal, estamos a falar de mortes perfeitamente evitáveis. Os responsáveis últimos por todas essas mortes têm nome e sobrenome, com destaque para fanáticos religiosos e parlamentares de extrema direita que fazem campanha pela criminalização do aborto.

O único resultado prático dessa política insana é promover a morte prematura de mulheres jovens. É uma política medieva, inquisitorial. Rotular essa política de pró-vida, como alguns insistem em fazer, é mais do que cinismo, é um verdadeiro sadismo. E é a cereja de um bolo cujos ingredientes principais são a preguiça e a malandragem.

2. ABORTO COMO FENÔMENO NATURAL.

Há dois tipos principais de aborto, os espontâneos e os induzidos. Os primeiros são comuns na natureza, tanto em animais como em plantas. A razão básica é quase sempre a mesma: trata-se do desenlace final de um processo de triagem por meio do qual o corpo da mãe está sempre a avaliar a qualidade do embrião que traz dentro de si. Em outras palavras, abortar não é uma falha, abortar faz parte de um processo ativo e deliberado de controle.

Veja, por exemplo, quão comum é encontrar sementes abortadas em frutos do barbatimão (leguminosas do gênero Stryphnodendron) [9]. O fenômeno, claro, não se restringe às leguminosas. Qualquer planta frutífera é capaz de abortar sementes dentro dos frutos, algo semelhante ao que as fêmeas mamíferas fazem ao abortar blastocistos recém-aninhados na parede do útero.

2.1. Por que o aborto espontâneo é tão comum?

A morte prematura do concepto humano é um fenômeno muito mais frequente do que o leitor imagina. Veja: ao menos 73% das concepções naturais não sobrevivem para além das seis primeiras semanas (Boklage 1990). Grosso modo, significa dizer que 73% dos embriões são abortados naturalmente [10]. Na maioria das vezes, nem a própria mulher se dá conta de que estava grávida e de que acabou de abortar. Dos 27% que ultrapassam a barreira das seis primeiras semanas, 90% conseguem sobreviver até o parto.

Mas o que provoca o aborto espontâneo? As incompatibilidades ou incongruências genéticas, incluindo aí as anomalias cromossômicas, talvez sejam a principal explicação. No que segue, porém, vamos nos concentrar apenas na ideia de incompatibilidade genética.

2.2. Alelos raros, recessivos e deletérios.

A incompatibilidade genética muitas vezes decorre do acasalamento entre indivíduos intimamente aparentados (e.g., irmãos, pais e filhos). Como foi dito antes, a endogamia tem ao menos dois impactos negativos, as malformações congênitas e a perda de variabilidade genética. Em termos estritamente genéticos, esses problemas decorrem do aumento que há na frequência de genótipos homozigotos. Mais homozigotos resultam em chances aumentadas de que alelos raros e recessivos se encontrem e se manifestem [11]. Como muitos desses alelos são deletérios, os genótipos homozigotos costumam resultar em taxas elevadas de aborto espontâneo ou malformações congênitas.

3. OS PERIGOS DA ENDOGAMIA.

Em termos populacionais, o confinamento reprodutivo em grupos pequenos inevitavelmente leva a uma depressão endogâmica – leia-se: declínio gradativo na aptidão média da prole [12]. Se a aptidão da prole é afetada negativamente, a própria endogamia passa a ser alvo da seleção. Em tais circunstâncias, todo e qualquer mecanismo que impeça ou dificulte o acasalamento entre parentes próximos será favorecido.

Em sociedades humanas, o mais alto grau de endogamia (ou consanguinidade) que habitualmente é tolerado é o casamento entre primos em primeiro grau. O risco aí já é expressivo. Veja: irmãos normais [13] têm em média 50% de alelos coincidentes (por ascendência); no caso de primos em primeiro grau, a coincidência cai para 12,5%. É menor, mas ainda é um percentual significativo e preocupante.

Embora a formação de casais consanguíneos (e.g., primos em primeiro grau) seja um fenômeno observado em todos os continentes, há muita variação de país para país. Algumas sociedades parecem ser não só tolerantes, mas até mesmo entusiastas desse tipo de arranjo. Não é bem o caso da sociedade brasileira. Mas é o caso de diversos países árabes (e.g., Arábia Saudita, Egito e Argélia); em alguns dos quais (e.g., Sudão, Mauritânia, Iêmen e Iraque), as uniões consanguíneas chegam a corresponder a mais de 50% dos casamentos [14]. Em todos esses casos, claro, há um preço a pagar pela consanguinidade – e.g., taxas elevadas de aborto espontâneo, mortalidade pós-natal e malformações congênitas.

3.1. Como evitar a endogamia?

Imagine, por um instante, o caso da prole gerada por um casal de irmãos. As chances de que dois alelos raros e deletérios se encontrem são de 50%. É um risco altíssimo, contra o qual, aliás, populações humanas já dispõem de defesas, tanto inatas (biologicamente enraizadas) como adquiridas (hábitos ou costumes culturais).

Um mecanismo de defesa inato seria a repulsa mútua que se desenvolve – via estampagem negativa [15] – entre meninos e meninas que são criados juntos. Visto que irmãos pequenos costumam ser criados juntos, o desenvolvimento de uma repulsa mútua seria um modo de evitar o desenvolvimento de uma atração sexual mútua entre as crianças, mesmo quando elas de fato não são parentes próximos [16].

Outro mecanismo enraizado em nossa biologia seria a dispersão juvenil, a tendência que os jovens manifestam (notadamente os machos) de abandonar a terra natal e ir fundar o seu próprio grupo do outro lado da montanha. As evidências indicam que esse mecanismo existe há milhares de gerações, não só em humanos, mas também em várias outras espécies de primatas que vivem em sociedades estáveis e estruturadas [17].

3.2. Por que almocei meu pai.

Para entender melhor a relevância desses mecanismos de defesas, caberia frisar que os nossos ancestrais pré-históricos viviam em grupos de caçadores-coletores relativamente pequenos (20-30 indivíduos). Algo semelhante se observa nos grupos atuais. Ora, como as chances de endogamia são inversamente proporcionais ao número de indivíduos presentes, a formação de pares consanguíneos deve ser a regra entre os caçadores-coletores. Curiosamente, porém, as evidências não mostram isso.

Por exemplo, Sikora et al. (2017) conduziram uma análise genética dos restos fósseis (datados de ~34 mil anos atrás) de alguns indivíduos que integravam um grupo de caçadores-coletores. À primeira vista, os resultados eram contraditórios. Por um lado, as evidências suportavam a ideia de que os fósseis vieram de um grupo pequeno, de tamanho comparável ao dos grupos atuais. Todavia, a variação genética era excessiva, incompatível com a ideia de que os fósseis seriam filhos da endogamia.

Os autores propuseram então a seguinte solução: embora vivessem em grupos pequenos, os caçadores-coletores de outrora participavam de uma dinâmica intergrupal que lhes permitia evitar a consanguinidade. Isso porque cada grupo local estaria imerso em uma rede de relacionamentos intergrupais. A dinâmica toda talvez pudesse ser resumida no intercâmbio de indivíduos em idade reprodutiva – e.g., o grupo A cede um macho para o grupo B que cede outro macho para C que cede um terceiro macho para A. Em grupos com 20-30 indivíduos, o intercâmbio de um único macho adulto a cada 4-6 anos já seria o suficiente para introduzir novidades genéticas e diluir o impacto homogeneizante da endogamia.

4. CODA.

Linhagens que não impuseram limites ao acasalamento entre parentes próximos provavelmente desapareceram muito cedo. Os grupos que conheciam e evitavam a endogamia devem ter desenvolvido práticas e hábitos culturais capazes de identificar e desestimular a formação de casais consanguíneos. Nesse contexto, uma invenção bastante valiosa pode ter sido a criação de um sistema de códigos (e.g., gestuais ou linguísticos) que servisse para identificar e descrever os elos entre os integrantes de um mesmo grupo – digo: o grau de parentesco entre todos eles. Todo mundo cresceria então sabendo do seu lugar no mundo [18].

Ao longo dos últimos 10 mil anos, diferentes sociedades agrícolas, em diferentes partes do mundo, desenvolveram barreiras culturais contra o incesto, notadamente hábitos e tradições que foram sendo transmitidos ao longo das gerações (e.g., tabu do incesto). O tabu do incesto é um traço cultural praticamente universal, embora as narrativas possam variar de uma sociedade para outra. O importante é que essas tradições sejam capazes de inibir a formação de casais consanguíneos. Em outras palavras, por mais elaboradas e abstratas que sejam as narrativas, a manutenção e o sucesso dos tabus dependem da efetividade biológica dos comportamentos que eles preconizam.

Nas sociedades modernas, a existência de práticas abortivas, ainda que clandestinas, pode estar a mexer nas rédeas impostas pelo tabu do incesto. Some-se a isso a xenofobia e o ultranacionalismo; teríamos então ao menos três ingredientes a trabalhar a favor da consanguinidade. Lembrando apenas que quanto mais intensa for a endogamia, mais ampla e rápida será a sua ruína genética de uma sociedade.

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NOTAS.

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[1] Os temas tratados neste artigo são graves e delicados; razões mais do que suficientes para que eles sejam seriamente discutidos em salas de aula. Nesse sentido, deixo aqui três sugestões de filmes que podem ajudar os professores na contextualização dos problemas, a saber: (i) sobre o incesto – Anjos e Insetos (Angels and Insects, 1995), dirigido por Philip Haas; (ii) sobre o abuso sexual – Eclipse Total (Dolores Claiborne, 1995), dirigido por Taylor Hackford; e, o mais importante dos três, (iii) sobre o aborto – Regras da Vida (The Cider House Rules, 1999), dirigido por Lasse Hallström.

[2] Como nós veremos na parte II, alguns tipos de filicídio, sobretudo o chamado neonaticídio (quando a vítima tem entre 1 e 28 dias de idade, a depender do autor – ver Abrahams et al. 2016), nada mais seriam do que um aborto tardio (e profundamente trágico). Para as mulheres brasileiras, o recado que a legislação antiaborto está a passar seria mais ou menos este: “em vez de remover do seu útero um blastocisto ou um embrião em desenvolvimento, livre-se do neonato”.

[3] Para detalhes, ver Butler (1979).

[4] Percentuais extraídos de Franco (2023). Abuso sexual não é sinônimo de incesto. De acordo com a Abrapia (2002, p. 8): “O abuso sexual é uma situação em que uma criança ou um adolescente é usado para gratificação sexual de um adulto ou mesmo de um adolescente mais velho, baseado em uma relação de poder que pode incluir desde carícias, manipulação da genitália, mama ou ânus, exploração sexual, ‘voyeurismo’, pornografia e exibicionismo, até o ato sexual com ou sem penetração, com ou sem violência.

[5] Para Noll et al. (2009), abusos sexuais são entendidos como experiências sexuais indesejáveis, incluindo investidas verbais explícitas, exposição a material pornográfico, toques íntimos e penetração. Embora esteja além dos objetivos deste artigo, vale registrar que diversos modelos já foram propostos para explicar como e por que o abuso sexual promove alterações psicossociais e como essas alterações tendem a alterar a trajetória de vida das vítimas – v., e.g., Briere (1992). O impacto negativo, porém, é ainda maior quando o abuso ocorre dentro de casa. Nas palavras de Hillis et al. (2004; trad. livre): “Uma proporção considerável dos participantes adultos que, na infância, sofreram ACEs [experiências adversas na infância, na sigla em inglês], anos depois descreveram suas vidas como assoladas por estresse elevado, raiva incontrolável e problemas sérios ou perturbadores com suas famílias, empregos e finanças. Descobrimos que essas sequelas psicossociais adversas, tão comumente tidas como relacionadas à gravidez na adolescência, parecem, na verdade, ser decorrentes da criação em famílias com ACEs difíceis. Quando o ambiente familiar não apresentava ACEs, engravidar na adolescência não aumentava a probabilidade dessas consequências psicossociais negativas a longo prazo.

[6] Ver, e.g., o artigo ‘DNA tests are uncovering the true prevalence of incest’, de Sarah Zhang, publicado na revista eletrônica The Atlantic, em 2024.

[7] A criminalização do aborto tem uma longa tradição. Como regra geral, no entanto, arrisco dizer que a intolerância e o rigor da lei seriam maiores naquelas sociedades cuja persistência estaria posta em risco por determinadas características demográficas.

[8] Em 2013, foram realizados em todo o país entre 687 mil e 865 mil abortos induzidos (Monteiro et al. 2015). Esses números já foram maiores, mas têm oscilado para baixo ao longo das últimas décadas. Entre 2004 e 2013, por exemplo, as estimativas caíram de 844.016-1.060.969 abortos (2004) para 687.734-865.160 abortos (2013). Ainda sobre a situação brasileira, eis o comentário de Cardoso et al. (2020, p. 1): “Embora os dados oficiais de saúde não permitam uma estimativa do número de abortos no país, foi possível traçar um perfil de mulheres em maior risco de óbito por aborto: as de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, e sem companheiro.

[9] Na linguagem coloquial, legume é uma palavra usada em alusão a uma ampla variedade de frutos diferentes, muitos dos quais não são propriamente legumes. De modo semelhante, a palavra vagem é usada em alusão ao fruto característico das leguminosas (feijão, soja, ervilha etc.). Em linguagem botânica, legume é um tipo de fruto simples encontrado apenas em espécies da família Fabaceae (leguminosas). A rigor, existem diferentes tipos de legumes – v. Barroso et al. (1999). Esses tipos incluem desde legumes secos e deiscentes, como ocorre em sibipiruna (espécies nativas do gênero Caesalpinia) e no flamboyant (espécie africana do gênero Delonix), árvores comumente usadas em plantios urbanos, até legumes carnosos e indeiscentes, como ocorre no barbatimão (espécies nativas do gênero Stryphnodendron) e no tamarindo (espécie africana do gênero Tamarindus).

[10] Como vimos em capítulo anterior, a gestação em humanos demora em média ~40 semanas. Embora seja um processo contínuo, faz-se uma distinção entre dois períodos, o embrionário e o fetal. O período embrionário cobre as primeiras oito semanas, enquanto o período fetal se estende pelas 32 semanas que vão do fim do período embrionário até o fim da gestação.

[11] Para detalhes, ver Crow & Kimura (1970); em port., Falconer (1981) e Hartl & Clark (2010).

[12] Além das referências citadas em [11], ver Boer et al. (2021).

[13] No caso de gêmeos univitelinos, esse percentual tende a 100%.

[14] Para detalhes, ver Tadmouri et al. (2009).

[15] Sobre o fenômeno da estampagem (ing., imprinting), ver, e.g., Dawkins (1989).

[16] Ver Shepher (1971); em port., Krebs & Davies (1996).

[17] Ver, e.g., Moore (1993); para uma instrutiva narrativa ficcional, Lewis (1993).

[18] Ver, e.g., Fortes (1975).

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REFERÊNCIAS CITADAS.

+ Abrahams, N & mais 5. 2016. Gender differences in homicide of neonates, infants, and children under 5 y in South Africa: Results from the cross-sectional 2009 National Child Homicide Study. PLoS Medicine 13: e1002003.

+ Abrapia. 2002. Abuso sexual contra crianças e adolescentes, 3ª ed. Petrópolis, Autores & Agentes & Associados.

+ Babchishin, KM & mais 4. 2024. Characteristics and risk factors for sibling incest. PLoS One 19: e0314550.

+ Barroso, GM & mais 3. 1999. Frutos e sementes. Viçosa, Editora UFV.

+ Boer RA & mais 3. 2021. Meta-analytic evidence that animals rarely avoid inbreeding. Nature Ecology & Evolution 5: 949-64.

+ Boklage, CE. 1990. The survival probability of human conceptions from fertilization to term. International Journal of Fertility 35: 75-94.

+ Briere, J. 1992. Methodological issues in the study of sexual abuse effects. Journal of Consulting and Clinical Psychology 60: 196-203.

+ Butler, S. 1979 [1978]. A conspiração do silêncio. RJ, Zahar.

+ Cardoso, BBV & mais 2. 2020. Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais? Cadernos de Saúde Pública 36 (Sup 1): e00188718.

+ Crow, JF & Kimura, M. 1970. An introduction to population genetics theory. NY, Harper.

+ Dawkins, MS. 1989 [1986]. Explicando o comportamento animal. SP, Manole.

+ Drezett J & Kotzias G. 2025. Abortion in Brazil: when Alice in Wonderland doesn’t know which way to go. Journal of Human Growth and Development 35: 6-10.

+ Falconer, DS. 1981 [1960]. Introdução à genética quantitativa. Viçosa, UFV.

+ Fortes, M. 1975 [1959]. El parentesco primitivo. In: Scientific American, org. Biología y cultura. Madri, Blume.

+ Franco, F. 2023. Surviving maternal incest. International Journal of Psychiatry Research 6: 1-7.

+ Hartl, DL & Clark, AG. 2010 [2007]. Princípios de genética de populações, 4ª ed. P Alegre, Artmed.

+ Hillis, SD & mais 5. 2004. The association between adverse childhood experiences and adolescent pregnancy, long-term psychosocial consequences, and fetal death. Pediatrics 113: 320-7.

+ Krebs, JR & Davies, NB. 1996 [1993]. Introdução à ecologia comportamental. SP, Atheneu.

+ Lewis, R. 1993 [1960]. Por que almocei meu pai. SP, C Letras.

+ Maddock, JW & Larson, NR. 1995. Incestuous families. NY, WW Norton.

+ Monteiro MFG & mais 2. 2015. Atualização das estimativas da magnitude do aborto induzido, taxas por mil mulheres e razões por 100 nascimentos vivos do aborto induzido por faixa etária e grandes regiões. Brasil, 1995 a 2013. Reprodução & Climatério 30: 11-8.

+ Moore, J. 1993. Inbreeding and outbreeding in Primates: What’s wrong with ‘The dispersing sex’? In: Thornhill, NW, ed. The natural history of inbreeding and outbreeding. Chicago, U Chicago P.

+ Noll, JG & mais 2. 2009. Childhood sexual abuse and adolescent pregnancy: A meta-analytic update. Journal of Pediatric Psychology 34: 366-78.

+ Shepher, J. 1971. Male selection among second generation kibbutz adolescents and adults: incest avoidance and negative imprinting. Archives of Sexual Behavior 1: 293-307.

+ Sikora, M. & mais 26. 2017. Ancient genomes show social and reproductive behavior of early Upper Paleolithic foragers. Science 358: 659-62.

+ Tadmouri, GO & mais 5. 2009. Consanguinity and reproductive health among Arabs. Reproductive Health 6: 17.

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