A luta de classes é, sem dúvida, um eixo central da resistência dos povos historicamente oprimidos. No entanto, não podemos negligenciar as interseções de opressões que atravessam o povo brasileiro, especialmente quando falamos de indígenas e negros. O Brasil é um país construído sobre a violência colonial, a escravidão e o apagamento sistemático de identidades e culturas originárias.

Quando falamos em racismo, qual é a primeira imagem que se forma em nossas mentes? Muitas vezes, a figura de uma pessoa negra, sofrida, algemada, excluída socialmente. O mesmo ocorre em relação à escravidão: frequentemente associada apenas à população negra africana. Com isso, pode-se concluir, erroneamente, que os povos originários não foram vítimas de racismo ou que não foram escravizados. Ou ainda que a escravidão indígena tenha sido mais “branda”, justamente porque há tão poucos registros sobre ela. Mas a escassez de registros não é prova de ausência de violência; pelo contrário, é reflexo de um processo intencional de silenciamento histórico. “O racismo contra indígenas é menos visível, mas não menos brutal. Ele opera por meio da negação de sua existência, da desvalorização de suas culturas e da apropriação de suas terras” (Ramos, 2006, p. 121).

Por que a escravidão indígena não se registra nos livros da mesma forma que a negra? Teria sido mais branda? Por que os indígenas não se “adaptaram” ao regime escravista? Alguns relatos históricos apontam que, diante da impossibilidade de fuga dos trabalhos forçados e do confinamento, muitos indígenas optavam pelo suicídio como forma de resistência. Conhecedores profundos das florestas, muitos fugiam, e por isso foram assassinados, ou escolheram não viver uma vida de escravidão. “A escravidão indígena foi sistemática e brutal. Diferentemente da escravidão negra, que foi juridicamente regulamentada, a dos indígenas foi muitas vezes encoberta sob formas de tutela e ‘catequese’” (Monteiro, 1994, p. 87). A resistência indígena foi marcada pela recusa à dominação, mesmo diante da violência brutal da colonização.

Na Paraíba, segundo a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), existem hoje dois povos reconhecidos como originários: os Potiguara e os Tabajara, em processo de ressurgimento há cerca de 17 anos, após mais de 150 anos de silenciamento. Outros grupos, como os Cariris e os Tarairiús, também estão em processo de reconhecimento. A invisibilidade a que esses povos foram submetidos tem raízes em um racismo estrutural e institucionalizado que insiste em negar sua existência.

É fundamental refletir: por que esses povos quase desapareceram? Como se deu a escravidão indígena? Nos livros escolares que estudei na infância, lia-se que esses povos haviam sido extintos. Quando o povo Tabajara iniciou seu processo de reconhecimento, enfrentou a opressão de precisar afirmar, com luta e resistência, aquilo que sempre foi: povo originário. Ainda hoje, no imaginário popular, persiste a crença de que “não existe mais índio na Paraíba”.

A negação da origem étnica é, além de uma violência simbólica, uma forma perversa de racismo. Eu, uma mulher negra de pele clara, precisei, e ainda preciso, afirmar constantemente minha identidade. Quando afirmo ter sofrido racismo, muitas vezes escuto que “não pareço negra”, como se a dor racial tivesse cor padronizada. O racismo

no Brasil é complexo, multifacetado, e precisa ser debatido com seriedade para que possamos compreender contra o que estamos lutando. Essa luta se sustenta não apenas nos quase 400 anos de escravidão negra, mas também nos mais de 500 anos de escravidão indígena e do etnocídio silenciado dos povos originários.

A diáspora africana causou impactos profundos no continente africano e na constituição da sociedade brasileira. A violência sofrida por esses povos deixou feridas abertas que se refletem no cotidiano da população negra brasileira. Mas não podemos deixar de considerar também as semelhanças com as injustiças vividas pelos povos que aqui habitavam antes da invasão europeia. De acordo com Carneiro da Cunha, (2012 A memória histórica oficial exclui os indígenas como sujeitos da história brasileira, consolidando um projeto de apagamento que ainda persiste até os dias de hoje, mesmo depois da constituinte que reconheceu direitos, porém não os garantiu.

A dívida histórica do Estado brasileiro para com os povos escravizados, assassinados e silenciados é impagável. Não existe reparação justa que possa restituir o que foi perdido. Mas reconhecer esses fatos e encará-los com responsabilidade pode ser o primeiro passo para construir ações mais justas, inclusivas e verdadeiramente reparadoras.

*Rosiane Cruz

Referências

· Carneiro da Cunha, M. (2012). Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify.

· Monteiro, J. M. (1994). Negros da terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras.

· Ramos, A. R. (2006). Indigenismo: uma questão de direitos. São Paulo: UNESP.

Rosiane Cruz de Morais é presidente do Comitê Municipal do PCdoB de João Pessoa(PB)

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Last Update: 06/08/2025