O zoo humano. II. Vida intrauterina.
por Felipe A. P. L. Costa [*].
A sucessão de eventos que fazem com que uma única e insignificante célula inicial – o zigoto – dê origem a um bebê humano é algo bem impressionante. Referido como ontogenia, o fenômeno envolve dois processos: crescimento e desenvolvimento.
O crescimento é um processo quantitativo, assentado na proliferação celular. Crescer implica em aumentar o número de células presentes. Já o desenvolvimento é um fenômeno essencialmente qualitativo, decorrente de mudanças na disposição e no comportamento das células, o que leva a mudanças de forma e função.
1. CÉLULAS-TRONCO.
Como sabemos por experiência própria, as células do nosso corpo preservam a capacidade proliferativa, graças à qual somos capazes de regenerar tecidos e órgãos danificados, mesmo na idade adulta [1]. As células que preservam tal capacidade, ditas células-tronco, são capazes de dar origem a um variado leque de tipos celulares. E isso está a ocorrer diariamente.
As células vermelhas do sangue (hemácias), por exemplo, têm um tempo de vida de alguns dias. Para substituir a quantidade perdida e assim manter a estabilidade geral, certas partes do corpo devem produzir células novas constantemente [2]. Essa dinâmica celular gera a chamada renovação (ing., turnover).
Nas palavras de Reddien (2024, p. 200; trad. livre):
“A renovação [celular] está em todo lugar e pode ser incrivelmente rápida. Evoque uma lembrança de semanas atrás e ela fluirá através de moléculas diferentes das anteriores. Toque em um objeto familiar de meses atrás e o contato será feito por novas células da pele. Coma algo que você não comia há semanas e novas papilas gustativas detectarão o sabor e o alimento irá passar por células intestinais inteiramente novas. Olhe para algo que você não vê há semanas e a luz passará por novas células em sua córnea e será detectada por novos discos membranosos em seus neurônios fotorreceptores.”
As novas gerações de células-tronco normalmente seguem um entre dois destinos possíveis: (i) algumas permanecem como células-tronco, renovando e mantendo o estoque de células indiferenciadas; e (ii) algumas passam por um processo de diferenciação, adquirindo assim forma e função específicas.
1.1. Da fecundação à organogênese.
A sequência cronológica que caracteriza o nosso desenvolvimento embrionário pode ser dividida em ao menos quatro fases: fecundação, segmentação (ou clivagem), gastrulação e organogênese [3].
Tudo começa com a fecundação (ou fertilização), que é a união e fusão dos gametas – lembrando que cada óvulo é fecundado por um único espermatozoide. Tem início então o desenvolvimento. O zigoto se divide em duas células, cada uma das quais também se divide em duas e assim por diante. Essa sucessão de mitoses resulta em uma massa compacta, constituída de células cada vez menores. A estrutura toda é chamada de mórula (lat., amora), dada a semelhança visual com a fruta.
Essa esfera inicial se reorganiza logo em seguida. Forma-se então uma cavidade interna (blastocele), cheia de líquido. A estrutura passa a ser chamada de blastocisto, cada célula sendo referida como blastômero. Grupos específicos de células darão origem às camadas germinativas, cada uma das quais irá assumir forma e função específicas. Essa fase inicial de diferenciação é chamada de gastrulação. O embrião em seguida entra na fase de organogênese, durante a qual estruturas primordiais derivadas das camadas germinativas darão origem a órgãos e sistemas de órgãos.
No que segue, vamos esboçar um resumo do desenvolvimento embrionário humano.
2. DO BLASTOCISTO AO NEONATO.
A gestação em humanos demora em média ~40 semanas. Embora seja um processo contínuo, faz-se uma distinção entre dois períodos, o embrionário e o fetal.
O período embrionário cobre as primeiras oito semanas, enquanto o período fetal se estende pelas 32 semanas que vão do fim do período embrionário até o fim da gestação.
Nas palavras de Standring (2010, p. 211):
“Considerando que o desenvolvimento de um ser humano a partir da fertilização até a plena formação tem em média 266 dias, ou 9,5 meses lunares (com 28 dias), o início da gravidez é tradicionalmente determinado clinicamente pela contagem de dias a partir do último período menstrual; estimada desta forma, a gravidez tem duração média de 280 dias, ou 10 meses lunares (40 semanas). […]
“Na prática obstétrica, a duração do período de gestação é de nove meses, que corresponde a aproximadamente 270 dias. O período de gestação é dividido em terços, denominados trimestres. O primeiro e o segundo trimestres, cada um, cobrem um período de 12 semanas, e o terceiro trimestre abrange o período a partir de 24 semanas até o nascimento. Embora a data prevista para o parto seja calculada em 40 semanas de gestação, o período de gravidez, ou seja, a sua conclusão resultando no parto, é considerado normal entre 37 e 42 semanas.”
Vejamos agora o que caracteriza cada um dos trimestres.
2.1. Três trimestres de gestação.
Uma vez formado, o zigoto começa a se dividir. O ritmo é tal que o estágio de dois blastômeros é atingindo umas 36 horas após a fecundação. As divisões prosseguem a um ritmo de uma divisão a cada 12-24 horas. Ao final da primeira semana, o zigoto, agora chamado de blastocisto, já é uma massa compacta formada de umas 100 células.
Após a fertilização (dia 1), comumente ocorrida na porção superior da tuba uterina [4], são necessários de 3 a 5 dias para que o blastocisto desça até o útero. No interior do útero, o blastocisto permanece a vagar por mais 1-3 dias, antes de se implantar no endométrio, a parede interna do útero.
A implantação é uma etapa decisiva. Entre os problemas que podem surgir, caberia mencionar aqui ao menos dois. (1) O óvulo fecundado pode ficar preso em algum ponto da tuba e ali iniciar a implantação, uma condição anormal referida como implantação ectópica. Tal condição não costuma ir adiante, mas pode avançar para uma gravidez, o que seria um grave risco à vida da própria mãe [5]. (2) A implantação simplesmente falha, mesmo quando ocorre no útero, havendo então um aborto espontâneo [6].
Por que o aborto espontâneo é tão comum. Embora possam ocorrer falhas a qualquer momento, abortos espontâneos são particularmente comuns durante a implantação. A rigor, a morte prematura do concepto humano é um fenômeno muito mais frequente do que em geral se imagina. 73% das concepções naturais não sobrevivem para além das seis primeiras semanas (Boklage 1990). O que equivaleria a dizer que 73% dos embriões são abortados naturalmente. Na maioria desses casos, nem a própria mulher se dá conta de que estava grávida e de que acabou de abortar. Dos 27% que conseguem superar a barreira inicial das seis primeiras semanas, 90% tendem a sobreviver até o parto.
Mas o que levaria a percentuais tão elevados de aborto espontâneo? As incompatibilidades ou incongruências genéticas, incluindo aí as anomalias cromossômicas, talvez sejam a principal explicação. No que segue, para fins de ilustração, vamos nos debruçar um pouco sobre a ideia de incompatibilidade genética.
A incompatibilidade genética decorre muitas vezes do acasalamento entre indivíduos intimamente aparentados (e.g., irmãos, pais e filhos). Estamos a falar de endogamia, um fenômeno que tem ao menos dois impactos negativos: as malformações congênitas e a perda de variabilidade genética. Em termos estritamente genéticos, esses problemas decorrem do aumento que há na frequência de genótipos homozigotos. Mais homozigotos resultam em chances aumentadas de que alelos raros e recessivos se encontrem e se manifestem [7]. Como muitos desses alelos são deletérios, os genótipos homozigotos tendem a resultar em taxas elevadas de aborto espontâneo ou em malformações congênitas.
2.2. Quando a implantação é bem-sucedida.
Em condições normais, o blastocisto adere à mucosa uterina no dia 6. A implantação estará concluída entre os dias 7 e 12. Até então, o blastocisto é um aglomerado de células microscópicas.
Antes de concluída a implantação, estruturas extraembrionárias começam a se desenvolver. Estou a pensar nos anexos embrionários. Essas estruturas darão suporte ao embrião em desenvolvimento. São cinco anexos: âmnio, saco vitelínico, cório, alantoide e placenta. É graças à placenta, por exemplo, que o embrião recebe oxigênio e nutrientes trazidos pelo sangue da mãe [8].
A implantação é sucedida pela gastrulação, que tem início entre os dias 16 e 18. Entre os dias 18 e 21, tem início a neurulação. O embrião já mede ~1 mm de comprimento. Entre os dias 28 e 30, tem início a organogênese. O ritmo segue acelerado e o embrião tem agora quase 5 mm de comprimento.
Várias estruturas externas podem ser identificadas no segundo mês de gestação. É o caso dos brotos dos membros superiores e, mais adiante, dos brotos dos membros inferiores. Ao final do primeiro trimestre, o embrião alcança ~30 mm de comprimento, tendo entre 2 e 3 g de massa. Os genitais externos são visíveis, embora ainda não seja possível uma identificação segura do sexo.
O segundo trimestre. A partir do segundo trimestre, o embrião passa a ser chamado de feto, termo largamente usado por médicos e juristas. O período fetal se estenderá até o nascimento. Durante o segundo trimestre, o feto aumenta muito de tamanho, razão pela qual há uma maior dilatação do abdome e o estado de gravidez da mãe se torna evidente. Na segunda metade do segundo trimestre, os movimentos do feto (os pontapés que a mãe sente) se tornam mais frequentes e coordenados. Traços faciais nitidamente humanos já podem ser observados. Ao final do trimestre, o feto chega a ~33 cm de comprimento e 500 g de massa corporal.
O terceiro trimestre. O crescimento e o desenvolvimento seguem suas trajetórias, embora o ritmo já não seja o mesmo de antes. A partir do sétimo mês, as chances de sobrevivência de neonatos prematuros aumentam bastante. À medida que o terceiro trimestre se aproxima do fim, vários órgãos e sistemas de órgãos alcançam a maturidade. O sistema digestório começa a funcionar; o fígado passa a armazenar substâncias de reserva; o feto experimenta ciclos de sono e vigília. O momento exato do nascimento é antecedido pelo amadurecimento dos pulmões, o derradeiro par de órgãos a entrar em ação. Um neonato que nasce com 40 semanas após a fecundação, independentemente do sexo, tem em média 49 cm de comprimento e 3,2 kg de massa corporal.
3. VIDA PÓS-EMBRIONÁRIA.
Em termos absolutos, claro, a maior parte do crescimento ocorre em fases pós-embrionárias. O crescimento pós-embrionário é muito diferente em plantas e animais. Nestes últimos, o crescimento é determinado – o tamanho reflete a idade ou o estágio de vida do indivíduo e o crescimento cessa em algum momento. Entre as plantas, o crescimento é indeterminado – o tamanho independe da idade e o crescimento é incessante (não há um tamanho fixo final) [9].
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NOTAS.
[*] Artigo extraído e adaptado do livro Por que morremos? – Alguns tópicos de biologia que o seu médico deveria ter estudado (no prelo). Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir pacotes com os quatro livros já publicados do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir o pacote ou algum volume específico, ou para mais informações, faça contato pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui. [1] Vale registrar que a produção incessante de novas gerações de células pode dar origem a aglomerados descontrolados, como ocorre nos tumores. Essas estruturas passam a drenar para si uma parcela cada vez maior dos recursos que iriam para outras partes do corpo. Nas palavras de Guyton & Hall (2006, p. 41): “Por que as células cancerosas matam? A resposta desta pergunta normalmente é simples. O tecido canceroso compete com os tecidos normais pelos nutrientes. Pelo fato de as células cancerosas proliferarem continuamente, o número delas se multiplica dias após dia; as células cancerosas logo demandam praticamente todos os nutrientes disponíveis para o organismo ou para uma parte essencial do corpo. Consequentemente, os tecidos normais gradativamente sofrem morte por desnutrição.” [2] No caso das células do sangue, o processo ocorre na medula óssea. Segundo Junqueira & Carneiro (2008, p. 235): “Hemocitopoese é o processo contínuo e regulado de produção de células do sangue, que envolve renovação, proliferação, diferenciação e maturação celular. […] Na vida pós-natal, os eritrócitos, granulócitos, linfócitos, monócitos e plaquetas se originam a partir de células-tronco da medula óssea vermelha. […] Essas células passam por diversos estágios de diferenciação e maturação na medula óssea, antes de passarem para o sangue.” [3] Em 21 das 29 ordens de mamíferos (ver Apêndice 1), o embrião se desenvolve dentro de uma placenta, no interior do corpo da mãe. [4] As tubas uterinas vão da parte superior do corpo do útero até os ovários. Quatro segmentos são identificados: segmento intramural (1 cm de comprimento), istmo (3 cm), ampola (5 cm), onde ocorre a fecundação, e, por fim, infundíbulo e as fimbrias digitiformes, que se lançam sobre os ovários. [5] Nas palavras de Standring (2010, p. 172): “A maioria das gestações ectópicas é anembrionárias […]. As gestações ectópicas com embrião vivo são as mais perigosas, porque esses embriões crescem rapidamente e podem ser detectados apenas quando erodem a parede da tuba uterina e os vasos sanguíneos circundantes, já na oitava semana de gestação. […] Tirante as implicações clínicas importantes, essas condições destacam o fato de que o concepto pode se implantar com sucesso em tecidos diferentes do endométrio progestacional normal.” [6] Dois tipos de aborto devem ser citados, os espontâneos e os induzidos. Os primeiros são comuns na natureza, tanto em animais como em plantas. A razão básica é quase sempre a mesma: trata-se do desenlace final de um processo de triagem por meio do qual o corpo da mãe está sempre a avaliar a qualidade do embrião que traz dentro de si. Em outras palavras, abortar não é uma falha, abortar faz parte de um processo ativo e deliberado de controle. Veja, por exemplo, quão comum é encontrar sementes abortadas em frutos do barbatimão (leguminosas do gênero Stryphnodendron). O fenômeno, claro, não se restringe às leguminosas. Qualquer planta frutífera é capaz de abortar sementes dentro dos frutos, do mesmo modo como as fêmeas mamíferas são capazes de abortar blastocistos recém-aninhados na parede do útero. [7] Ver Crow & Kimura (1970); em port., Falconer (1981) e Hartl & Clark (2010). [8] Ao contrário do que imaginam alguns, a relação mãe/embrião não é nenhum mar de rosas. Basta dizer que, embora a mãe esteja no comando, o embrião sempre tenta maximizar a drenagem de recursos para si, a ponto de por a vida da mãe em risco. Nas palavras de Haig (2004, p. S10; trad. livre): “A gravidez é um consórcio que envolve três conjuntos de genes. Há os genes que são partilhados pela mãe e pelo feto (haplótipos maternos herdados); genes presentes na mãe, mas não no feto (haplótipos maternos não herdados); e genes presentes no feto, mas não na mãe (haplótipos fetais derivados do pai). Cada conjunto tem interesses específicos no resultado de uma gravidez, por causa de um meio-termo evolutivo fundamental que há na provisão de cuidados maternos: recursos ou esforços extras destinados a melhorar a sobrevivência de qualquer descendente em particular estão associados a um custo de oportunidade de menos recursos ou esforços disponíveis para outras atividades maternas.” [9] As plantas e uns poucos animais (e.g., corais e esponjas) são ditos organismos modulares: o corpo deles é constituído de partes (módulos) que se repetem indefinidamente. Ao contrário dos organismos unitários (animais), os modulares exibem padrões de crescimento bastante flexíveis. Árvores, por exemplo, periodicamente perdem e reconstroem partes do corpo, de tal modo que integrantes de uma mesma coorte (leia-se: indivíduos ou estruturas nascidos em uma mesma data ou época) podem diferir muito em tamanho – v. Begon et al. (2007).*
REFERÊNCIAS CITADAS.
+ Begon, M & mais 2. 2007 [2006]. Ecologia. 4ª ed. P Alegre, Artmed.
+ Crow, JF & Kimura, M. 1970. An introduction to population genetics theory. NY, Harper.
+ Boklage, CE. 1990. The survival probability of human conceptions from fertilization to term. International Journal of Fertility 35: 75-94.
+ Falconer, DS. 1981 [1960]. Introdução à genética quantitativa. Viçosa, UFV.
+ Guyton, AC & Hall, JE. 2006. Tratado de fisiologia médica, 11ª ed. SP, Elsevier.
+ Haig, D. 2004. Evolutionary conflicts in pregnancy and calcium metabolism – A review. Placenta 25 (Suppl A): S10-S15.
+ Hartl, DL & Clark, AG. 2010 [2007]. Princípios de genética de populações, 4ª ed. P Alegre, Artmed.
+ Junqueira, LC & Carneiro, J. 2008. Histologia básica. 11ª ed. RJ, G Koogan.
+ Reddien, PW. 2024. The purpose and ubiquity of turnover. Cell 187: 2657-81.
+ Standring, S, ed. 2010 [2008]. Gray’s, anatomia, 40ª ed. RJ, Elsevier.
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