No dia 21 de outubro de 2022, o tecladista e compositor Léo Nazário comemorou 40 anos de carreira no Sesc Pompeia, na cidade de São Paulo, ao lado dos contrabaixistas Zeca Assumpção e Rodolfo Stroeter, do baterista Nenê (Realcino Lima Filho) e do saxofonista e flautista Teco Cardoso. Por que é tão importante celebrar a carreira de Léo Nazário? Sem dúvida, Léo é um dos pianistas mais singulares do Brasil, sendo bastante difícil encontrar outro artista com as mesmas concepções musicais.

A vanguarda paulistana, vale lembrar, está diretamente vinculada ao movimento de música independente dos finais dos anos de 1970, no qual os músicos, na maioria músicos instrumentais, resolveram produzir seus próprios trabalhos – no meio de então, isto é, os LPs –, contrapondo-se, assim, à indústria fonográfica da época, bastante imersa na cultura de massas. Pois bem, o primeiro álbum independente de música instrumental brasileira foi o LP “Marcha sobre a cidade”, lançado em 1979 por iniciativa do Grupo Um, cujo pianista e um dos compositores é o Léo Nazário.

Nessas circunstâncias, salientamos dois aspectos de seu trabalho, ambos revolucionários, o político e o estético. Antes de tudo, ir de encontro à indústria cultural mediante às próprias custas, com vistas a divulgar a arte e não a simplesmente ganhar dinheiro, já representa combater não apenas o capitalismo, mas o imperialismo. Cultura de massas e produção em série de valores culturais são mecanismos do mesmo processo político de dominação econômica; em outras palavras, a dominação dos países imperialistas também incide sobre a cultura, silenciando-se quaisquer singularidades em nome das linhas mestras do mercado. Na música, especificamente, busca-se normatizar timbres por meio da indústria de fabricação dos instrumentos musicais, com as marcas concorrentes transformando os artistas em verdadeiros garotos-propaganda; além da regularização dos timbres, devem ser consideradas as padronizações de ritmos, melodias, harmonias, enfim, dos sistemas musicais; ademais, na canção popular há banalização das vozes, dos temas e da poesia.

Nessa luta contra o mercado, o que faria da arte de Léo Nazário algo singular e potencialmente perturbador? Para responder isso, precisamos adentrar os aspectos estéticos de suas concepções musicais.

Léo Nazário é irmão de Zé Eduardo Nazário, certamente um dos melhores bateristas não apenas do Brasil, mas da história da bateria; para confirmar isso, basta escutar atentamente “Samba de Ogum”, a primeira faixa do álbum “Soccer Land”, um dueto entre ele e o saxofonista Ivo Perelman. Zé Nazário, rememorando aqueles tempos dos anos 1970, costuma se queixar dos estúdios de gravação, nos quais os percussionistas já se deparavam com baterias previamente montadas e equalizadas, impedindo, dessa maneira, quaisquer inovações rítmicas e timbrísticas. Inovando tanto nos modos de composição quanto na concepção dos teclados, Léo Nazário, semelhantemente ao irmão e aos demais artistas criativos, dificilmente contaria com a colaboração das gravadoras comerciais, capazes de dispensar artistas tais quais Hermeto Pascoal e outros, embora inovadores, bem menos radicais, por exemplo, Edu Lobo.

Léo Nazário, igualmente a muitos artistas de sua geração, é herdeiro da bossa-nova, do hard-bop e do free jazz, entretanto, ao complexificar as relações entre tema, improviso e arranjo, Léo dialoga com a música eletrônica; não a música eletrônica comercial, imersa em timbres padronizados, com simulações de metais ou de orquestras de cordas, mas a música eletrônica das vanguardas do século XX, nas quais o músico interfere na confecção do timbre. Na composição “Mobile / stabile”, do álbum “Reflexões sobre a crise do desejo”, 1981, o tema regente para os improvisos de piano, contrabaixo e bateria, é uma faixa eletrônica originalmente gravada em fita magnética; em “A flor de plástico incinerada I”, do álbum “Flor de plástico incinerada”, 1983, tem concepção eletroacústica; “Balada unidimensional”, dedicada a Paulo Bellinati, é uma peça para violão, sons concretos e eletrônicos. Evidentemente, tais diálogos são frequentes na música erudita brasileira, entretanto, na música instrumental popular brasileira, Léo Nazário, se não é o pioneiro, certamente foi um deles.

Lamentavelmente, a vanguarda paulistana, embora levada adiante por músicos instrumentais, celebrizou-se com artistas próximos do gênero canção, já celebrizado na música comercial. Dessa maneira, com o trabalho esteticamente revolucionário inaugurado em “Marcha sobre a cidade” e desenvolvido em outros projetos, Léo Nazário e o Grupo Um levantavam outra discussão, isto é, a discussão política na qual o músico instrumental, alijado de sua participação na indústria fonográfica, explicita seu papel de proletário na música brasileira.

Em várias entrevistas, Hermeto Pascoal, quem teve o prazer de ser acompanhado durante alguns anos pelos irmãos Nazário, insiste na valorização da música popular por meio de participações expressivas dos músicos instrumentais, por exemplo, dando maior liberdade e espaço a eles em meio aos arranjos ou inserindo-se solos entre as letras de canção, quer dizer, indo de encontro às linhas padronizadas da indústria fonográfica. Fora dessas condições mínimas de trabalhar artisticamente, os instrumentistas são relegados a meros acompanhantes, sendo, portanto, lançados em verdadeiras esteiras de produção musical e facilmente substituíveis; em outras palavras, os músicos são proletarizados. Ora, o próprio Hermeto Pascoal, depois de atritos com a Warner Brothers, passou a gravar na Som da Gente a partir dos anos 1980, uma gravadora independente, gerada na euforia da música independente, fruto do movimento idealizado, entre tantos, pelo Grupo Um, portanto, por Léo Nazário.

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Última Atualização: 14/08/2024