Você já ouviu falar de smart vapes? Se ainda não conhece ao menos o termo, prepare-se: você vai ficar viciado. A indústria de vapes evoluiu rapidamente e tem feito grandes jogadas apostando tudo para conquistar seu sistema respiratório. Marketing agressivo e inovações, integrando tecnologia a cada baforada. Além de seu pulmão, a indústria agora quer seu cérebro. E está conseguindo.
A estratégia, inocente como participar do Round 6, é simples: unir jogos eletrônicos, infantis, aos cigarros eletrônicos. E mais: implementar telas e conexões com celulares criando os smart vapes, com possibilidade de jogar, receber e fazer ligações, usar aplicativos de mensagens e ouvir músicas.
Para ouvir enquanto lê:
Que se dane a redução de danos
O assunto não é novo. Há mais de 20 anos os vapes foram criados com uma promessa básica: um produto para fumantes e menos agressivo para a saúde. O inventor, o farmacêutico chinês Hon Lik, que, vendo o pai ser corroído por um câncer de pulmão muito agressivo e sem conseguir parar de fumar, criou um dispositivo que vaporizava nicotina. O vaporizador teria muito menos do que as quatro mil substâncias geradas pela queima do tabaco.
Existem países que passaram a estimular os vapes como uma alternativa ao cigarro. No Reino Unido surgiu em 2023 o “Swap to Stop” ou “Trocar para Parar”, um programa de saúde pública voltado para a redução de danos em fumantes. O próprio governo, agora, quer criar regras mais rígidas e proibir a venda de vapes descartáveis. Os motivos: descarte incorreto, acesso de vapes a crianças e adolescentes e a descoberta que, com eles, um milhão de britânicos passaram a baforar sem serem fumantes. Os vapes, ao invés de serem a porta de saída do cigarro comum, foram transformados em porta de entrada para a nicotina e outros produtos.
Vapes não são inofensivos. E seu impacto sobre a saúde é enorme e já comprovado. A medicina criou uma categorização para uma doença associada aos vapes. EVALI, e-cigarette and vaping associated lung injury, que pode ser traduzida como pneumopatia associada ao uso de cigarros eletrônicos e vapes. Os vapes usam líquidos com nicotina, saborizadores, além de solventes. Os mais comuns são glicerina e propilenoglicol. As reações químicas produzidas pelo aquecimento geram substâncias carcinogênicas. Seu uso está associado, além da EVALI, a casos de enfisema, doença pulmonar obstrutiva crônica, câncer de pulmão, bexiga, esôfago e estômago.
A cortina de fumaça do mercado regulando o mercado
Durante muito tempo o seu uso não emplacou por diversos problemas. O maior deles, como qualquer produto de consumo, foi encontrar escala de produção e, ao mesmo tempo, gerar demanda e definir canais de comercialização. A confluência desses fatores abriu espaço para os cigarros eletrônicos, que agora amplificaram suas estratégias de comercialização e uso. A estimativa é que esse é um mercado de cerca de US$ 28 BI, com projeções de que dobrará de mercado nos próximos anos. Como existem muitos fabricantes clandestinos e ilegais, o número deve ser muito maior.
No mercado de categorias maduras é difícil encontrar plataformas de diferenciação. Aqui existe, para os vapes, a confluência de dois mundos: herança cultural e fascínio pela tecnologia. Fumar é uma herança cultural. Já foi o charme de muitos astros do cinema. Estimativas da Organização Mundial de Saúde, indicam que existe, embora em queda, no planeta 1,25 bilhão de fumantes. Vapes são instrumentos simples. Pilhas aquecem o líquido vaporizado. Mas são atraentes, inovadores (para o ato de fumar). Em um mundo que vive em busca de novos gadgets, os vapes caem como doce na boca de crianças.
Não jogue fora o vape. Jogue no vape
Imagine a possibilidade de colocar vapes a venda nas cantinas das escolas. Claro que eles não estarão lá. Mas estarão nas mãos de milhões de crianças e adolescentes com muita vontade de comprar. Alguns vapes incorporaram telas de alta definição com jogos muito similares ao Pac-Man, Tetris e outros. Para avançar de fase, em alguns deles, é preciso dar uma baforada. O mecanismo estabelece uma relação perversa com o jogo: para ganhar, preciso fumar. A moeda de troca para mudar de fase é uma tragada. Os produtos são facilmente encontrados na internet. Em um site americano, em promoção, há um modelo descartável por US$ 8,95, com três jogos e uma tela de com cerca de 4,5cm de altura.
É evidente que os jogos oferecem uma alternativa de contato com crianças e adolescentes. Jogos eletrônicos têm um mercado global de cerca de 3,7 bilhões de pessoas, segundo estimativa de 2023 da consultoria DFC Intelligence. Mais do que o dobro de fumantes. A armadilha está no posicionamento. Você compra um vape e pode jogar ou comprar um console descartável para jogar e, para passar de fases, fuma? A confluência dos dois mercados é arrasadora. A aliança entre os dois mundos parece uma trama de Round 6.
A indústria não liga. Mas quer que você ligue
Não para por aí. Um marketplace especializado oferece um vape que se conecta com os celulares, função semelhante aos smartwatches. Com os smart vapes é possível realizar e atender chamadas, receber mensagens, fazer fotos, todas funções de telefones celulares. São compatíveis com todos os sistemas operacionais via bluetooth.
No Brasil existem cerca de 263 milhões de celulares e o país está entre os cinco maiores mercados globais. Os aparelhos foram incorporados por todas as camadas sociais e todas as faixas etárias. Muitos pais cedem os smartphones para que seus filhos joguem. Ter um celular é um ritual de passagem para crianças e adolescentes. Acessar grupos de mensagens faz parte da vida de todos. Isso tudo é possível agora com smart vapes.
Não pode. Mas tem
Aqui é proibida a importação e comercialização de cigarros eletrônicos desde 2009, normatizada pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 46 e pela RDC 885, de 2024. A Receita Federal em 2020 divulgou uma Instrução Normativa informando que suspenderia o CNPJ de empresas que comercializam vapes. A medida foi retificada em outubro de 2024.
Como os produtos são contrabandeados, a fiscalização enfrenta dificuldades. O que era ruim fica muito pior. Em um trabalho conjunto da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina e a Polícia Científica do Estado, identificaram, em vapes contrabandeados, octodrina, substância similar à anfetamina.
A Comissão de Indústria, Comércio e Serviços da Câmara dos Deputados seguiu na mesma linha. Aprovou um projeto de lei proibindo a fabricação, a importação, a comercialização, o armazenamento, o transporte e a propaganda de cigarros eletrônicos.
Apesar de todas as decisões, os vapes podem ser vistos em todos os ambientes. De acordo com uma pesquisa do IPEC – Inteligência em Pesquisa e Consultoria, de 2023, em 5 anos o consumo de cigarros eletrônicos cresceu 60% no país, chegando a três milhões de usuários. O jogo é pesado. E a saúde está perdendo todos os rounds.