A notícia de que a Anfavea, representante das montadoras tradicionais instaladas no País, estuda solicitar ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio a apuração de suspeita de dumping por parte de duas fabricantes chinesas de veículos que começaram a se instalar no Brasil, a BYD e a GWM, chacoalhou o mercado, mas a reclamação talvez seja mais um instrumento de pressão do que indício de uma batalha real, segundo economistas. A chegada das duas companhias tirou as montadoras, em especial as europeias e estadunidenses, da zona de conforto de operar durante décadas com alto lucro, baixo investimento e produtos inferiores àqueles vendidos nos países de origem.
O assunto é relevante para o País, desde maio o maior importador de carros chineses. O escalonamento de alíquotas de importação, dos 12% iniciais para 25% em julho do ano passado, 30% em julho deste ano e 35% apenas em julho de 2026, parece longo demais para as montadoras. A Anfavea tentou, sem sucesso, convencer o governo a saltar etapas e antecipar a vigência da alíquota mais alta e, nesse contexto, a alegação de dumping sugere tratar-se mais de uma pressão para alcançar o intento.
Os preços de alguns veículos da mesma marca e modelo comercializados na China e no Brasil apontam para a possibilidade de concorrência desleal. Um exemplo, segundo a revista especializada Autoesporte, seria o do BYD Song Plus, com preço em yuan, na China, equivalente a 115,7 mil reais, em conversão direta entre as moedas. No Brasil, o modelo é vendido por 299,8 mil reais.
A companhia alega seguir as normas no País e que os preços praticados aqui refletem custos locais mais altos e impostos, entre outros fatores. A resposta às insinuações da Anfavea de que estaria a praticar dumping foi dura e respingou na entidade. “A BYD é agora uma empresa brasileira, voltada a trazer inovação e produtos de alta qualidade para os consumidores. Estamos comprometidos com o desenvolvimento da indústria automotiva brasileira, que, por décadas, foi deixada em segundo plano pelas montadoras tradicionais, que tentam de todas as formas utilizar artimanhas para esconder a falta de competitividade”, disparou a empresa em nota oficial.
O setor promete investir 150 bilhões de reais, mas teme o risco
A afirmação da BYD, sigla de Build Your Dreams, ou construa os seus sonhos, não condiz, entretanto, com a autuação, pelo Ministério do Trabalho e do Emprego, de 163 trabalhadores chineses em condições análogas à escravidão na obra da fábrica da montadora em Camaçari, na região metropolitana de Salvador. A empresa flagrada é a também chinesa, a Jinjang Construction Brazil Ltda, terceirizada da BYD.
A GWM igualmente afirmou seguir as normas do País e disse, em comunicado, que tem aumentado o ritmo de contratações no Brasil para início de produção dos seus primeiros carros eletrificados na fábrica de Iracemápolis, no interior de São Paulo, ainda no primeiro semestre. Um exemplo eloquente da enorme margem dos chineses em relação ao resto do mundo é o dos EUA, que só conseguiram barrar a entrada de importações do BYD com o imposto de 100% fixado por Joe Biden.
A indústria automobilística instalada no Brasil produziu 2,5 milhões de veículos em 2024, alta de quase 10%, e o mercado, impulsionado pelo aumento do emprego e da renda, cresceu o suficiente para comportar uma elevação de 140% na importação, puxada por elétricos e híbridos chineses. As vendas no País de carros fabricados na China saltaram de 42 mil unidades em 2023 para 120,3 mil em 2024, variação de 187% e há um estoque estimado pela Anfavea em 50 mil veículos. “O setor passa por uma transformação global e a base brasileira continua como oitavo ou nono mercado global, o que não é pouco. A indústria local percebeu que precisava correr, pois estava com um atraso importante nos investimentos”, sublinha o economista Fernando Sarti, professor do Instituto de Economia da Unicamp. O que forçou essa aceleração, prossegue Sarti, foi a chegada dos carros chineses.
A indústria automobilística, acredita o professor, foi o segundo fator mais importante, depois do agronegócio, para que o acordo entre a União Europeia e o Mercosul avançasse. “O fato de terem concedido no acordo uma certa proteção ao setor vai nessa direção. É preciso lembrar que a Europa impôs tarifas de 35% a 38% sobre os veículos elétricos para proteger o mercado contra os chineses.”
O mercado brasileiro não só é importante como também altamente rentável, pois sempre foi relativamente protegido e o custo de mão de obra, relativamente mais baixo. “Apesar de os empresários sempre reclamarem, todos os estudos internacionais que conheço mostram que essas filiais de montadoras europeias e dos EUA sempre obtiveram no Brasil lucros maiores do que em outras subsidiárias. As operações da Fiat, por exemplo, chegaram a ser as mais importantes do grupo”, ressalta o economista.
A Anfavea precisa fazer um mea-culpa, propõe Sarti. “Eles comeram bola. Ficaram dez anos dizendo que fariam investimentos, a capacidade produtiva no Brasil não cresceu, não houve os investimentos em tecnologia, que deveriam ter ocorrido. Após o auge em 2013, era para terem feito do País uma enorme plataforma global, para atender a toda a região e além dela, mas não fizeram. Deitaram em berço esplêndido. Não saíram da zona de conforto. Tomaram um susto com a entrada dos chineses, mas há sinais disso faz tempo. Agora estão dizendo que investirão 150 bilhões de reais, mas temem o risco de esse investimento virar um ‘mico’.”
O Brasil tornou-se o maior importador de carros chineses
Se as montadoras tivessem investido nos últimos dez anos na intensidade necessária, não se estaria falando em produção de 2,5 milhões de veículos, mas em 5 milhões a 7 milhões de unidades. “É preciso entender o que é a competitividade chinesa. Há vários fatores. A produção de carros utiliza aço, produtos químicos, PVC. A escala e a competitividade desses setores estão na China. Todo o setor de aço do mundo somado não se iguala à produção chinesa, de mais de 1 bilhão de toneladas ao ano. Eles conseguiram reunir três fatores importantíssimos: escala, coordenação operada por um capitalismo de Estado e tecnologia. Os carros deles estão na fronteira tecnológica. A competitividade chinesa não é, portanto, espúria, como poderia sugerir a reação das montadoras instaladas no Brasil. A China anuncia investimentos no setor, será que é o caso de partir para uma disputa antidumping, que não é de fácil comprovação, correndo risco de retaliação em outros setores?”, avalia o professor da Unicamp.
Comprovação de dumping é uma disputa longa, alerta Sarti. Tanto que os outros países partiram logo para colocar tarifas, nem foram para essa briga. Qual é o custo do carro para quem tem uma escala descomunal e tecnologia de ponta? Não é uma coisa trivial de se determinar, prossegue. Ele considera que é preciso fazer como a União Europeia, que entendeu que um dos setores mais sensíveis era o automobilístico e fez um acordo para a situação ficar mais ou menos equilibrada. “Acho que talvez seja esse o propósito da Anfavea.”
É preciso entender, propõe Sarti, que ocorre um questionamento da hegemonia no mundo. A China mostra hoje que o jogo mudou. Donald Trump é a explicitação de que essa hegemonia está em risco. Um player poderoso não precisa fazer o que os EUA estão fazendo, nem com essa virulência e agressividade. Está claro que a China é uma ameaça e que, se nada for feito, em dez anos serão uma potência ainda maior. “Fazer a América grande outra vez” é um reconhecimento de que perderam. Tudo isso são desdobramentos naturais que continuarão a acontecer.
Segundo Carlos Cavalcanti, assessor de economia da Abipeças–Sindipeças, as perspectivas para o setor de autopeças local a partir da instalação, já iniciada, de fábricas de montadoras chinesas no País, até o momento são favoráveis. “Havia o receio de que pudessem estabelecer supply chain, ou cadeia de suprimentos, com volumes provenientes da China, ou do México, que possui um parque automotivo e de autopeças consolidado. A primeira impressão é, entretanto, de que há real intenção de adquirir peças e componentes no País e promover a localização produtiva para suprir necessidades específicas, mitigando assim os riscos de uma crise logística, como vimos durante a pandemia da Covid-19, e habilitando-se para o uso da regra de origem, a fim de que possam transacionar, com custos competitivos, dentro do Mercosul”, ressalta. Como exemplo, ele menciona o início, no ano passado, do processo de seleção de fornecedores para atender à sua unidade de Iracemápolis.
Em uma primeira fase, prossegue Cavalcanti, enquanto as montadoras chinesas estiverem produzindo parcelas do seu portfólio com importações de veículos SKD, semidesmontados, ou CKD, totalmente desmontados, haverá predomínio das importações de peças. Quando iniciarem a fabricação local, a tendência é de que, gradualmente, passem a fazer uso do conteúdo local, até porque deverão suprir de forma ágil as redes de concessionárias com bandeira das marcas.
A ascensão rápida e avassaladora dos carros chineses no mercado mundial é vista por alguns como uma mudança estrutural do setor. “Se analisarmos a questão sob a ótica da tecnologia de emissão, dos motores a combustão versus elétricos ou híbridos, conectividade e design arrojado dos veículos, parece que estaríamos autorizados a abraçar essa ideia da mudança estrutural. A questão, no entanto, é se essa mudança será estrutural a ponto de transformar o perfil da indústria automotiva brasileira”, analisa Cavalcanti. A Tesla, prossegue o economista, foi pioneira na produção de veículos elétricos, liderou as vendas nesse segmento por anos (hoje a liderança é da BYD), mas não exibiu força suficiente para promover uma transformação definitiva no perfil da frota norte-americana e europeia de veículos, que permanece a combustão. “Será que o eVTOL, veículo aéreo da Embraer, e outros do gênero não serão a verdadeira transformação dessa indústria?”, pergunta. •
Publicado na edição n° 1348 de CartaCapital, em 12 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O ronco dos motores’