O riso que revela (e esconde): o caso Léo Lins e o retorno do recalcado

por Pedro H. Choairy Pinto

O riso, na psicanálise, sempre foi algo que me instigou ao longo desses treze anos de prática clínica. Sempre foi caro para mim esse enigma: a possibilidade de dizer a verdade, mesmo que brincando. Como opera essa relação com o humor em uma análise?

Aqui em nossa página, Sublimação: Arte e Psicanálise, já trabalhamos diversas manifestações artísticas que abordam o tema do humor, como alguns filmes — Coringa, Deadpool, Feitiço do Tempo. Em todos esses encontros, o esforço é sempre o de fazer circular a palavra: permitir que quem vivenciou aquele filme possa falar sobre ele, dizer o que pensou ou sentiu, e também escutar o outro. Nós, por nossa vez, fazemos a coordenação para que esse espaço possa acontecer, trazendo elementos da psicanálise que contribuam com a discussão que se apresenta em ato.

Do mesmo modo, farei aqui um esforço para dizer algo fora do campo estritamente analítico. Sei o quanto isso pode levar a compreensões distorcidas e mal-entendidos inevitáveis, mas tentarei, com o mesmo cuidado ético que nosso ofício exige.

Freud distingue três formas de produzir prazer psíquico por meio do riso: o chiste, o cômico e o humor (texto de 1927). Enquanto o chiste revela o recalcado, o cômico surge de uma incongruência ou de uma desproporção percebida entre o esperado e o realizado — uma economia de pensamento. O humor, por sua vez, é mais raro e elevado: trata-se da capacidade subjetiva de se colocar acima da dor, rindo onde normalmente se sofreria.

A recente condenação do humorista Léo Lins pela justiça brasileira reacendeu uma antiga e incômoda discussão: existe limite para o humor? Até que ponto o riso pode ser usado como justificativa para ofensas, preconceitos e violências simbólicas?

Em O chiste e sua relação com o inconsciente (1905), Freud analisa o chiste como uma formação do inconsciente, comparável ao sonho e ao lapso. Ele permite ao sujeito contornar a censura e liberar conteúdos recalcados — muitas vezes de natureza sexual, agressiva ou socialmente inaceitável. Ao provocar o riso, cria prazer pela via de uma economia psíquica, evitando o esforço do recalque.

Nas piadas de Léo Lins, seus chistes tocam sistematicamente nos temas que a atual civilização busca proteger: deficiência, morte, racismo, pobreza, violência, sexualidade. A pergunta que se impõe é: o que está sendo liberado, ou até mesmo gozado, nesses chistes? Trata-se de uma crítica à moral dominante ou de uma repetição da exclusão social travestida de piada?

A estrutura do chiste, nesse caso, não se fecha em três, como propõe Freud (quem conta, quem escuta e quem é o alvo), mas se reduz a dois polos: quem fala e quem ri. O alvo não participa da cena de linguagem — ele é o objeto do riso, não seu parceiro. Quando o chiste se transforma em arma contra o outro, sobretudo contra o mais vulnerável, ele deixa de ser mediação e passa a ser ataque. O riso, nesse ponto, não mais liberta, mas oprime. E o humorista, ao invés de se posicionar como aquele que revela o inconsciente social, pode acabar se tornando porta-voz do supereu sádico que rege a moral segregacionista.

Tampouco podemos entender esse tipo de discurso como “humor”, no sentido freudiano. O humor, segundo Freud, é aquele em que o sujeito extrai prazer de uma fonte de desprazer — uma das poucas situações em que o Eu triunfa sobre o supereu, subvertendo a dor com dignidade. No caso de Léo Lins, o humor parece não ser dessa ordem da sublimação (como no exemplo freudiano do condenado que ironiza a própria morte), mas sim do rebaixamento do outro. Rir de uma criança com hidrocefalia, por exemplo, não revela o sofrimento do sujeito nem propõe uma crítica irônica à condição humana — apenas goza com o sofrimento alheio.

Como disse anteriormente, esse esforço de estar atento aos sintomas de nossa época nos coloca diante de limites reais. Fazer articulações com a lei social é entrar em outro campo teórico — não familiar ao discurso analítico —, mas arrisco ir por esse infamiliar justamente para sustentar que a relação entre justiça e humor não pode ser lida apenas como censura ou repressão.

Sim, há riscos. Vivemos tempos polarizados, binários, onde qualquer gesto pode ser imediatamente cooptado por discursos de ódio ou moralismos ocos. Mas a psicanálise reconhece que o simbólico é feito de limites, e que a linguagem, embora livre, não é sem consequências. Quando o humor se faz discurso, ele age no mundo. Ele pode constituir ou destruir laços.

A condenação de Léo Lins pode ser compreendida como uma tentativa, ainda incipiente e imperfeita, de reinscrever o humor no campo da responsabilidade simbólica.

E essa é a discussão que importa para todos. A psicanálise não está fora da cidade dos discursos — e, menos ainda, o psicanalista. Estamos todos escrevendo agora sobre o papel do humor para nós, humanos terrivelmente limitados entre aquilo que é possível dizer e aquilo que se fala.

A psicanálise não julga moralmente, embora não se faça sem um psicanalista que, por vezes, pode agir moralmente. Seguimos, então, sem tensionar demais essa tênue relação… O que é possível apontar é: quando rimos, algo do inconsciente se revela.

Cabe, então, perguntar:

de que riso estamos falando? E de quem é a dor que ele encobre?

Pedro H. Choairy Pinto

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 10/06/2025