De jabuticabas a ervas daninhas: o tropicalismo esdrúxulo brasileiro
por Henrique Morrone
A jabuticaba é doce, honesta, saborosa. Não tem culpa de nada. Usá-la para explicar as aberrações da economia brasileira é quase uma injustiça botânica. Quando atribuímos nossas anomalias econômicas a ela, fazemos parecer que a culpa é da fruta — quando, na verdade, o problema está no jardim. Para nomear nossas especificidades negativas, temos coisas muito mais adequadas: as ervas daninhas, ideias e instituições que prosperam em solo fértil para o erro sempre que falta o jardineiro fiel que arranca equívocos antes que virem política.
O Brasil se especializou numa arte peculiar: transfigurar o conflito. Aqui, disputas distributivas aparecem mascaradas e embaladas como meras tecnicalidades neutras; interesses organizados surgem travestidos de “necessidades do mercado”; e as ervas daninhas ganham status de planta ornamental. Elas não apenas sobrevivem — elas são cultivadas, regadas diariamente com diagnósticos convenientes, metáforas erradas e modelos que economizam realidade. O resultado é previsível: um jardim tomado. Nesse mar de banzais — reverências automáticas a dogmas que não explicam o país, mas explicam quem ganha com ele parado — o que mais falta é o óbvio: reduzir os parasitas e deixar a árvore crescer.
O canteiro principal dessas plantas invasoras está no alto da colina institucional: a arquitetura da dívida pública e da política monetária. Ali vicejam os títulos pós-fixados à Selic e ao IPCA — dispositivos que transformam o sistema brasileiro numa estufa permanente para o rentismo. Não são meras escolhas técnicas, mas mecanismos que estabilizam retornos financeiros independentemente do ciclo econômico, blindam o investidor do risco e reorganizam toda a macroeconomia em função da preservação do ganho financeiro. Mas não se trata da “vingança dos rentistas”. Seria até reconfortante pensar assim. Vingança ainda é um sentimento humano, instável, reversível. O que existe é algo mais profundo: a supremacia incontestável do rentismo como forma de organização da economia brasileira.
A indexação e os títulos pós-fixados criam uma economia em que o risco é meticulosamente eliminado de um lado e depositado, como resíduo tóxico, do outro. Formam um sistema que opera sob uma velha lógica tropical: os ganhos são privatizados; as perdas são socializadas. E aqui reside uma das nossas maiores anomalias: nesse arranjo, a inflação não redistribui renda. Em economias sem indexação, a inflação corrói ativos financeiros e favorece devedores. No Brasil, ocorre o oposto: a inflação preserva quem está protegido pela indexação, enquanto transfere o custo para quem vive de salário, renda variável ou margem estrangulada. O retorno financeiro segue garantido, líquido e automático; o risco produtivo é empurrado para quem investe, trabalha, produz ou vende. A volatilidade macroeconômica é absorvida pelo Estado e distribuída pela sociedade como um custo silencioso. É uma fábrica de assimetrias: uma máquina que converte incerteza coletiva em renda privada, quase como uma fotossíntese invertida onde o calor da economia vira sombra para uns e sol pleno para outros.
Descendo a colina, o mesmo padrão se repete. O comércio brasileiro vende à vista pelo mesmo preço do parcelado. Isso não é gentileza — é poder de mercado. O custo financeiro do parcelamento já está embutido na margem, antes mesmo da compra existir. O risco de inadimplência vira preço. O custo do crédito vira margem. E a estrutura oligopolista garante que isso se transforme em comportamento-padrão, naturalizado como se fosse inevitável. Aqui também vale a velha regra tropical: retornos privatizados; riscos socializados.
O micro e o meso não são exceções: são extensões diretas da macro. São vasos diferentes, mas com as mesmas ervas daninhas crescendo com conforto institucional. Em todos os níveis, protege-se quem pode repassar risco — e pune-se quem não pode. O resultado é uma economia onde competir é arriscado e investir é custoso. Nesse cenário, o rentismo ganha fôlego. Onde a jabuticabeira — nossa capacidade produtiva, industrial, tecnológica — permanece sufocada por um ecossistema desenhado para favorecer quem vive da sombra, não do fruto.
O Brasil não está condenado à precariedade, nem à caricatura da jabuticaba econômica. O que nos condena é a persistência das ervas daninhas que escolhemos cultivar: instituições que naturalizam retornos garantidos, mercados que repassam risco como quem respira, políticas monetárias que protegem o rentismo e asfixiam o investimento. Não é destino; é escolha. Não é cultura; é arquitetura.
A jabuticabeira poderia crescer — com frutos abundantes, sombra generosa e raízes firmes. Mas é preciso um gesto simples e profundamente político: admitir que o jardim está mal cuidado. Enquanto a supremacia rentista ditar a paisagem, qualquer projeto de desenvolvimento será podado antes de brotar. O país real não precisa de novas metáforas para se explicar. Precisa de jardineiros menos fascinados pelas ervas daninhas e mais comprometidos com o que importa: deixar a árvore crescer, finalmente, à plena luz do sol.
Henrique Morrone é economista e professor da UFRGS.
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