O trabalhador e a fábrica do gozo
por Fábio C. Zuccolotto
“Trabalhadores do mundo, uni-vos!”.
O grito de Marx, lançado contra a miséria material do século XIX, hoje ressoa diante de uma miséria subjetiva mais refinada — e não menos devastadora. A alienação, conceito central do pensamento marxista, já não se limita à separação entre o trabalhador e o produto de seu trabalho. No capitalismo digital, ela se expande: é o próprio sujeito que se vê expropriado de sua linguagem, de seu desejo, de sua escuta.
No pensamento de Hegel (1770 – 1831), a alienação é o processo em que a consciência se torna estranha a si mesma, afastada da sua natureza real. Já no marxismo, ela é o processo em que o ser humano se afasta da sua natureza real, torna-se estranho a si mesmo, pois os objetos que ele produz passam a adquirir uma existência independente do seu próprio poder e antagônica aos seus interesses.
Perceba a inversão promovida por Marx (1818 – 1883) e Engels (1820 – 1895), outrora “jovens hegelianos”. Eles invertem o sentido do vetor do idealismo hegeliano. Ou seja, ao invés de suporem que as ideias estão no ar – e se é possível pensá-las elas serão factíveis – o materialismo histórico e dialético apresenta as ideias como potenciais que brotam do chão onde pisam os pés.
Assim, o fato de nos tornarmos estranhos a nós mesmos, afastados da nossa natureza real, passa a ser um fenômeno daquilo que vemos no mundo real e não daquilo que supomos. Por isso, na metateoria marxista, foram lançados tantos conceitos para dar conta daquilo que era próprio àquele período histórico, como os de fetichismo da mercadoria e de reificação.
Note, ainda, que, ao citar o pensamento de Hegel, escrevi que a alienação é o processo em que a consciência se torna estranha a si mesma, enquanto que, ao citar Marx, usei o termo ser humano para descrever aquilo que se afasta da sua natureza real no processo da alienação. Essa diferença sutil também revela a inversão do sentido no vetor filosófico do idealismo pelo materialismo, uma vez que Hegel trabalha a noção de consciência enquanto uma fenomenologia do espírito rumo a um saber absoluto, enquanto Marx constrói o conceito de uma consciência de classe do indivíduo na sociedade capitalista que ele vê, pisa e busca transformar.
Desse modo, torna-se fundamental compreendermos como naquele tempo, e desde sempre até então, a consciência era compreendida quase que como um sinônimo do conhecer/compreender/saber de algo, que era inerente à experiência do indivíduo, assim como a sua alienação em relação aos objetos que ele cria. Portanto, aquilo que era desconhecido e inconsciente estava fora do indivíduo que era, daquilo, alienado.
Esse paradigma da consciência é quebrado quando Freud (1856 – 1939) conceitua o Inconsciente enquanto uma instância interna ao psiquismo. Portanto, deslocando a dimensão da alienação para aquilo que, em proporção infinitamente maior em relação ao consciente, reside dentro do próprio indivíduo; e não nos objetos. O Eu consciente não é o senhor em sua morada; ele é guiado pelo desejo pulsionado pelo inconsciente.
Essa introdução foi necessária para apresentar a ideia de que na era do capital informacional, a alienação já não opera apenas nos moldes clássicos descritos por Marx – a cisão entre o trabalhador e o fruto de sua produção. Hoje, ela se desloca para uma arena mais sutil: a do desejo capturado, calibrado e devolvido sob medida pelas engrenagens dos algoritmos.
As Big Techs não administram apenas dados: administram a subjetividade daquele que denominei como o sujeito entrópico. Elas não apenas exploram força de trabalho: elas modulam o inconsciente. São engenheiras daquilo que alguns têm chamado de dopamina algorítmica – uma lógica de estímulo intermitente, desenhada para ativar os circuitos de recompensa do cérebro e manter o sujeito em um estado de semieuforia permanente, de clique em clique, de story em story, de consumo em consumo.
Não se trata apenas de vender produtos, mas de produzir sujeitos vendáveis: atentos, reativos, performáticos, sempre conectados, reificados. Elas capturam o gozo e o reinjetam como produto — seja na forma de dopamina algorítmica, seja na ilusão de autonomia vendida como liberdade de escolha. O sujeito se torna usuário, perfil, avatar, métrica: um fragmento calculável de si mesmo.
De tal forma que a definição de reificação, no capitalismo presente e ultraliberal, só pode ser tomada por sua acepção por extensão de sentido, como aufere o dicionário Houaiss: qualquer processo em que uma realidade social ou subjetiva de natureza dinâmica e criativa passa a apresentar determinadas características – fixidez, automatismo, passividade – de um objeto inorgânico, perdendo sua autonomia e autoconsciência.
O que se aliena aqui – no interior do psiquismo do sujeito entrópico das redes sociais virtuais – não é só o tempo, mas o próprio desejo, agora convertido em um ativo do patrimônio das Big Techs, transformado em dado, explorado como insumo, objeto, produto. Lacan nos advertia: o sujeito é dividido; e é dessa divisão que nasce o desejo. Mas a economia digital, com seu vocabulário de engajamento e o seu imperativo de visibilidade, tenta tamponar essa divisão com simulacros de completude.
O gozo, transformado em capital psíquico-virtualizado, circula sob a lógica do like, da notificação, da viralização em um continuum que rompe com pilares estruturantes do pertencimento narcísico, como memória, tempo e espaço. A alienação se atualiza como plenitude simulada, onde o desejo é constantemente induzido a desejar mais do mesmo.
No âmbito social, quando quase tudo vira performance, quase nada mais é genuíno. Quando quase tudo é experiência imersiva, quase nada mais o é; e o que resta para além da ansiedade é o vazio. Na intimidade, quando o gozo é compulsivo, o que resta é culpa e dor.
A promessa de liberdade oferecida pelas plataformas digitais é uma cortina de fumaça: no fundo, trata-se de prender o sujeito não à máquina, como no início da modernidade, mas à sua própria imagem espelhada – e monetizada. A alienação torna-se, então, uma alienação do seu próprio potencial-inconsciente, reconfigurado segundo os interesses do mercado, em sua faceta ultraliberal e promotora do neofascismo.
Recuperar a escuta, sustentar o silêncio, resistir à captura do desejo por sistemas automatizados e promotores do excesso, aprender a perder objetos externos para ganhar a si próprio, a sua consciência e o seu inconsciente – talvez essas sejam as tarefas egóicas e heroicas do nosso tempo.
Isso, para que sobrevivam a ética e a solidariedade. Pois, ao fim, o apelo de Marx ganha uma ressonância necessária: “Trabalhadores do mundo, uni-vos!” – não apenas contra a exploração econômica, mas, antes, contra a espoliação dos seus próprios desejos.
Sem eles não há consciência, nem luta.
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Fábio C. Zuccolotto é psicanalista teórico e clínico, autor do site Café com Pepino | Psicanálise, cultura e redes sociais e cientista social pela Universidade Estadual de Campinas.
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