
O salto de desenvolvimento da Capoeira nas escolas
por Paulo Henrique Menezes da Silva, José Olímpio Ferreira Neto e Alexandre Almeida Aguiar
As escolas, na concepção eurocêntrica, foram entendidas como lugar de privilégio, onde poucos poderiam ter acesso ao fluxo de conhecimentos por lá transitados. No Brasil, sob a ótica colonialista, as escolas chegaram com os Jesuítas, para catequizar os indígenas, passando ainda a se destinar para educação da elite nacional. Privilégio para uns, espaço de necropolítica cultural para outros, algo que reverbera até os nossos dias. Bourdieu destaca que as escolas marginalizam estudantes das classes populares e privilegiam estudantes pertencentes às classes abastadas.
No modelo europeu, Alemanha e França aparecem como pioneiras na educação pública estatal dedicada aos filhos da classe trabalhadora. Essa perspectiva é inaugurada na sociedade brasileira com o início da industrialização do país no final do século XIX, início do século XX, e se sedimenta por educadores como Anísio Teixeira.
No entanto, a educação não está presente apenas nas escolas, mas nas epistemologias indígenas e afro-brasileiras que sempre transitaram na sociedade; os terreiros, ruas e praças foram e ainda são lugares de ensino e aprendizagem. Segundo Henrique Cunha Júnior “A relação entre a capoeira e a educação dos afrodescendentes está na ginga social, aquela que visa a superação da Capoeira e abertura de horizontes diversos para os participantes”, transcendendo o espaço escolar. Na escola ou em qualquer lugar, a Capoeira permeia e promove o fluxo de saberes baseados nos valores civilizatórios afro-brasileiros, que compõem nossa identidade e ancestralidade, dentre os quais o axé, a oralidade, a musicalidade, a corporeidade, ludicidade e a circularidade.
Assim, os capoeiristas, por meio do ofício dos Mestres e Mestras de Capoeira e da Roda de Capoeira, ambos patrimônios nacionais reconhecidos pelo IPHAN, aprendem com “…a verdade da favela e não com a mentira da escola…”, como traz a cantiga Dona Isabel, do Mestre Tony Vargas. O que no plano institucional, somente agora, é evidenciado por uma política pública de maior alcance no Estado Democrático de Direito, com a Lei Estadual nº 14.341/2021, que dispõe sobre a salvaguarda e o incentivo da Capoeira no Estado da Bahia, conhecida como Lei Moa do Katendê, em alusão ao compositor, percussionista, artesão, educador e Mestre de Capoeira Angola da Bahia, assassinado covardemente no dia 8 de outubro de 2018, devido a intolerância e polarização política em que vive o Brasil. Esta Lei, regulamentada pelo Decreto nº 23.204, de 6 de novembro de 2024, em seu art. 5º, assegura que a rede pública de ensino defina um programa de incentivo da Capoeira nas escolas estabelecendo parcerias com associações ou outras entidades que representem e congreguem mestres e demais profissionais de Capoeira.
É possível evidenciar que a Capoeira nas escolas, pretende, então, promover uma educação antirracista, além de ampliar e modernizar tecnologias educacionais. Entre as estratégias, são apontadas oficinas, formação, qualificação, confecção e aquisição de materiais etc, sobre as quais o Governo do Estado anunciou um investimento no valor estimado de R$ 18,8 milhões para aquisição, entre outros itens, do kit ginga, composto por berimbau, pandeiro, atabaque, reco-reco, agogô, caxixi e dobrão. É uma iniciativa que pode servir de parâmetro e se expandir por outras unidades da federação, estabelecendo um compromisso com a universalização da Capoeira nas escolas.
Esse modelo que parece buscar a garantia de direitos culturais, sobretudo, pela perspectiva intersetorial, envolve uma ação de olhar cultural e educacional, com ênfase nas relações étnico raciais, com alcance de saúde e bem estar, sustentabilidade e meio-ambiente, desporto e lazer, tecnologia e inovação, segurança e cultura de paz, além de outras setorialidades que podem ser vinculadas e tomar corpo com premissas para fonte de custeio, recepcionadas por dotações em fundos governamentais de forma permanente e continuada, para dialogar com dispositivos como o editado na Lei Federal nº 14.119/2021, PNPSA – Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, Art. 2º, inciso II, alínea d, que aprovada pelo Congresso Nacional prevê o pagamento por serviços culturais e pode prover o ofício dos professores de Capoeira no meio ambiente escolar.
É importante ressaltar que a iniciativa baiana não é a primeira, mas sem dúvidas esse salto de desenvolvimento da Capoeira nas escolas merece destaque pela perspectiva intersetorial. No Ceará, a política cultural dos Tesouros Vivos tem alcançado visibilidade por reconhecer os saberes dos Mestres da Cultura, entre eles, sete Mestres de Capoeira, que ainda receberam o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual do Ceará. É uma valorização de saberes populares de matriz afro-brasileira, que são partilhados em diversos espaços cearenses, desde escolas às ruas e praças.
É certo que agora a Capoeira se reforça ainda mais no plano nacional pela portaria MEC nº 537/2025, que lançou o programa Nego Bispo de saberes tradicionais com educação Indígena e Quilombola, cujo investimento federal anunciado é de R$ 1,17 bilhão, pelo qual se propõe a introdução da cosmovisão dos mestres e mestras da cultura popular nas escolas, em ampliação à perspectiva de efetividade constitucional cultural decolonial.
Entretanto, não se pode esquecer jamais que a Capoeira sempre entrou nas escolas, na medida da sua autonomia e interesses, seja pela porta da frente, pelos fundos, pulando o muro, com ou sem autorização. E assim, a Capoeira segue existindo mesmo a contragosto dos setores conservadores. Iê, Salve a Capoeira, Camará!
Paulo Henrique Menezes da Silva, Mestre Paulão Kikongo, é Bacharel em Direito; Mestre de Capoeira; Doutorando em Memorial Social; Mestre em Patrimônio, Cultura e Sociedade; Pesquisador do Observatório do Patrimônio Cultural do Sudeste (FAPERJ/UNIRIO).
José Olímpio Ferreira Neto é Advogado e Professor, Doutorando em Ensino de Ciências e Matemática, Mestre em Ensino e Formação Docente, Presidente da Comissão de Direitos Culturais da Ordem dos Advogados do Brasil Secção Ceará
Alexandre Almeida Aguiar, Advogado. Especialista em Direito Previdenciário, Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito do Patrimônio Cultural, Ex-Presidente da Comissão Especial de Cultura e Entretenimento da OAB/BA
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