O zoo humano. III. Do que você é feito?
por Felipe A. P. L. Costa [*].
APRESENTAÇÃO. – Todos os objetos materiais que nos cercam – de um único grão de areia às estrelas mais luminosas – são formados de átomos ou de agregados de átomos (moléculas ou cristais). Nos seres vivos, em particular, as moléculas presentes estão organizadas em células. De fato, com exceção dos vírus, o corpo de todos os seres vivos (animais, plantas, fungos, algas, protozoários, bactérias e arqueias) é constituído de células [1].
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1. CÉLULAS SÃO OS TIJOLOS DO CORPO.
O termo célula (lat. cella, espaço vazio) foi cunhado por Robert Hooke (1635-1703). O naturalista e prático inglês examinou cortes de cortiça ao microscópio e o que ele viu não eram exatamente células vivas, mas sim os restos de um tecido vegetal morto. Hooke foi capaz de reconhecer apenas as cavidades, limitadas por paredes celulósicas, deixadas por células mortas.
1.1. Do que são feitas as células?
A composição química das células é bem diferente da composição dos objetos inanimados que as cercam. Por exemplo, a composição das raízes das plantas difere muito da composição do solo, assim como a composição das folhas difere muito da composição do ar ou da água em volta.
Essas diferenças podem ser examinadas em dois níveis: em termos de composição elementar ou atômica (elementos químicos) e em termos de composição molecular (funções químicas). No primeiro caso, caberia a pergunta: quais são os elementos mais abundantes em todo o Universo? A resposta é: os elementos mais simples da Tabela Periódica – hidrogênio e hélio – são também os mais abundantes. Em termos numéricos, H e He correspondem a 99,9% dos átomos existentes no Universo; em termos de massa, o percentual cai para 98% [2].
Resultados semelhantes são obtidos quando examinamos a crosta terrestre [3] e o corpo humano. No primeiro caso, mais de 80% da massa da crosta são constituídos de três elementos, oxigênio (49%), silício (26%) e alumínio (8%); já no segundo, três elementos – oxigênio (65%), carbono (18%) e hidrogênio (10%) – são responsáveis por 90% do corpo humano.
Como explicar predominâncias tão acentuadas? A resposta talvez possa ser resumida em uma palavra: seletividade. Em linhas gerais, o que se passa é que, na construção dos seus corpos, os seres vivos utilizam certas matérias-primas. O silício, por exemplo, é ignorado. A seletividade também se manifesta em níveis de organização mais altos. Por exemplo: mesmo os predadores mais generalistas não se alimentam de todo e qualquer tipo de presa. E mais: ainda que tenha abatido a presa correta, o predador não costuma se alimentar de todo e qualquer tecido do corpo da vítima, sobretudo no caso dos grandes predadores.
1.2. Compostos químicos.
Dois tipos de compostos participam da composição química das células, os orgânicos e os inorgânicos. Estes últimos incluem a água e vários íons minerais, como íons de potássio (K+), sódio (Na+) e cloro (Cl–). Os componentes orgânicos são moléculas mais complexas e mais diversificadas, todas elas organizadas em todo de uma cadeia carbônica.
Quatro grupos de compostos orgânicos são de ocorrência ampla e generalizada: glicídios (glicose, amido, glicogênio, celulose etc.), lipídios (óleos, gorduras, ceras, vários tipos de vitaminas e hormônios etc.), proteínas (enzimas, hemoglobinas, proteínas estruturais etc.) e ácidos nucléicos (vários tipos de ADN e ARN).
2. MACROMOLÉCULAS.
Diferentemente do que se passa na química inorgânica, a química orgânica lida com macromoléculas, muitas da quais são polímeros – leia-se: cadeias moleculares formadas de unidades menores, os monômeros. Proteínas, ácidos nucléicos e vários tipos de glicídios (e.g., amido e celulose) são polímeros. As exceções ficam por conta dos lipídios, que não formam polímeros [4].
2.1. Aminoácidos e proteínas.
Aminoácidos são ácidos carboxílicos que contêm um grupo amina (-NH2) ligado ao carbono 1 ou carbono alfa (ditos α-aminoácidos). Dois ou mais aminoácidos formam um peptídeo; peptídeos formam um polipeptídio. Proteínas são polipeptídios de alto peso molecular.
Já foram identificadas milhares de proteínas diferentes, formadas todas elas de aminoácidos. Embora algumas centenas de aminoácidos já tenham sido identificadas, apenas 20 deles – os chamados aminoácidos proteicos – formam cadeias polipeptídicas. Vale registrar que nem todos os aminoácidos proteicos são sintetizados localmente – e.g., nem todos os aminoácidos que estão em nosso corpo foram sintetizados pelas nossas células. Os aminoácidos que as células do nosso corpo utilizam, mas são incapazes de sintetizar, são referidos como aminoácidos essenciais.
Dos 20 aminoácidos proteicos, as células do nosso corpo sintetizam 10; razão pela qual os outros 10 têm de ser obtidos por meio da dieta. Para nós, portanto, estes últimos são ditos aminoácidos essenciais – são eles: arginina [5], fenilalanina, isoleucina, leucina, lisina, histidina, metionina, treonina, triptofano e valina.
2.2. Aminoácidos não proteicos.
Enquanto os aminoácidos proteicos também ocorrem como compostos livres, há um número muito maior de aminoácidos, chamados de aminoácidos não proteicos [6], que não formam cadeias polipeptídicas. Um exemplo familiar é a creatina.
Muitos aminoácidos não proteicos são tóxicos, razão pela qual são armazenados como substâncias defensivas. Um caso conhecido é o da canavanina, um análogo estrutural da arginina. A canavanina é encontrada em algumas espécies de leguminosas (Fabaceae). O que está por trás da ação tóxica desse aminoácido é um mal-entendido bioquímico, digamos assim: como são moléculas muito parecidas, a canavanina pode ocupar o lugar da arginina em muitas cadeias peptídicas. Esse engano dá origem a proteínas defeituosas e pode ser fatal, notadamente no caso daqueles consumidores cujo metabolismo é incapaz de identificar e discriminar contra a presença de canavanina.
Do ponto de vista das leguminosas, o acúmulo de canavanina serve como uma proteção química contra a ação de consumidores não adaptados. Ocorre que há consumidores adaptados. Certas linhagens de insetos fitófagos, por exemplo, toleram o consumo de altas doses de canavanina. Estou a pensar, por exemplo, em besouros bruquídeos (Coleoptera: Bruchidae: Caryedes brasiliensis) que se alimentam de sementes de Dioclea (Fabaceae: Lotoidea: Dioclea megacarpa) [7]. Para a maioria dos consumidores, as sementes de Dioclea são altamente tóxicas, pois a concentração de canavanima chega a mais de 10% do peso seco. A defesa do bruquídeo é engenhosa: o metabolismo do besouro conta com uma enzima que é capaz de discriminar contra a canavanina, de sorte que esse aminoácido não é confundido com a arginina. Em outras palavras, os bruquídeos consomem muita canavanina, mas esse aminoácido não lhes faz mal, pois não é utilizado na síntese de proteínas.
2.3. Ácidos nucleicos.
O pleno funcionamento de qualquer célula viva depende em última análise da síntese de proteínas, um processo bioquímico que ocorre no citoplasma, mas cujos comandos vêm dos cromossomos (ver Cap. 3). Cromossomos são formados de ácidos nucleicos [8].
Ácidos nucleicos são polímeros de nucleotídeos. Assim como os aminoácidos são os blocos constitutivos das proteínas, os nucleotídeos são os blocos constitutivos dos ácidos nucleicos. Cada nucleotídeo tem três partes características: (i) pentose (açúcar); (ii) base nitrogenada (moléculas planas, em geral derivadas de purinas ou pirimidinas); e (iii) ácido fosfórico.
ADN e ARN diferem entre si em termos estruturais e constitucionais (o tipo de açúcar e o tipo de base nitrogenada). No ADN, a pentose é a desoxirribose; no ARN é a ribose. Tanto o ADN como o ARN possuem quatro tipos de bases nitrogenadas (duas purinas e duas pirimidinas). No ADN, as purinas são adenina (A) e guanina (G) e as pirimidinas, citosina (C) e timina (T). No ARN, a timina é substituída por outra base pirimidínica, a uracila (U).
Diz-se então que o ADN é uma cadeia de desoxirribonucleotídeos ligados entre si, enquanto o ARN é uma cadeia de ribonucleotídeos. Em ambos os casos, um nucleotídeo está preso ao nucleotídeo seguinte por uma ligação covalente. Há diferenças estruturais importantes entre os dois. O ADN é uma fita dupla, composta de duas cadeias de desoxirribonucleotídeos complementares; as duas cadeias são mantidas juntas por ligações de hidrogênio. O ARN é uma fita simples, parcialmente dobrada sobre si mesma. As células em geral têm de duas a oito vezes mais ARN do que ADN.
Há três tipos básicos de ARN: o ARN mensageiro (ARNm), o ARN ribossômico (ARNr) e o ARN transportador (ARNt). As células costumam abrigar três ou mais formas diferentes de ARNr, dezenas de formas de ARNt e centenas ou até milhares de formas de ARNm. Mais de 80% de todas as moléculas de ARN das células são de ARNr, uns 15% são de ARNt e o restante é de ARNm.
2.4. Glicídios.
Os glicídios (= glucídios, carboidratos ou sacarídeos) são compostos relativamente simples, formados de carbono, hidrogênio e oxigênio. Obedecem à fórmula geral (CH2O)n, em que n é igual ou superior a três. Os glicídios são as moléculas orgânicas mais abundantes nas células, onde servem como fonte de energia ou como matéria-prima estrutural (celulose e quitina).
Os glicídios mais simples são os monossacarídeos, cuja cadeia carbônica contém ao menos três átomos de carbono. Quando dois monossacarídeos se combinam, forma-se um dissacarídeo. Quando muitos monossacarídeos se combinam, formando uma longa cadeia, temos então um polissacarídeo, a maioria dos quais tem uma cadeia linear. A depender da variedade de monossacarídeos presentes, fala-se em hetero ou homopolissacarídeo. Dois exemplos conhecidos de homopolissacarídeos: amido (polissacarídeo de reserva das plantas) e celulose (comum entre as plantas, onde é utilizado na fabricação da parede celular).
Embora a celulose e o amido sejam polímeros da glicose, há diferenças estruturais entre eles, resultando em propriedades químicas bem diferentes. Entre os animais um polissacarídeo de reserva é o glicogênio. Presente em todas as células do corpo humano, o glicogênio é especialmente abundante nos músculos esqueléticos e no fígado. Outro polissacarídeo importante é a quitina, utilizada em estruturas de sustentação, como o exoesqueleto dos insetos e a parede celular dos fungos.
2.5. Lipídios.
Os lipídios constituem um grupo mais heterogêneo de compostos orgânicos que os anteriores. Aqui estão reunidos gorduras, óleos e ceras, além de vitaminas, hormônios e componentes da membrana celular. Além do acentuado grau de hidrofobicidade – são quase sempre insolúveis em água – essas substâncias têm poucos traços em comum. Desempenham funções importantes (e.g., substâncias de reserva e constituintes de membranas biológicas); todavia, ao contrário dos grupos anteriores, os lipídios não formam polímeros.
Ao menos quatro grupos de lipídios devem ser familiares ao leitor: (i) ácidos graxos (são ácidos carboxílicos com grupos laterais constituídos de hidrocarbonetos de cadeia longa; a maioria possui um número par de átomos de carbono – em geral entre 14 e 20 – pois são sintetizados a partir de unidades com dois carbonos); (ii) triacilgliceróis (são triésteres de glicerol com ácidos graxos; gorduras e óleos encontrados em plantas e animais são misturas de triacilgliceróis); (iii) fosfolipídios (são os principais componentes lipídicos das membranas biológicas); e (iv) esteroides (são derivados de um composto que consiste de quatro anéis não planares fusionados; o colesterol é um exemplo de esteroide; vários hormônios e diversas vitaminas são esteroides).
3. COMPOSTOS SECUNDÁRIOS E COEVOLUÇÃO.
Os processos bioquímicos envolvidos na síntese de proteínas, ácidos nucleicos, glicídios e lipídios são praticamente universais. As reações químicas envolvidas nesses processos são referidas coletivamente como metabolismo primário.
Além dessas reações de ampla ocorrência, diferentes linhagens de seres vivos desenvolveram vias metabólicas suplementares. Os metabólitos produzidos, ditos compostos secundários, são de ocorrência mais restrita. Além disso, embora a repentina supressão desses compostos implique em vários problemas, a presença deles não é indispensável à vida.
Nas palavras de Luckner (1972, p. 3; trad. livre):
“A formação e o metabolismo dos ácidos nucleicos, da maioria dos carboidratos, de aminoácidos e proteínas, de certos ácidos carboxílicos etc. são, em princípio, similares em todos os organismos vivos (ou ao menos nos grandes grupos de organismos). Todas as reações vitais envolvidas nesses processos podem ser chamadas de metabolismo básico ou primário.
“Contudo, além das reações do metabolismo primário, frequentemente ocorrem reações que não são necessariamente vitais, muitas vezes diferem de espécie para espécie e podem ser vistas como uma expressão da individualidade química do organismo. Essas reações são agrupadas sob o termo metabolismo secundário e os produtos formados são chamados de metabólitos secundários.”
Células e tecidos vegetais são particularmente ricos em compostos secundários, como alcaloides, saponinas e taninos. Células animais também armazenam metabólitos secundários, ainda que em uma escala bem mais modesta. Basta ver as estatísticas: já foram identificados mais de 20 mil alcaloides de origem vegetal, contra apenas algumas dezenas de alcaloides de origem animal.
3.1. Coevolução bioquímica.
As diferenças entre plantas e animais, ao menos no que diz respeito à composição química, têm alimentado vários debates. Alguns autores argumentam que o acúmulo desses compostos seria tão somente um modo de as plantas armazenarem materiais de reserva. Outros acreditavam que seria um modo de as plantas excretarem toxinas e restos metabólicos, do mesmo modo como os animais fazem por meio da urina.
Há algum consenso de que a origem dos compostos secundários teve a ver com fatores essencialmente fisiológicos. As discordâncias emergem quando se pensa no papel que esses compostos passaram a ter na vida das plantas. Muitos autores argumentam que a manutenção e a proliferação de compostos secundários (e.g., Berenbaum 1983) seriam o resultado do papel que esses compostos assumiram na mediação de interações entre as plantas e seus inimigos – e.g., competidores (outras plantas), patógenos (fungos e micro-organismos) e parasitas (insetos fitófagos).
A coevolução entre plantas e fitófagos, em especial, parece ter tido um papel histórico fundamental (e.g., Ehrlich & Raven 1964). De início, a pressão exercida pelos fitófagos teria favorecido a diversificação das defesas acumuladas pelas plantas; em contrapartida, isso levaria a uma subsequente especialização por parte dos fitófagos – Dioclea vs. Caryedes, descrito antes, ilustraria esse ponto. O saldo líquido seria a atual profusão de espécies botânicas, cada qual abrigando um arsenal próprio de substâncias defensivas, contra as quais apenas uns poucos fitófagos conseguiram desenvolver sistemas de contra-ataques a ponto de permitir que eles continuassem a explorar grupos específicos de plantas.
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NOTAS.
[*] Artigo extraído e adaptado do livro Por que morremos? – Alguns tópicos de biologia que o seu médico deveria ter estudado (no prelo). Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir pacotes com os livros já publicados do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir o pacote ou algum volume específico, ou para mais informações, faça contato pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui. [1] Motivo pelo qual muitos autores tratam os vírus em separado. Para uma introdução à biologia celular, ver, e.g., Alberts et al. (2006). [2] Sobre os números, ver Comins & Kaufmann (2010) e Bettelheim et al. (2012). [3] O modelo mais aceito atualmente descreve o planeta como uma cebola constituída de três camadas concêntricas: a crosta, a mais superficial e estreita das três, o manto e o núcleo. Trato do assunto em outro lugar (Costa 2025). [4] Para uma introdução, ver Bettelheim et al. (2012) ou Voet & Voet (2006). [5] A arginina é dita semi-essencial. Segundo Voet & Voet (2006, p. 1030): “A arginina é classificada como essencial, embora seja sintetizada no ciclo da ureia […], pois é necessária em quantidades maiores que aquelas produzidas nessa via durante o crescimento e o desenvolvimento normal das crianças (mas não nos adultos).” [6] Sobre defesas químicas de plantas, em particular o caso da acumulação de aminoácidos não proteicos, ver Rosenthal & Janzen (1979). [7] Caryedes vs. Dioclea é análoga à interação carunchos-do-feijão vs. feijão. [8] Para uma introdução à genética molecular, ver Watson et al. (2006).*
REFERÊNCIAS CITADAS.
+ Alberts, B & mais 5. 2006 [2002]. Biologia molecular da célula, 4ª ed. P Alegre, Artmed.
+ Berenbaum, M. 1983. Coumarins and caterpillars: a case for coevolution. Evolution 37: 163-79.
+ Bettelheim, FA & mais 3. 2012 [2010]. Introdução à química geral, orgânica e bioquímica, 9ª ed. SP, Cengage.
+ Comins, NF & Kaufmann, WJ, III. 2010 [2008]. Descobrindo o Universo, 8ª ed. P Alegre, Bookman.
+ Costa, FAPL. 2025. O tamanho do mundo & outras conjecturas. Viçosa, Ed. do Autor.
+ Ehrlich, PR & Raven, PH. 1964. Butterflies and plants: a study in coevolution. Evolution 18: 586-608.
+ Luckner, M. 1972 [1969]. Secondary metabolism in plants and animals. Londres, Chapman.
+ Rosenthal, GA & Janzen, DH, eds. 1979. Herbivores: Their interaction with secondary plant metabolites. Orlando, Academic.
+ Voet, D & Voet, JG. 2006 [2004]. Bioquímica, 3ª ed. P Alegre, Artmed.
+ Watson, JD & mais 5. 2006 [2004]. Biologia molecular do gene, 5ª ed. P Alegre, Artmed.
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