Voo das borboletas…

por João Silva

Deficit de confiança que abate o governo é muito sério devido aos juros de destruição em massa

No fim de 2022, acompanhado do vice-presidente Geraldo Alckmin, de Fernando Haddad e Aloizio Mercadante, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ouviu de um interlocutor, numa reunião fechada e amistosa, uma sugestão: “Se o senhor não mudar a atual política econômica, o governo vai fracassar em seis a 12 meses”.

Não fracassou, mas, quase 24 meses depois, ainda estar discutindo assuntos fiscais, tomando susto do mercado financeiro, e antecipar para a segunda metade do mandato a continuidade da dominância dos resultados orçamentários e do Tesouro Nacional, subestimando tudo que diga respeito à economia da oferta vis-à-vis o estímulo moto contínuo do consumo, é muito questionável falarmos de sucesso.

Alguma dúvida o presidente teve ou não teria convidado André Lara Resende, que participou da equipe de transição e entregou algumas ideias, para ocupar o Ministério do Planejamento. Ele não aceitou por razões pessoais e Lula nomeou Simone Tebet, que queria a pasta do Bolsa Família, na verdade, mas foi vetada pelo PT.

Tebet virou extensão de Haddad, ministro da Fazenda, rompendo uma liturgia aplicada por Lula de 2003 a 2010. Para se informar sobre as possibilidades e poder arbitrar a decisão, ele tinha na pasta do Planejamento um ministro com visão menos ortodoxa que o titular da Fazenda. Na prática, tem sido ele mesmo o que Mantega foi para Palloci. E Tebet, no auge da preparação e repercussão danosa do pacote fiscal de Haddad, saiu a lançar um livro de memórias, “O voo das Borboletas”. Pouco foco, muita distração e visão embaçada.

O ponto central é que o Brasil é a última economia de consumo de massa ainda não realizada. A caminho de sê-la contam-se a China, que é “fabrica do mundo” mas reprime o consumo doméstico para ter excedentes exportáveis pesadamente subsidiados, Índia e Indonésia.

O jeito de pôr o Brasil nessa lista, havendo mais de 100 milhões de pessoas recebendo algum cheque do governo, entre beneficiários do INSS, Bolsa Família e servidores, representando R$ 1,6 trilhão, ou 15% do PIB, é criando empregos, seguido de um prazo longo, tipo dez anos, para desligar quem ganhar autonomia desses programas.

O cabresto é manso

O que temos desde o desastre de um governo e meio de Dilma? Muita tentativa de encabrestar o gasto público. Como fazê-lo se a marca dos governos petistas é a pegada social? Atentem: foi isso também o que fizeram para reeleger Bolsonaro, ele que até então só tinha impropérios para o Bolsa Família. Foi assim que o Auxílio Brasil, codinome do BF, foi elevado de quase R$ 200 para R$ 600.

Não restou a Lula que anunciar que não só manteria, como o faria somar-se a mais um adicional de R$ 150 por criança de até 6 anos e R$ 50 para cada pessoa entre 7 e 17 anos, gestante ou lactante. O caso é que não parou por aí: anunciou o reajuste do salário mínimo pelo INPC de 12 meses mais a variação do PIB de dois anos antes, além da isenção do IR até R$ 5 mil de renda mensal.

Faltou cuidado nessas promessas. Desde Bolsonaro, os cadastros de programas sociais foram tratados como porta arrombada, algo ainda não resolvido pelas operações “pente fino” do atual governo. Certo e garantido é que a assessoria de campanha desconhecia ou não deu importância ao fato de que desde meados de 2019 entraram em todos os programas de transferência de renda 19 milhões de pessoas.

Com mais gente e mais renda transferida, não tinha como o teto de gasto, criado no governo Temer, não ruir. Mas também o “arcabouço” de Haddad criado para substituí-lo, prevendo um mínimo de variação da despesa entre 0,6% e 2,5% acima da receita do ano anterior, não para em pé. Ainda mais com a volta da vinculação do dinheiro para educação e saúde ao crescimento da receita líquida federal.

A pá de cal veio com o agigantamento das emendas parlamentares – quase do tamanho da verba dos investimentos inserida no orçamento.

Inversão de prioridades

Em suma: assiste-se uma inversão de prioridades desde o governo Temer. Em vez de teto de gasto, congelado ao realizado em 2016 e corrigido pela inflação anual, deveria ter havido empenho para a reforma da previdência, que estava madura graças à diligência do então presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Foi aprovada em 2019.

Não é o gasto que precisa de trancas, é o escrutínio contínuo do que os governantes e parlamentares fazem com ele. É definir tanto a educação de qualidade, com viés tecnológico, quanto a geração de empregos como a variável principal da política econômica e social, operando os programas de renda como rede de última instância.

É entender que mais que dinheiro subsidiado a economia carece de projetos muito bem elaborados, como tem sido o caso de concessões, em especial de rodovias, para os quais não falta dinheiro privado nacional e estrangeiro. O chamado “project finance” era tímido ao tempo do PAC-1. Hoje, é o que faz deslanchar a infraestrutura no mundo – como de data centers, de energia limpa e de baterias.

Isso requer uma macroeconomia estável de juro e câmbio. No caso brasileiro, a compreensão de que estamos à mercê de um problema de disfuncionalidade da governança do Estado mais que de “gastança” – expressão preferida dos fiscalistas – teria ajudado o governo a deslanchar o investimento e depender menos dos auxílios de renda para tentar se manter competitivo no mercado do voto. Até agora a compreensão é pequena, embora ela exista na proximidade de Lula.

Gatinho de especulador

O país está bem, desde que a política e a governança pública não atrapalhem e não confundam o bom e velho planejamento com o que a nova direita dos EUA critica como “fundamentalismo de mercado”. O protagonismo não é do governo X nem do partido Y. É coletivo.

Isso, depois do fiasco do pacote de desaceleração de gasto que o governo diz representar uma economia de R$ 70 bilhões em dois anos e economistas como Mansueto Almeida, do BTG, estimam em não mais que R$ 46 bilhões, vai exigir menos pancadas no setor privado, um vício populista, e mais pragmatismo.

Por exemplo: parar de achar o Banco Central como algoz e não instância derradeira do que a macroeconomia produziu. Mas também considerar que um BC sem poder operar na curva de juros e no câmbio é gatinho de especulador.

Enfim, como diz o economista Fernando Montero, o pacote não dá os 70 bi anunciados, que não dão as metas e as metas não estabilizam a dívida. “Se a fé no arcabouço desse câmbio e juros comportados, a dinâmica fiscal teria meio caminho andado porque, à diferença do tempo da Dilma, a economia privada está um brinco. E déficit de confiança é mais sério porque temos juros de destruição em massa.”

Se pararem de improvisar e forem profissionais, pode dar certo.

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Last Update: 01/12/2024