O Segredo, o embuste e a solução que já existe

Em meados de 2006, espalhou-se pelo Brasil, ainda sob a divulgação ampla dos DVDs falsificados que se encontrava em feiras por aí, um documentário que tinha a pretensão – ou dizia que tinha – de desvendar um grande mistério perdido no passado. Surfava no sucesso do filme “O Código da Vinci” (2006), de Ron Howard e estrelado por Tom Hanks e Ian McKellen, baseado em livro homônimo de Dan Brown, best-seller súbito de dois, três anos antes, que contava a história de mistérios e segredos escondidos pelas igrejas de Paris. No caso do inusitado documentário, ele era “O Segredo”, dirigido naquele mesmo ano por um desconhecido Drew Heriot, autor de diversos filmes de auto-ajuda.

O argumento misturava descobertas templárias e depoimentos de ditos cientistas e historiadores. Fazia amplo uso de trilhas sonoras épicas e jogos de luzes mostrando catacumbas e santuários que evocavam mistérios, com uma voz-over grandiloquente à Cid Moreira, ensejando uma descoberta de um segredo perdido por milênios. Ensebava ao máximo a narrativa até dar voz a vários depoentes.

Todos eles diziam que o “segredo” era a forma com que nossos pensamentos atraíam energias para mudar a realidade a nosso favor, sem apresentar caminhos científicos ou filosóficos que comprovassem ou inferissem isso. Nada além do depoimento de quem viu a vida mudar, igual a quaisquer programas sobre teologia da prosperidade apresentados por igrejas neopentecostais. Ao fim, o espectador saía com a certeza de que poderia pensar melhor a vida, espalhar fotos de seus desejos pela casa, mentalizar positivamente, entre outras coisas, para ficar rico. O filme falava deliberadamente em ficar rico.

Ou este mesmo espectador sentia que fora enganado e gastara seu dinheiro à toa, aliviado porque foram pelo menos só R$10 na feira de Ceilândia.

O segredo que é dinheiro (pra quem vende)

Documentário reúne depoimentos de pessoas que ficaram ricas com o “segredo”, sem fornecer dados mais sólidos sobre a validade da informação, como estatísticas, ou mesmo verificação de veracidade e idoneidade dos depoentes

Não é novidade que o que a pessoa emana, de alguma maneira, retorna para ela em resultados materiais ou emocionais. Esse fator foi pensado exaustivamente tanto por teólogos e filósofos cristãos e de denominações orientais – os muçulmanos são mais deterministas quanto a destino – quanto mesmo por cientistas, no campo dos estudos da psicologia ou da medicina aplicada à mente humana. Daí advém o principal embuste de “O Segredo”, que é vender ao público, de forma caricatural e ridicularizante, a promessa de uma vida melhor mediante atitudes excêntricas como espalhar fotos pela casa.

No campo da espiritualidade, o cristianismo aponta nisso a fé em Deus. Quando Jesus diz: “pedi e vos será dado, buscai e achareis, batei e vos abrirá” (Mateus, 7:7), esse é um trecho de no mínimo dez passagens, somente do Novo Testamento, que corrobora o mesmo tema do documentário. Já no eixo taoismo, confucionismo, doutrina juuche, xintoísmo e zen-budismo, que caracteriza as religiões do extremo oriente, espalhadas entre China, Coreia do Norte, Coreia do Sul e Japão, o equilíbrio das energias que conectam o humano com a existência, no eterno fluxo do yin e do yang, permite que a natureza e o tempo trabalhem junto com a própria iniciativa humana.

Mesmo os céticos, agnósticos e ateus, que se afastam de quaisquer conclusões sobre a realidade que não sejam materiais, testadas e comprovadas, conferem à mente humana e ao comportamento que dela advém a capacidade de interpretar melhor a realidade, com, por exemplo, o suporte da psicanálise, e assim atrair para si o que há de melhor. Nesse caso, não é propriamente a realidade que se molda magicamente em torno de si, mas o próprio humano que é capaz de enxergar onde a realidade se mostra mais adequada aos seus propósitos.

Então, por que o sucesso comercial?

O filme chegou a vender muito porque caiu na mão, inclusive, de celebridades americanas como a apresentadora Oprah Winfrey, a Hebe Camargo dos Estados Unidos – pra quem tiver idade suficiente para lembrar Hebe Camargo, fica a referência.

Se por pagamento, famoso jabá, ou por que esses famosos norte-americanos são dados a coisas exóticas, jamais saberemos. Fato é que fez sucesso lá também, e começou, por aqui, a alcançar sincretismo com o neopentecostalismo evangélico e, até hoje, encontra-se vídeos sobre essa teoria nas redes sociais.

O fato é que nós, seres humanos, perdemos o senso de coletivo na modernidade, já vide Chaplin em “Tempos Modernos” (1936), filme dirigido pelo mesmo autor. Naquele tempo, o ser humano deixa de ser coletivo para se tornar massa. Contudo, o que o velho mestre da comédia não poderia perceber é que, na segunda metade do século XX, seria estabelecida a pós-modernidade, em que o próprio conceito de massas e classe trabalhadora seria difuso.

Todos isolados, todos com seus celulares, caminhando sozinhos em meio a um mundo de injustiças. Mundo no qual a religião pré-moderna ganha status de solução insuficiente e obscurantista, e as utopias políticas modernas são vistas com ceticismo porque “não deram certo”, dada a falência do socialismo real do século XX e as atrocidades cometidas em nome do nacionalismo de países capitalistas.

Acaba sendo o que sobra…

Sem ter onde e como se organizar para buscar uma vida melhor, seja na luta coletiva, seja na experiência coletiva e prática da fé, soluções abstratas passam a fazer sentido, e as próprias denominações religiosas contemporâneas vão se moldando e criando discursos, vinculados a Deus, muito mais próximos de “O Segredo”.

E assim ocorre com a ciência, que começa a definir políticas públicas, inclusive, com base em atos de fé de que, mudando a forma como falamos ou entendemos a realidade, melhoraremos a qualidade de vida de grupos oprimidos. Espalharam-se, de um lado, os grupos que seguem influenciadores ultraliberais e os coachs, e de outro coletivos de esquerda e acadêmicos santificados que, dos dois lados, vendem soluções sociais ou individuais milagrosas baseadas em soluções não experimentadas. E são, ambos, facilmente percebidos em manifestações políticas.

Eis a pós-modernidade, que faz muita grana para muita gente, inclusive para Drew Harriot.

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