Nos últimos dias, uma situação envolvendo adolescentes influenciadores digitais e suas mães tomou conta das redes sociais. O episódio, amplamente comentado e compartilhado, partiu de uma situação corriqueira entre jovens: pedidos de amizade em plataformas digitais, ciúmes, pequenos conflitos interpessoais. Nada que não faça parte da rotina emocional da adolescência, não fosse o fato de tudo ter acontecido diante de milhões de seguidores e sob a lógica implacável do engajamento.

Entre os momentos mais comentados, um gesto — ou melhor, a ausência dele — se destacou: o de uma mãe que se recusou a abraçar uma adolescente visivelmente abalada e isolada no contexto de um evento. O que poderia ter sido um simples gesto de empatia virou símbolo de uma lógica perversa: o estímulo, por adultos, de uma cultura de rivalidade entre meninas. A recusa foi seguida por uma declaração pública da mãe em suas redes, insinuando que a jovem teria “tramado tudo”, como se estivesse manipulando a situação para aparecer ou gerar comoção. Essa reação, além de expor diretamente uma adolescente, reforçou narrativas que culpabilizam mulheres ao se tornarem vítimas. Mais do que isso: virou conteúdo. E é exatamente aí que mora o problema.

Trata-se de um retrato cruel de como, sob o capitalismo, até os vínculos humanos mais básicos — como o acolhimento, a empatia e o cuidado — podem ser subordinados à lógica da mercadoria. Quando uma mãe nega um abraço e, logo em seguida, publica uma justificativa para sua atitude em seu perfil pessoal, o que está em disputa não é apenas uma narrativa.

No sistema capitalista, tudo aquilo que é produzido ou reproduzido em sociedade pode ser transformado em mercadoria — inclusive os afetos. No caso das redes sociais, o afeto não precisa sequer ser genuíno: basta que pareça verdadeiro, engaje e seja passível de monetização. O post bem posicionado, com boa performance de likes, comentários e compartilhamentos, passa a valer mais do que o gesto de cuidado concreto. A humanização é performance; a dor, story; o conflito, oportunidade de engajamento.

A adolescência, fase em que emoções são intensas e a necessidade de pertencimento é central, se torna um palco especialmente vulnerável para esse espetáculo. Conflitos banais, como ciúmes, mal-entendidos e exclusões — que em outra realidade poderiam ser resolvidos com diálogo e tempo — são transformados em conteúdo viral, em “casos” de interesse público.

As plataformas lucram com a exposição dessas situações. Jovens viram influenciadores, influenciadores viram marcas, e marcas se alimentam da audiência. É a engrenagem do capitalismo de plataforma funcionando perfeitamente: relacionamentos viram engajamento, engajamento vira moeda. Quanto mais acessos, mais campanhas. Quanto mais polêmica, mais alcance. E nesse ciclo, os sujeitos são reduzidos à função de produtores e produtos ao mesmo tempo.

O que antes poderia ser um momento de aprendizado sobre empatia, limite e mediação de conflitos, torna-se uma disputa pública de versões. A mãe que nega o abraço não está apenas recusando o cuidado, mas reafirmando uma lógica individualista, meritocrática e competitiva. Em vez de acolher a jovem isolada, ela protege a própria imagem pública. Em vez de cuidar, se posiciona — como quem disputa um mercado.

Mais grave ainda é quando, para proteger sua “marca pessoal”, essa mesma mãe sugere que a adolescente “tramou” toda a cena para atrair atenção. Essa acusação, profundamente violenta, reflete uma cultura machista e naturalizada que historicamente acusa as mulheres — mesmo as meninas — de serem manipuladoras, invejosas e falsas. É o velho roteiro da rivalidade feminina, agora adaptado ao algoritmo.

Esse episódio também revela o quanto o machismo segue moldando as relações afetivas. O estopim do conflito foi, aparentemente, um pedido de amizade numa rede social e o ciúme que isso gerou entre adolescentes. É importante observar que, mesmo nessa idade, as relações são atravessadas por ideias de posse, de controle e de competição, reforçadas pelos conteúdos que consumimos e pelos modelos que repetimos. A namorada ciumenta, o menino que precisa se “provar”, a menina que “quer aparecer”: tudo isso não é espontâneo, é aprendido — e, pior, comercializado.

A adolescência deixa de ser uma fase de transição e experimentação para se tornar um mercado em disputa. O tempo dos jovens, seus corpos, suas histórias, suas relações — tudo é passível de captura, edição, viralização e monetização. E, quando tudo vira mercadoria, a solidariedade vira ameaça. O abraço, que não rende engajamento, perde valor frente ao post bem articulado.

A pergunta que fica, então, não é apenas sobre quem está certo ou errado nessa história. É sobre quanto perdemos de humanidade quando trocamos gestos reais por performances digitais. Quando permitimos que o cuidado seja subsumido à lógica do capital. Quando ensinamos às nossas crianças que é mais importante vencer uma disputa de narrativa do que proteger alguém.

O capitalismo não nos desumaniza apenas quando nos explora no trabalho, mas também quando transforma nossos vínculos mais íntimos em ativos. Em um mundo onde tudo precisa se justificar publicamente, afetos e gestos de generosidade silencioso se tornam até mesmo suspeitos. E justamente aí, que perdemos algo fundamental. Porque um post pode render likes. Mas um abraço pode salvar alguém.

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Last Update: 09/05/2025