O sol por testemunha

por Daniel Afonso da Silva

Alain Delon (1935-2024) se foi e levou consigo o que havia de mais majestoso em sua geração que era a joie de vivre.[1] Um jeito especial de fluir a vida e o viver. Sem preconceitos enrustidos. Sem presunções. Com ações sempre declaradas e expressões matizadas à flor da pele. Sempre de peito aberto. Tendo o sol por testemunha.

2024 perdeu muito do que restava dessa démarche humana.

Os olhos os verdes de Sinatra parecem que não brilham mais. O identitarismo avançou por quase tudo. E a tentação woke deformou a naturalidade das relações. Tapando o sol com peneiras e aumentando o fator de proteção do filtro solar. Tudo por medo se queimar. A autenticidade virou quase crime. O anti-intelectualismo abocanhou parcelas imensas do espaço público. Nelson Rodrigues gargalha por onde estiver. Os idiotas – em grito – tomaram conta. Idiotas são néscios. Néscios são estultos. Estultos são covardes. Covardes não se lançam ao sol por testemunha.

Que ano!

2024.

A tensão russo-ucraniana enveredou para a sua fase de Cold Peace.[2] O momentum médio-oriental foi naturalizado.[3] A queda do mandatário da Síria acrescentou mais problemas que soluções ao conjunto da situação. Os europeus – e, notadamente, os franceses – conseguiram feitos simplesmente extraordinários. Sediaram Jogos Olímpicos irrepreensíveis e reinauguraram a Catedral Notre Dame de Paris.[4] Entretanto, concomitante, a maior parte dos países da região se lançou ao desconhecido.

Os húngaros adotaram Órban por demiurgo. Os italianos passaram a acreditar que Meloni virou a quintessência do após-Berlusconi. Os ibéricos aperfeiçoaram a sua geringonça. Os espanhóis, sem Juan Carlos, o monarca eterno, perderam algo invisível do seu vigor. O mesmo aplicável para o Reino Unido. Sir Charles III é cultivado, mas sem tempero. Sem contar que as chagas do Brexit ainda estão expostas. O após pandemia também. O rompimento com Bruxelas anacronizou o significado da cumplicidade entre europeus. A imigração – legal e ilegal, um dos argumentos para o exit – só aumentou depois de 2020. O desemprego e a queda do poder de compra – outro argumento para a debandada – também só se degradaram nesse entremeio. E não apenas pela pandemia.

Mas o pior dos cheiros ainda vem da França.

O general De Gaulle teve motivos eloquentes para virar-se em túmulos. Os seus sucessores deformaram o regime político que ele criou. A Quinta República naufraga. Um antigo presidente da República, Nicolas Sarkozy, vai cumprir prisão fechada sob o imperativo da humilhante tacha da tornozeleira eletrônica.[5] O presidente Macron, por sua vez, conseguiu terminar o ano como um desastre sem reparos.[6]

Venceu as eleições em 2017, mas perdeu alma, a joie de vivre.

Voltou a vencer em 2022, mas perdeu o que lhe restava de estatura para envergar as vestes que um dia serviram ao herói da France Libre, o general De Gaulle.

A dissolução da Assembleia Nacional em junho foi um equívoco.[7] Um coup de théâtre. Diante da incapacidade de conter a ascensão do movimento de Marine Le Pen, Macron baralhou as cartas eleitorais. Convocou novas eleições. Que não deixaram dúvidas. Reconfirmaram a força dos herdeiros de Jean-Marie Le Pen. E começaram a lançar a França ao desconhecido.[8]

Ninguém ganhou nem perdeu o escrutínio. Ninguém foi capaz de fazer maioria. E sem maioria parlamentar, o regime não funciona. Retroage à guerra de partidos. Aos jogos de salão. À Quarta ou Terceira República. Sem primeiro-ministro credível nem consistência na composição de governos.

O quarto governo, sob a presidência de Emmanuel Macron, em doze meses, foi composto às vésperas do Natal sem nenhuma promessa de conseguir atravessar o inverno.

Eis a França.

O contraponto a tudo isso veio do outro lado do Atlântico.

Veio dos Estados Unidos, e com Donald J. Trump.

Sim.

Contrário a todas as aparências, o retorno de Donald J. Trump foi o maior feito político e planetário do ano. Foi a única verdadeira intenção em reabilitar os feitos de uma geração que teve o sol por testemunha.

Fazer política é fazer teatro. Já sabiam os gregos.

Joe Biden – havia muito – perdeu o gosto por performar. Kamala Harris nunca soube. E Donald J. Trump esmagou quem ousou imaginar que ele não sabia bailar.[9]

A ostensiva perseguição judicial contra ele foi, assim, acoimada pela sua irresistível popularidade entre os norte-americanos. Goste-se ou não. Defenda-se ou não. Acredite-se ou não.

Entre os norte-americanos, vale lembrar, desde os Founding Fathers, a política segue acima do judiciário. A vox populi jamais chegou perto da voz de Deus. Mas sempre passou bem perto da consciência nacional. De maneira que a trajetória norte-americana tem legado a conduta de jamais se inviabilizar juridicamente políticos com predicados para mandatários da nação.

Watergate foi uma efeméride outlier. Sem precedente.

O assassinato do presidente Kennedy foi dramático e milhares de vezes mais grave que a agonia do presidente Nixon.

O mal-estar Monica Lewinsky deixou uma mácula insuperável na ficha do marido da senadora Hillary Clinton, mas continua bem distante das razões que conduziram o sucesso de Donald J. Trump, um bonifrate, em duas ocasiões, no país de Abraham Lincoln, que também se revira em túmulos.

O charme do “aluno primeiro da classe”, edulcorado pelos presidentes democratas de Carter ao Clinton ao Obama, trouxe consigo a falsa e perigosa tentação do politicamente correto. Eis a questão.

Barack Obama – formado em Harvard, bem casado, pai exemplar, amante dos animais, esportista, bom leitor, inveterado em meditação, macrobióticos e alimentação balanceada – conseguiu ser o presidente mais detestado da história dos Estados Unidos. Simplesmente por essa aparência de “o melhor”, “o primeiro”, “o cheiroso demais”.

A “América” não deixou de ser imperial nem racial entre 2008 e 2016. Os lemas de campanha de Obama, portanto, malograram da primeira à última inspiração.

Nem post-imperial country tampouco post-racial nation.

Também por isso, jamais um presidente norte-americano foi tão detestado pelo conjunto dos seguimentos negros do país e, ao mesmo tempo, tão detestado pelo conjunto dos seguimentos não-negros.

Impressionante.

Para além disso, a gestão obamiana da crise financeira mundial de 2008 foi pessimamente comunicada, embora tecnicamente bem-feita. Como consequência, o Occupy Wall Street continua ocupando corações e mentes em todas as partes. Os 99% venceram politicamente o 1% desmascarando a fraude do politicamente correto e levando ao poder o 0,00001% do 1% representados em Donald J. Trump e Elon Musk, que nada mais são que a negação cabal e integral do politicamente correto.

Trump – todos sabem – perdeu a reelição para o vírus em 2020. E as razões mais profundas até hoje não guardam consenso. Mas o fato foi que a crise sanitária avariou temporariamente o mantra do Make America Great Again. Mas, com a presidência Biden – que legou, simplesmente, duas guerras de dimensões planetárias completamente evitáveis na Eurásia e no Oriente Médio –, ficou impossível não se reabilitar o MAGA. E com ele, a única política que faz sentido desde a noite dos tempos: o interesse nacional.

“Fora da política não há salvação”, já enfatiza o professor Claudio Couto. Mas talvez, para 2025, seja o caso de se adicionar que sem genuíno interesse nacional também não. E, como se presume, para se ter interesse nacional vai necessário, insofismavelmente, ter-se sol por testemunha. Que alguém, por favor, lembre os senhores de Brasília de tudo isso.


[1] https://jornalggn.com.br/cinema/adeus-delon-por-daniel-afonso-da-silva/

[2] https://velhogeneral.com.br/2024/02/27/a-paz-gelada-russo-ucraniana/

[3] https://jornal.usp.br/artigos/tempos-estranhos-construidos-entre-nos/

[4] https://jornalggn.com.br/historia/o-momentum-olimpico-por-daniel-afonso-da-silva/

[5] https://aterraeredonda.com.br/a-condenacao-de-nicolas-sarkozy/

[6] https://jornalggn.com.br/europa/a-eleicao-francesa-por-daniel-afonso-da-silva/

[7] https://jornalggn.com.br/europa/destino-frances-por-daniel-afonso-da-silva/

[8] https://www.ihu.unisinos.br/categorias/647012-quando-a-franca-se-lanca-ao-desconhecido-artigo-de-daniel-afonso-da-silva

[9] https://jornalggn.com.br/internacional/a-sindrome-de-hamlet-por-daniel-afonso-da-silva/

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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Last Update: 02/01/2025