O falso rombo da Previdência Social

Por: Sergio Pardal Freudenthal.

O rombo na Previdência Social, tão falado e pouco comprovado, não passa de um fetiche da tecnocracia medrada no Planalto, com números escandalosos que não merecem crédito. O próprio Ministro Carlos Lupi reconheceu, em entrevistas, que os algarismos não representam a realidade. Apontam um déficit de R$ 250 bilhões, contabilizando a Seguridade Social em seu todo, Previdência, Assistência e Saúde, como se uma das atuais razões deficitárias fossem os benefícios previstos na LOAS, Lei Orgânica da Assistência Social; ou seria de R$ 319 bilhões, contando todo o sistema previdenciário, Regime Geral e regimes próprios dos servidores públicos, civis e militares. No primeiro caso, vale ressaltar que Saúde e Assistência Social são obrigações do Estado, e no segundo, que as aposentadorias dos servidores públicos, civis ou militares, eram, até 1998, continuidade dos salários, sem contribuição para tanto e sob responsabilidade dos empregadores públicos – Prefeituras, Estados ou a União. Assim, só a partir daí, 1998, os regimes próprios de Previdência Social dos servidores públicos passaram a receber contribuições visando aposentadorias, carregando por muito tempo o “déficit”. Sem que se possa olvidar dos valores mais altos recebidos pela “elite” do funcionalismo, muitas vezes ultrapassando o limite máximo.

Em tempos recentíssimos, apontaram que o déficit do Regime Geral (INSS) alcançava R$ 26,2 bilhões (bem menos, não?), mas esqueceram de observar, especialmente no momento atual, a informalidade nas relações de trabalho e as desonerações nas folhas de pagamento.

A garantia efetiva da nossa Previdência Social está nos contratos formais de trabalho, calculando-se as contribuições, dos trabalhadores e dos empregadores, sobre os salários e remunerações. Para recuperar a Previdência Social é preciso acabar com as desonerações e fazer crescer a economia, com aumento da produção e dos empregos.

Os criadores de números assustadores alegam que a Previdência estaria falida porque os trabalhadores cismam de viver mais tempo e deveriam, portanto, ter benefícios cortados, reduzidos ou concedidos mais tarde. Mentira! O Estado nunca cumpriu suas obrigações contributivas, e seguiu sempre “metendo a mão” de maneira legal ou ilegal. Na atualidade, temos, além das relações de trabalho sem quaisquer garantias, a manutenção das desonerações salariais. Ao invés de pagar 20% de sua folha, englobando salários, remunerações e pró labores, os patrões querem contribuir com apenas de 1% a 4,5%, sobre o “faturamento” da empresa. No Governo Dilma, quando o erro foi cometido, prometiam novos empregos em troca da desoneração; agora somente ameaçam com despedimentos se não houver a continuidade.

Portanto, se o pretenso déficit, R$ 250 bilhões, se refere à Seguridade Social, a falha está na União, que ao invés de participar no custeio, principalmente na Assistência Social, continuou seus desvios através do DRU (Desvinculação de Receitas da União). Quando apontam o sistema previdenciário como um todo, R$ 319 bilhões, “esquecem-se” que até 1998 a aposentadoria dos servidores públicos, civis e militares, era a continuidade dos seus salários, sob responsabilidade do Estado. E a Fundação ANFIP, muito mais confiável que a tecnocracia planaltina, afirma que o Regime Geral da Previdência Social (INSS) segue superavitário, apesar das informalidades nas relações de trabalho e das desonerações nas folhas de pagamento.

Em seus últimos pretextos, os tecnocratas tupiniquins culparam, além dos benefícios assistenciais (BPC), os auxílios-doença por curto período resultantes das concessões sem perícia presencial, apenas por análise de exames e laudos médicos. Ora, na realidade, o crescimento dos auxílios-doença decorreu da fila de um milhão e meio de segurados aguardando perícias, resultado do anterior desgoverno de extrema-direita, que tantos males causou.

Vale repetir: a preservação da Seguridade Social, especialmente da Previdência, depende do crescimento econômico e das relações de trabalho.

A nossa Previdência Social nasce em 1923, com as Caixas de Previdência dos ferroviários. Depois vieram os Institutos de Aposentadoria e Pensões por categorias, resultando no INPS, Instituto Nacional de Previdência Social, atual INSS, Instituto Nacional do Seguro Social. Para que ninguém tenha dúvidas sobre a “excitante” condição superavitária adquirida, ao menos nos primeiros tempos, basta observar as construções de Brasília, da Ponte Rio-Niterói, da Binacional de Itaipu e da “fantástica” Rodovia Transamazônica, todas com o dinheiro do sistema previdenciário. Seja na democracia ou no arbítrio, sempre fizeram uso das “sobras” do Seguro Social. Tais seguros, como o nosso, são regimes de repartição: o que entra enquanto contribuições é o que se usa para pagar benefícios. Como nos ensinou o saudoso Rio Nogueira, estatístico e atuário de renome, deveria ser obrigatória a formação de um fundo de reserva, acumulando por volta de seis vezes o valor mensal de despesas. Seria utilizado e recomposto conforme o humor da Economia.

O fundo de reserva nem mesmo foi idealizado, a participação do Estado no custeio também nunca aconteceu e cada vez mais as contas ficam confusas, seja com foco na Seguridade Social como um todo, incluindo Saúde e Assistência Social, ou computando o sistema previdenciário incluindo os servidores públicos, civis ou militares.

Tudo muda no mundo, inclusive as condições demográficas e as relações de trabalho. Com a redução do superávit previdenciário em nosso país (o que não significa sua transformação em déficit), cálculos tecnocráticos há muito tempo antecipavam o anúncio do tal rombo, sem qualquer censo atuarial que sustentasse essa tese. A nossa secular Previdência Social já paga muitos benefícios, realmente não poderia construir uma nova Brasília ou estradas por aí, mas ainda segue superavitária, apesar de todas as bagunças atrapalhando.

As reformas neoliberais reduziram substancialmente direitos dos trabalhadores conquistados na Constituição Cidadã de 1988. Iniciam-se, para a Previdência Social, em 1998, com a Emenda Constitucional 20, culminando com a EC 103, em 2019. Em todo o mundo, a destruição do Estado do Bem-Estar Social, onde ele existia, fomentou o crescimento da miséria e da fome, e ainda mais onde esse modelo social não passava de uma promessa, como em nosso País. Nas relações de trabalho vieram a terceirização, a pejotização, a uberização e os contratos de trabalho intermitentes, quando o trabalhador fica à disposição do patrão, recebendo apenas pelo tempo trabalhado. O excesso de informalidade penaliza bastante, além do próprio trabalhador, a Previdência Social.

Três décadas de políticas econômicas recessivas prometendo um futuro melhor, foram desmentidas da pior forma, com a ocorrência da pandemia de Covid-19. Sofrendo erros e desmandos, principalmente após o Golpe de 2016, o SUS (Sistema Único de Saúde) e o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) foram nossos gigantes no enfrentamento da doença e da paralisação econômica que se fez necessária.

A Constituição de 1988 nos brindou com a Seguridade Social, englobando a Previdência, a Saúde e a Assistência Social, sendo as duas últimas obrigações do Estado, sob responsabilidade do Tesouro Nacional, sem nem mesmo depender de contribuições diretas ou mesmo de tributos sociais, como o Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), ou o CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido).

A Previdência Social tem relação direta com os contratos formais de trabalho e os salários e remunerações. Por um lado, isso permite ao trabalhador exigir aposentadorias efetivamente substitutivas de sua renda mensal; por outro, admite a radicalização em cálculos destinados a preservar o dito “equilíbrio financeiro e atuarial”, como a média das contribuições de toda vida laboral. Até 1998, a base de cálculo dos benefícios era a média dos 36 últimos salários, buscando a manutenção do segurado em condições próximas a que teria em atividade; a primeira reforma dispôs que seriam os maiores salários que representassem 80% de todos; e a EC de 2019 impôs a média de todas as contribuições a partir do Plano Real (1994).

Para as inevitáveis novas formas de trabalho, que implicam em alto grau de informalidade, também será necessária alguma regulamentação e a recuperação da credibilidade do sistema previdenciário. Regularizar ubers e motoboys, com as devidas obrigações previdenciárias, inclusive dos contratantes, é um bom objetivo, mas como se confunde bastante “empreendedorismo” com trabalho “por conta própria”, é preciso apontar os benefícios das contribuições dos trabalhadores.

A Previdência é o único tipo de seguro que paga benefícios de prestação mensal continuada nos casos de doença, invalidez ou morte, o que destaca a sua importância do ponto de vista do indivíduo. Porém, também precisa dar retornos financeiros razoáveis, fazendo valer a pena contribuir, e os atuais cálculos de aposentadorias e pensões são a maior perversidade da EC 103. A proposta original conseguia ser pior ainda. Pretendia destruir o regime de repartição, transformando a previdência pública em contas individuais de capitalização, sem nem se importar com os atuais aposentados e pensionistas.

Pensadores neoliberais defendem um Seguro Social de apenas um salário mínimo. Na prática, se valem dos cálculos atuais previstos na Emenda, com a média de todas as contribuições da vida do segurado e com a aplicação de percentuais bastante redutores de sua renda mensal. E ainda falam em desvincular o piso mínimo dos benefícios substitutivos da remuneração, alegando que os “aumentos reais” do Salário Mínimo não fariam parte das contribuições do segurado. Se a garantia para a manutenção do trabalhador e de sua família deveria ser o Salário Mínimo, como é que o menor valor das aposentadorias e pensões poderia ser desvinculado? É preciso resistir, defender esse dispositivo constitucional como cláusula pétrea, não admitir modificação.

Os cálculos atuais, bastante prejudiciais aos segurados, estão dispostos no artigo 26 e parágrafos da Emenda de 2019. Para nós, é muito importante a abertura do caput: “até que lei discipline o cálculo dos benefícios do regime próprio de previdência social da União e do Regime Geral de Previdência Social”; depois despeja-se o rol de maldades. Pois a lei que comanda a expectativa – direitos e cálculos – dos aposentados e pensionistas do Regime Geral é a 8.213, de 24/07/1991, uma lei ordinária, que sofreu incontáveis modificações desde então. Para completar, a redação original, quanto aos cálculos dos benefícios, é uma verdadeira pérola, no seu melhor sentido, iniciando o cálculo da aposentadoria por invalidez em 80% da média e a por idade em 70%, com o acréscimo, em ambas, de 1% para cada ano de contribuição; a pensão por morte seria calculada em 80% da aposentadoria, mais 10% para cada dependente.

Para confeccionar ou alterar leis ordinárias, como a 8.213/1991, basta maioria simples no Congresso Nacional. A Emenda Constitucional, objeto dessa crítica, dispõe como base de cálculo a média de todas as contribuições desde julho de 1994 (caput – início supracitado), com os percentuais a serem aplicados (§ 2º) reduzindo substancialmente a renda mensal dos segurados. Em todas as aposentadorias, inclusive por invalidez, calcula-se em 60% da média para quem tiver até 20 anos de contribuição para os homens e 15 anos para as mulheres, somando-se, a partir do ano seguinte, 2% ao ano. Para a pensão por morte, o recuo alcançou as maldades dos tempos da ditadura: 50% da aposentadoria do falecido, mais 10% para cada dependente.

A base de cálculo das pensões por morte é sempre a aposentadoria do falecido. Se ainda não tivesse completado as exigências para o benefício, a base seria a aposentadoria por invalidez que receberia se ao invés de morrer ficasse inválido. Assim, se um trabalhador falece com menos do que 20 anos de contribuição e deixando como sua dependente apenas a viúva, ela receberia 60% de 60%, isso mesmo, 36% da média de contribuições do de cujus. Imaginemos que a média contributiva houvesse atingido 5 mil reais; 60% seriam 3 mil reais e 60% de novo chegaria a R$ 1.800. O casal vivia com 5 mil reais, mas a viúva sozinha deverá sobreviver com apenas R$ 1.800.

A Lei Federal, em sua redação original de 1991, como já falamos acima, determinava a aposentadoria por invalidez em 80% da média e a por idade em 70%, com o acréscimo, em ambas, de 1% para cada ano de contribuição, até o máximo de 100%; sendo a pensão por morte calculada em 80% da aposentadoria, mais 10% para cada dependente.

Com cálculos mais justos, com 20 anos de contribuição, a invalidez seria em 100% da média e a pensão em 90%. A média de 5 mil reais, com 20 anos de contribuição, resultaria na pensão por morte no valor de R$ 4.500.

Por meio de lei federal ordinária, conforme dispõe o supracitado caput do art. 26 da EC 103, será possível recompor cálculos mais justos e dignos para as aposentadorias e pensões. Basta, para tanto, maioria simples no Congresso Nacional, sem as dificuldades de uma emenda constitucional.

 

Para resolver qualquer rombo na Previdência Social vale lembrar o começo do nosso Seguro, que copia o alemão, com a participação tripartite: empregado, empregador e Estado, somando 24% das folhas salariais, 8% para cada um. Nem é preciso dizer que o terceiro participante é o maior devedor.

As desonerações, que nunca renderam qualquer emprego ou garantia, devem acabar. As contribuições previdenciárias devem ser calculadas sobre as folhas de pagamentos. A preservação da Previdência Social exige também a recuperação de sua confiabilidade, o que não é possível com tantas vilanias presentes nas improbidades dispostas na norma atual. Que se corrijam as iniquidades com a velocidade de uma lei ordinária!

A Previdência Social foi criada para o cumprimento de importantes funções sociais: garantir ao segurado condições próximas a que teria em atividade; abrir vagas no mercado de trabalho, com a efetiva aposentadoria (retirar-se para os seus aposentos) para os que têm direito; e distribuir renda em todo o País, como o INSS historicamente vem fazendo.

Das Caixas de Previdência por empresas (CAPRE), passando pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões por categorias (IAPs), chegamos ao Instituto Nacional da Previdência Social (INPS), consolidado no atual Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), formando com o Sistema Único de Saúde (SUS) e com a Assistência Social, a Seguridade Social consagrada na Constituição Federal de 1988. Garantir a credibilidade de todo o sistema previdenciário, agora também com os Regimes Próprios dos Servidores Públicos, passa obrigatoriamente pela correção dos cálculos dispostos provisoriamente na EC 103/2019.

O enfrentamento da tecnocracia neoliberal tem que ser constante, contrapondo cientificamente os números que apresentam no denominado “rombo”, e, especialmente sobre a forma de garantir a nossa Previdência Social, em seu caráter contributivo. Ao invés de condenar aposentados e pensionistas a morrerem de fome com rendas mensais irrisórias, devemos apostar no crescimento econômico e do mercado de trabalho, além de acabar rapidamente com desonerações nas folhas de pagamento e desvios dos recursos previdenciários de contribuições para obrigações assistenciais do Estado. Precisamos recuperar a História.

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Last Update: 10/03/2025