
Por Christine de Alencar Chaves
Da Página do MST
Quem acompanha o MST não deixa de ficar intrigado com sua vitalidade, afinal, o movimento completou em 2024 quatro décadas de existência, proeza rara entre movimentos sociais. É fato que a meta fundamental do MST, a reforma agrária, continua um sonho irrealizado. Seus oponentes são poderosos, mantêm vínculo de origem com o Estado brasileiro, uma máquina a serviço dos grandes proprietários, e seus agentes usam de extrema e histórica violência; além disso, a contínua concentração da propriedade da terra nas últimas décadas transformou o país, concentrando a população no meio urbano. Diante dessas condições, a longevidade e envergadura do MST é uma espécie de ‘enigma’ para quem olha de fora. Qual é a liga que o mantém unido, dá força e coragem para a militância e sustenta sua luta pela terra mesmo nos momentos mais difíceis? Alguns de seus trunfos são notórios: a capacidade de agregar distintas categorias de trabalhadores rurais e desempregados urbanos num sujeito coletivo novo, com identidade própria e simbolismo inconfundível, além da criação de formas de organização e ação política inovadoras, como as ‘ocupações’. Mas há algo mais, nos ensinam os sem-terra: o segredo está na mística, “a alma do Movimento”.
É preciso seguir a pista, porém, o que é mística no MST? Militantes já buscaram explicá-la, visto que é considerada um ‘princípio organizativo’ e, mais, um ‘método de trabalho de base’. Ensinada em manuais, a classificação demonstra sua importância. Por outro lado, dizem que é difícil defini-la, pois a mística é entendida como impalpável, ‘realidade que mais se vive do que fala’. Em geral, ela é traduzida como sentimento ou qualidade: a qualidade de confiança, coragem e firmeza ante todas as situações da luta pela terra, sejam elas favoráveis ou adversas. Além disso, porém, mística é também o nome dado no MST a cerimônias ou rituais realizados com intuito motivacional. Encenações, mímicas, gestos, música, cantos, palavras de ordem, mas também ornamentações, vestimentas e ‘atitude’ compõem o arsenal ritualístico das místicas. Pode-se dizer que por esses múltiplos meios os rituais da mística expressam e comunicam as ideias e valores do MST, mas também cumprem funções práticas: eles desempenham papel central na articulação das suas instâncias organizativas, além de ser uma espécie de força motriz que impulsiona a ação coletiva sem terra.
Talvez a melhor maneira de compreender as múltiplas dimensões da mística seja apresentar algumas de suas manifestações. Voltemos por um momento a fevereiro de 2014, quando da abertura do VI Congresso Nacional do MST, dia de festa para os sem-terra reunidos em Brasília. O Ginásio Nilson Nelson está preparado para a celebração dos 30 anos do Movimento, o ambiente adornado com paineis coloridos e faixas com frases de efeito. As delegações dos estados chegam pouco a pouco e pintam as arquibancadas do vermelho que tinge bonés, camisetas e bandeiras. O apuro na organização e ornamentação do ginásio, também visto na vestimenta e pontualidade dos sem-terra demonstram planejamento e disciplina. No tablado, os músicos ensaiam acordes.
Encima o palco um painel de grandes dimensões em que se descortinam cenas diversas pintadas coletivamente pelos artistas do MST. Ele foi cenário permanente das principais atividades públicas internas do VI Congresso. Suas imagens formavam uma narrativa síntese que nos ajuda a decifrar algumas das ideias-força do MST, didaticamente reiteradas nos rituais da mística.
O centro da tela era dominado pelo trio formado por um indígena, uma mulher branca e um negro a fitar o observador com olhar incisivo e gestos decididos. Clara evocação do mito de origem brasileiro das três raças, as figuras expressavam a face dos socialmente marginalizados, os principais protagonistas das cenas circundantes. Do canto superior esquerdo da tela e à direita de quem olha emergem duas multidões em marcha denotando a luta como uma realização cooperativa, coletiva. Em meio à legião de pessoas, vislumbram-se a bandeira do MST junto com os estandartes brasileiro, cubano e wiphala, sugerindo a comunidade dos povos latino-americanos, e na verdade de todos os oprimidos. Chapéus, bonés, capacetes e ferramentas paramentam as silhuetas humanas e reiteram sua condição de trabalhadores, realçando a ideia de protagonismo popular na luta coletiva.
Na margem superior do quadro homens e mulheres unem esforços para aproximar de si o pêndulo da Justiça que, estilizada, estranhamente dá colo a um gordo homem de chapéu. Ele cobre os olhos vendados da Justiça enquanto empunha uma serra elétrica que decepa a Constituição brasileira, sob a qual vemos árvores esmagadas. Nomes de agroindústrias multinacionais estampam sua camisa, numa representação condensada dos antagonistas do MST, perante quem a Justiça cede, submissa: à displicente figura do fazendeiro fundem-se, através das insígnias, as grandes corporações internacionais. Numa só imagem combinam-se o latifundiário, histórico oponente da reforma agrária, e os proprietários e acionistas anônimos de empresas do “agronegócio”, considerado o real inimigo do MST, hoje. A dilaceração da Constituição, súmula dos direitos e do pacto social, acompanha-se, em ato único, da destruição da natureza. Um pelotão militar protege o casal com armas apontadas em direção ao trio humano no centro do quadro e à multidão em marcha que domina a esquerda do painel.
Enquanto as cenas anteriores parecem retratar a configuração atual da luta de classes segundo o ideário do MST, as seguintes sugerem modos de ação organizada dos trabalhadores, assim como suas conquistas. À esquerda do painel, a outra multidão denota uma imensa manifestação de trabalhadores, entre os quais avista-se a bandeira do MST, em composição dramática evocativa da famosa pintura de Delacroix, “a liberdade conduz o povo”. Na dianteira da marcha, uma mulher semeia. Toda a massa humana parece dirigir-se ao campo de semeadura, delineado em plantações verdejantes, pomar, horta e árvores, em meio ao qual se avista ao longe outro estandarte do MST junto a um acampamento de lonas pretas. Uma luminosidade primaveril incide nos que estão à dianteira da multidão e no campo de cultivo, dando acento às cores das vestes, folhagens e barracos e compondo uma estética semelhante à figuração do paraíso encontrada em certos livretos religiosos ou, noutra chave, a realização de uma sociedade utópica.
A evocação (a)temporal na imagem da multidão em marcha transmuta-se ao desaguar na cena campestre e desdobrar-se no espaço como acampamento sem-terra, organização política que frutifica em campos cultivados, numa alusão aos assentamentos rurais do MST. Deitado esplendidamente no campo, vemos um recém-nascido como que desabrochado da semeadura. Dele germina planta que se enrama em direção ao canto inferior direito do painel e ali enlaça um imenso violão. Duas cenas justapõem-se acima do instrumento: na primeira, um casal estuda debruçado sobre um livro ou caderno; na segunda, vemos um grupo de pessoas em reunião. Outras faces da organização política dos trabalhadores valorizadas no MST, o conhecimento e o debate, assim como a alegria da mística celebrada nas canções, parecem assim anunciar “o novo homem e a nova mulher”, figurados no recém-nascido germinado dos campos de semeadura da luta, retratada no painel como um todo.
A integração de conteúdos diversos e a condensação espaço-temporal do painel exibem a qualidade síntética da arte mural do MST. Seus artistas reproduziram no quadro um conjunto de ideias e valores reafirmados cotidianamente em reuniões, assembleias, salas de aula, mobilizações, e também nas místicas que pedagogicamente pontuam cada uma dessas atividades. A organização coletiva dos trabalhadores e sua luta são apresentadas como caminho transformador da experiência de exploração, opressão e violência, tornando possível uma nova condição social manifesta sob luz idílica na imagem do acampamento/assentamento. Essa nova condição é entendida como realização concreta da luta, sendo alcançável no presente com a conquista da terra e também projetada no futuro como sociedade renovada, ambas retratadas na mesma imagem-síntese. Noutro plano, organização coletiva e luta operam a transformação/renascimento dos sujeitos ao promover sua remodelação em termos de padrões socioculturais e sociopsíquicos. A luta é de todos os povos, dos trabalhadores do campo e da cidade, de homens e mulheres, negros, brancos, indígenas. Ela é imemorial, une os trabalhadores e os opõe aos detentores do capital, que dominam recursos materiais, simbólicos e o poder, solapam a lei, dobram a Justiça e colocam igualmente a seu serviço o aparato repressivo do Estado. Eis a súmula das ideias norteadoras da luta do MST e do conteúdo geral da mística sem-terra, que pode ser definida como uma mística da ação ou mística da luta.
Essas ideias-força foram recriadas nas múltiplas cenas da encenação que se seguiu, quando cerca de 1.500 figurantes dramatizaram por quase duas horas a história da luta pela terra no Brasil e a criação do MST: fizeram marchas; formaram acampamentos; viveram enfrentamentos de forças repressivas estatais e paraestatais; sofreram perdas, testemunharam mortes e protagonizaram renascimentos: feições diversas da luta foram encenadas em representações dramáticas, danças e mímicas, sendo sublinhadas por músicas, canções, poesia e prosa. Toda a cerimônia foi uma mística aos olhos dos sem-terra.
Pode-se dizer que a mística é celebração que procura fazer da luta, festa. Ora mais, ora menos elaboradas, através de diferentes meios expressivos, as místicas buscam tocar a sensibilidade, mas também a razão e a vontade dos sujeitos. Como em todo ritual, as místicas apresentam em seus atributos formais certa padronização e recorrência nos símbolos empregados e nas narrativas dramáticas. Adereços simbólicos como enxadas, facões, lona preta, frutos e cereais reaparecem em múltiplos arranjos, e encenações de conflito, mortes e renascimentos são nelas presença constante. Por outro lado, uma boa mística deve adequar se às circunstâncias concretas de ocasião, lugar e público. As mais elaboradas condensam o tempo: evocam o passado de lutas, presentificando-o, encenam mazelas contemporâneas e seu enfrentamento na luta sem-terra, antecipam e projetam o futuro desejado como seu fruto.
As místicas não estão imunes à rotinização, que se busca evitar. Elas prestam-se a diferentes objetivos, mas estão sujeitas a eventualmente não cumprí-los. Segundo as circunstâncias, as místicas podem assumir caráter dramático, épico ou festivo, exibir conteúdos de alegria e celebração ou de revolta e indignação, frequentemente conjugando os. A mística de abertura do IV Congresso Nacional foi claramente uma cerimônia festiva, mas há também místicas fúnebres, destinadas, por exemplo, a celebrar os mártires da luta ou a reanimar a força coletiva em situações funestas. Místicas também são empregadas com a finalidade expiatória de dirimir conflitos internos, quando eventualmente podem apresentar uma face menos benevolente. Sendo essencialmente uma mística da luta, a mística sem-terra e seus rituais buscam estimular a confiança na ação coletiva. Acionando diferentes meios de comunicação, elas são carregadas de sentido pedagógico, eis porque embora sejam tarefa de equipes rotativas, elas são consideradas competência de militantes experientes, especialmente ligados ao setor de formação do MST.
Classificadas como “princípio organizativo” e “método de trabalho de base” as místicas são explicitamente empregadas como ferramenta da organização política. Nesse aspecto em particular cumprem muitas atribuições, entre as quais o relevante papel de renovação e reafirmação da identidade sem-terra, fundamental à construção de um “nós”, sentimento de pertença ao coletivo. Além disso, a mística galvaniza a meta imediata de conquistar a terra que reúne a base sem-terra e integra-a ao objetivo mais amplo de mudança social, que guia os militantes. Ela o faz fundamentalmente ao consistir numa linguagem partilhada e constituir um universo simbólico comum para sujeitos com distintas experiências e expectativas sociais. Por outro lado, aspectos contextuais e de circunstância presentes na escolha de símbolos ou em variações narrativas permitem veicular objetivos políticos específicos que, comungados, orientam e dão eficiência às ações coletivas momentaneamente definidas pela direção política do MST. Dessa maneira, a mística garante a comunicação de significados, objetivos e propósitos “estratégicos” e “táticos”, contribuindo para a “organicidade” do MST, isto é, a boa relação entre seus diferentes setores e níveis organizativos ou a coalescência de suas partes. Linguagem partilhada referida à cosmologia, sedimenta-a em compromisso emocional com o coletivo.
Sendo essencialmente uma mística da luta ou mística da ação ela é, também, uma política do sentido. Ao mesmo tempo categoria do pensamento e prática política, a mística perpassa múltiplas esferas de ação e distintas atividades no MST, sendo parte do cotidiano sem-terra. Se observarmos bem elas cumprem muitas funções políticas e organizativas: ajudam a forjar a identidade sem-terra; criam um sujeito coletivo; reforçam a organicidade ao integrar setores e coletivos; garantem a unidade da organização, especialmente entre base social e militância; contribuem para a formação política e coesão ideológica do Movimento; dão conteúdo emocional à sua plataforma política; comunicam objetivos políticos contextuais; expressam valores e sentidos para dentro e para fora do Movimento; atuam na disputa de ideias e valores. Como se vê, não é pouca coisa, o que atesta o valor fundamental da mística para o MST e sua luta, a luta pela realização do sonho da reforma agrária e construção de uma sociedade mais justa, igual e fraterna.
*Editado por Fernanda Alcântara