Há algo das memórias de uma roda de samba de grande sucesso no Clube dos Sargentos na Vila Militar, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, na década de 1980, que se mantém forte para a cantora e compositora Dayse do Banjo: “Não tinha mulher naquela época tocando. Nas rodas, durante muito tempo, eu era a única mulher no meio dos homens”.
E se Dayse estava lá é porque ela sempre frequentou lugares do samba nos quais parecia, por muito tempo, que só aos homens cabia estar. Nos anos 1990, ela tornou-se produtora musical e instrumentista de Almir Guineto (1946-2017). Pouco antes, havia alcançado outro feito: em 1989, ela foi a primeira mulher a tocar cavaquinho no desfile oficial das escolas de samba no Rio de Janeiro. E ela fez isso na Mangueira, a mesma Verde e Rosa que, em 1972, aceitou Leci Brandão na ala de compositores.
“Hoje, fico muito feliz vendo a mulherada nas rodas. Acho maravilhoso. Tem mulheres tocando com grandes artistas, mas tem que ter mais”, afirma. Embora ainda veja o meio do samba como sendo “muito machista”, ela acha que as mulheres estão “quebrando barreiras”.
Uma prova de que a artista está certa é o Encontro Nacional e Internacional de Mulheres na Roda de Samba, cuja sétima edição aconteceu no sábado 30, com rodas acontecendo simultaneamente, e no mesmo tom, em 30 cidades, de capitais do País a municípios do interior, como Juiz de Fora (MG) e Londrina (PR), e também no exterior, em Buenos Aires e em Montevidéu.
E Dayse do Banjo, que não revela a idade, mas demarca seus 40 anos de carreira, faz questão de ocupar cadeira cativa nesse evento anual que busca dar mais visibilidade ao protagonismo feminino no gênero matricial da música brasileira.
“Quando pensei em fazer, era para atrair mulheres para uma rede de proteção”, conta Dorina – nome artístico de Adorina Guimarães –, idealizadora do projeto. “Nós, mulheres, temos de fazer para nos valorizarmos. Não tem outra história.”
A cantora, que tem 65 anos e lançou dez álbuns ao longo de 30 anos, afirma que os sambistas nunca receberam um cachê decente. “O cachê do samba é um e o da MPB é outro, mesmo quando o artista da MPB canta samba”, relata ela, dizendo ter presenciado essa distorção da indústria em palcos onde se apresentou.
“As mulheres sambistas têm muito mais dificuldade. Mulheres pretas mais ainda”, diz. Mas já foi pior, segundo ela. Dorina menciona quase dez grupos de samba compostos só de mulheres que, hoje, têm agenda ativa de apresentações no Rio.
“Em roda de samba, não reclamam de cantora. Mas, quando falam das instrumentistas, dizem que não tocam que nem homem”, conta. E o problema é maior ainda para as compositoras: “Elas não conseguem apresentar suas músicas”.
“Durante muito tempo, eu era a única mulher no meio dos homens”, recorda a compositora Dayse do Banjo
No último fim de semana, Dorina e Dayse do Banjo participaram do encontro de rodas de samba no Renascença Clube, no Andaraí, na Zona Norte do Rio. Cada localidade realiza de seu jeito o acontecimento. A única regra é que a roda de samba deve ser o grande elemento agregador.
Em muitas cidades, o evento tem apoio do Poder Público ou é viabilizado por meio de leis de incentivo. Há lugares em que, além da música, há feiras de empreendedorismo feminino, com venda de roupas e artesanatos, espaços de gastronomia e venda de livros, realização de debates e até campanhas sociais.
Anualmente, o encontro homenageia, em âmbito nacional, mulheres no samba. Este ano, as duas celebradas foram Áurea Martins e Clementina de Jesus (1901–1987). Beth Carvalho, Elza Soares, Alcione e Leci Brandão foram outras das homenageadas em edições anteriores.
“Diante do machismo que a gente sempre sofreu, e continua sofrendo, começamos a criar nossas próprias células, para não depender da consciência de gênero de parte dos homens do samba e para podermos nos expressar artisticamente”, diz a cantora e compositora Karynna Spinelli, 44 anos, coordenadora do projeto no Recife.
O Encontro de Mulheres na Roda de Samba na capital pernambucana aconteceu na Torre Malakoff, monumento no centro histórico da cidade. Na capital pernambucana – diferentemente do Rio de Janeiro, onde as rodas são marcadas por samba urbano tradicional e o partido-alto –, dá-se destaque aos sambas de coco e de terreiro.
A afrorreligiosidade impulsiona o samba na localidade. “Dentro da nossa tradição, as mulheres cantam e tocam tambor. Isso é levado para o palco”, explica Karynna. “Existe muito mais mulher cantando samba em Pernambuco do que homens. Mas, nos grandes eventos, infelizmente, são eles que dominam. Dentro da indústria, a gente tem pouco espaço.”
O encontro é parte do Movimento das Mulheres na Roda de Samba, uma rede de fortalecimento do público feminino ligado a esse gênero musical que se mobiliza o ano todo. Dorina lembra que, quando deu início ao projeto, sete anos atrás, apenas 11 localidades faziam roda de samba.
“Em muitas cidades, nem sequer havia mulheres tocando todos os instrumentos. Com a nossa rede, elas foram aprendendo”, ressalta Dorina. Trata-se de “um ganho incrível”.
No domingo 1º, a sambista, em nova conversa com CartaCapital, fez um balanço do encontro do qual participara na véspera que vai muito além da batucada: “Falamos bastante das mulheres pretas, pois precisamos estar juntas contra o racismo, e também da preocupação com o aumento do feminicídio. Devemos preparar nossos filhos para que não cometam nenhum tipo de crime contra o gênero feminino”. •
Publicado na edição n° 1340 de CartaCapital, em 11 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O samba é senhora’