O que será da música?

por Nadejda Marques

Não se pode subestimar o poder da música. A música nos encontra, nos conhece e nos revela, tal como cantava Roberta Flack. Sem pedir licença muda nossa vida. Nos afeta a nível físico-emocional, a nível psicológico e intelectual. Tem poder de cura. É terapêutica. A música ativa a nossa memória coletiva ou nos integra a ela – “hey hey, dee dee, take me back to Piauí.” Reforça nossa identidade e o nosso senso de moral. Música educa, mobiliza, comanda as massas. Quase sem querer, a música também é política.

Seu poder político pode estar na melodia, como na música La Paloma, que cantada com a letra de Eugenia León reforça sua universalidade. Seu poder pode estar na interpretação do artista. Um salve aqui à eterna  Mercedes Sosa quando canta Como la Cigarra mas, na verdade, em todas as suas canções. Seu poder pode ser deliberado e intencional como quando Caetano canta É Proibido Proibir. Ou, pode parecer um acordo entre artista e público como acontece quando Elis Regina se rende a O bêbado e a equilibrista.

Há tempos governos entendem isso e tentam canalizar esse poder político da música. A “diplomacia” do Jazz, tema de um dos documentários nomeados ao Oscar deste ano, Soundtrack to a Coup d’Etat, era uma estratégia propagandista dos Estados Unidos que usava o jazz e seus intépretes para ganhar as “mentes e corações” das pessoas pelo mundo afora e facilitar o avanço da política externa americana, muitas vezes pela violência, como foi no Congo, caso retratado no filme. Louis Armstrong chegou até mesmo a ameaçar renunciar a cidadania americana por desgosto de ter sido inadvertidamente explorado por seu governo para fim tão vil.

Guardadas as devidas proporções, a Nueva Trova cubana concebida de forma espontânea também tinha grande força e poder. O governo cubano entendeu esse potencial e passou a investir na música criando escolas e centros de cultura gratuitos e de apoio aos músicos e artistas. Pablo Milanés, Silvio Rodríguez e tantos cubanos cantavam os ideais e aspirações da revolução assim como também sobre o amor ao próximo e sobre a solidariedade entre os povos. A música era motivo de orgulho nacional e também um soft power para Cuba.

Sem quase nenhum apoio do governo, a música no Brasil não foi ou é muito diferente. Certa vez, um diplomata brasileiro quando perguntado sobre a influência do Brasil no mundo não titubeou com palavras que aqui parafraseio: – Somos muito queridos mundo afora pela nossa cultura e pela nossa música. O que seria do Brasil sem a música?

A mensagem hegemônica tá diferenteestá (nos) passando pra trás… Não temos mais o Public Enemy cantando Fight the Power. Temos o 50 Cent se apoderando do discurso de Malcolm X  “By Any Means Necessary” não para falar de liberdade, justiça e igualdade, mas para falar sobre como se enriquecer. É como se o sistema opressor não podendo destruir o poder da música se infiltra para neutralizá-la ou cooptá-la. Linhas Tortas e Pedrada não são maistream e brasileiro não conhece This is Not America do cantor porto-riquenho, Residente.E, quando o público não encontra inspiração política nas canções passa a buscar orientação e respostas em seus intérpretes. É assim por toda a parte. E, por isso, em tempos de eleição, cria-se uma expectativa sobre qual candidato/a receberá o apoio da Taylor Swift ou da Anitta. Será só imaginação? Será que nada vai acontecer?

É justamente por seu poder político que as músicas são temidas por governos autoritários. Se não tivessem esse poder, músicas não seriam censuradas. Cantores não seriam perseguidos, presos, torturados, mortos. Na semana passada, em pleno ano de 2025, Mehdi Yarrahi, preso desde 2023, foi chicoteado 74 vezes no Irã por cantar músicas supostamente de protesto. Em um verso de uma de suas canções mais famosas, “Nafa” (Respirações), Mehdi canta: “O que quer que tenha construído aqui com você/Você sabe bem, não está lá/Vou me apaixonando por você de novo/Apaixonando por quem não está lá”.

Ambos Chico Buarque e Victor Jara não gostavam de que suas músicas fossem rotuladas como música de protesto. Suas músicas descrevem a vida em seus respectivos contextos latino-americanos numa certa época. Falam de acontecimentos e sentimentos. Inequivocamente falam das injustiças sofridas pelos homens e mulheres no Brasil e no Chile. É uma música que retratando a experiência humana ultrapassa fronteiras, supera diferenças de línguas e vence a barreira do tempo. É justamente nessa dimensão que suas músicas se tornaram parte ou inspiraram uma resistência política e, com sorte, uma transformação social.

Será que (foi) tudo isso em vão?

Nadejda Marques é escritora e autora de vários livros dentre eles Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício e a autobiografia Nasci Subversiva.

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Last Update: 10/03/2025