As investigações da Polícia Federal sobre a monumental fraude financeira no grupo Americanas têm adquirido ares cinematográficos. Casos amorosos, manipulação contábil escancarada e um rastro decenal de deliberados danos causados a todo o ecossistema comercial puxado pela gigante do varejo. Vai virar série de streaming no futuro!
A cobertura equilibrada e cuidadosa da imprensa sobre este bilionário esquema de corrupção privada contrasta com a indignação esbaforida dos editoriais dos jornais que tratam da corrupção da coisa pública. Considerado espaço moralmente asséptico, acredita-se que o setor privado seja disciplinado em seus malfeitos pela mão invisível do mercado.
Sob esta fé inabalável, a privatização é tratada como método infalível e incriticável de aprimoramento da gestão dos recursos da sociedade. Esta cegueira ideológica assume ares de negacionismo quando observamos os escândalos financeiros de empresas como Enron e Americanas, por exemplo.
Este diapasão ideológico regeu o silêncio estrondoso da imprensa sobre a reincidência, no estado de São Paulo, de mais uma privatização criminosa do bolsonarismo cometida contra o interesse público. Depois do escândalo da Eletrobras, grassa em São Paulo a privatização por encomenda, com concessões e venda de controle de empresas estatais sem concorrência.
Depois do aeroporto de Congonhas e do trem entre São Paulo e Campinas, o controle da Sabesp foi vendido a preços promocionais para uma empresa com pouca experiência no setor e para um grupo selecionado de instituições financeiras.
Os vícios do processo são tantos que vale a pena listá-los:
Em primeiro lugar, o contrato de consultoria com o IFC, braço do Banco Mundial, embute um incentivo financeiro de 45 milhões de reais para que a análise de viabilidade recomendasse a privatização. Se concluísse pela inviabilidade do processo, o IFC receberia apenas 8 milhões de reais. Qualquer semelhança com a compra de sentenças judiciais ou suborno de fiscais não é mera coincidência. Apenas este elemento seria suficiente para causar a mais estridente indignação da imprensa corporativa. Mas prevaleceu o silêncio misericordioso.
Depois, o leilão da venda de participação acionária da empresa, liderado pelo governador Tarcísio de Freitas, fracassou em gerar concorrência. Mas este fracasso foi programado. Apenas uma empresa teve interesse, a Equatorial, e o motivo é a construção de uma grande empresa de multiutilidades, isto é, especializada em gerir empresas estatais amortizadas pelos cidadãos e privatizadas a preço de banana. A Equatorial conta com uma experiência de dois anos no setor de saneamento, do serviço no Amapá, feita pelo então ministro da infraestrutura, atual governador de São Paulo. O governo Tarcísio sequer escondeu o arranjo, ao ser indagado sobre este problema: “Não é falta de concorrência, é uma aderência ao que a gente vem colocando desde o início”.
O modelo de venda das ações foi complexo e inédito. O acionista de referência escolhido, a Equatorial, recebeu 15% das ações, terá controle sobre 1/3 do conselho de administração para cuidar da gestão da empresa e cumprir o compromisso da universalização até 2029. Paralelamente, a venda diluída de outros 17% das ações da Sabesp foi feita para grandes bancos e fundos de investimento. A venda das ações foi feita com preços 22% abaixo do preço de mercado (67 de reais contra 87 de reais no último pregão antes da conclusão). O governo paulista abriu mão de 4 bilhões de reais com este deságio. Mas fica pior: avaliações do valor justo de longo prazo feitas por bancos para subsidiar participantes da privatização tinham um preço médio por ação de 94 de reais, 40% maior do que o obtido no leilão. Isso significa que São Paulo poderia ter arrecadado 5,9 bilhões de reais a mais no leilão.
Além disso, a execução do leilão foi atabalhoada, com a inserção de cláusulas a apenas cinco dias de sua efetivação. A complexidade foi desenhada para afastar concorrentes. Em um mercado que conta com pelo menos quatro grandes grupos privados de saneamento que operam no país (Aegea, BRK, Iguá, Águas do Brasil) com grande capacidade de financiamento e muito mais experiência do que a Equatorial, privatizar sem concorrência “a joia da coroa” do saneamento do Brasil – e a segunda maior empresa do mundo no setor–- deveria, novamente, fazer revirar as vísceras de quem carrega o moralismo lavajatista na veia.
Dentre as cláusulas polêmicas, está a “poison pill”, que obriga o acionista de referência a realizar uma oferta pública de aquisição do total das ações da Sabesp com um prêmio de 200% sobre o preço de mercado, se empresas e fundos por detrás deste acionista adquirirem 30% da participação da Sabesp. A maior e mais experiente concorrente da Equatorial no leilão, a Aegea, contestou fortemente esta cláusula ao longo do processo, mas foi ignorada. Por que será?
O flagrante conflito de interesses foi notado amplamente e reportado pela imprensa com uma casualidade espantosa. A presidente do conselho de administração da Sabesp, Karla Bertocco, integrava, até o início deste ano, o Conselho de Administração da Equatorial. Ela teria trocado uma remuneração milionária na Equatorial por um salário anual de 160 mil de reais na Sabesp. Dadas as informações estratégicas que a executiva detinha sobre ambas as empresas, esta porta giratória certamente influenciou os termos do processo de privatização. Se a banda tocar como no caso da Eletrobras – em que a remuneração dos executivos subiu 3.600% após a privatização – há razões para crer que Karla será muito bem recompensada, mas provavelmente em outra função dentro da Equatorial ou do governo Tarcísio.
Há outros vícios, mas pararei por aqui. Estes são suficientes para justificar a investigação criteriosa do processo. Dificilmente isso ocorrerá, porque os lucros envolvidos são imensos, bem como o arranjo entre governo Tarcísio, imprensa e grandes investidores está bem amarrado. A distribuição das ordens de compra das ações, no lote de 17% da participação, foi feita no ‘camarote VIP’ organizado pelo BTG.
Com o silêncio sepulcral do Tribunal de Contas do Estado, a privatização do maior ativo público paulista foi subsidiada com o dinheiro do contribuinte e vista com naturalidade pela patrulha liberal na imprensa.
Sob controle da Equatorial, o saneamento de São Paulo estará nas mãos de instituições como “o Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, as gestoras Atmos, Capital World Investors, Squadra Capital e o fundo americano de investimentos Blackrock”. É a financeirização de um serviço essencial à cidadania e central para o combate dos efeitos das mudanças climáticas.
Ao cercear a concorrência publicamente e terceirizar a venda das ações a um banco privado, o governo Tarcísio conseguiu levar a privatização uma oitava acima.