O que restou do ouro
por Felipe Bueno
O Brasil ainda estava distante de ser uma nação, mais ainda de ser uma nação independente, quando um advogado, servidor público e poeta português, porém com alma nativa do lado de cá do Oceano Atlântico, escreveu suas Cartas Chilenas – texto que ironicamente só haveria de ser publicado com o devido mérito muitas décadas depois de sua confecção, quando o país já havia conseguido autonomia em relação ao governo ibérico.
A graça das Cartas, que muitos já analisaram como uma obra artisticamente menor de nossa literatura, está justamente na sua falta de graça. Mais que uma sátira intencional, é uma avalanche de premonições não-intencionais – ou propositais; afinal nunca saberemos se Tomás Antônio Gonzaga, o homem que as criou, era na realidade um profeta do mais alto nível.
Critilo, Doroteu e Fanfarrão são os personagens. O primeiro é o redator das missivas, o segundo, o destinatário que as torna públicas, e ao terceiro cabe ser o objeto das chacotas e lamentações na forma de correspondências – descrições carregadas de adjetivos e julgamentos dos desmandos do plenipotenciário em questão e de seus acólitos num fictício Chile.
Desconheço ter havido nas décadas seguintes algum tipo de protesto ou pedido de desagravo por parte dos chilenos; para sermos bem sinceros, nosso vizinho entrou no enredo da mesma forma que poderia ter sido a Albânia ou o Chipre. Afinal de contas, o “Chile” em questão era o disfarce escolhido por Tomás para a capitania das Minas Gerais, na iminência da exaustão aurífera do fim do século XVIII, e Fanfarrão Minésio era na verdade seu governador, Luís da Cunha Meneses, homem que no momento histórico retratado realizava os desejos da Coroa Portuguesa – e seus – aqui no Brasil Colônia.
Tomás Antônio Gonzaga, homem de ideais iluministas, separatista e republicano, um ser vivo moderno para os critérios da época, especialmente do nosso lado do Atlântico, achou algumas almas gêmeas e com elas fez germinar um movimento fracassado no curto prazo mas que se tornou semente de soft power nacional: a Inconfidência Mineira – ou Conjuração, dependendo da torcida de quem estiver lendo.
Tomás foi expulso de sua terra. Seu destino, no entanto, foi misericordioso se comparado com o do bode expiatório e futuro influencer dos destinos brasileiros: Tiradentes, o homem que pelo pincel de artistas vindouros tornaria-se uma espécie de Jesus Cristo laico de nossa liberdade.
De Fanfarrões Minésios o mundo se viu e se vê repleto – antes e depois das Cartas Chilenas. Mas, no fim do século XVIII, o Brasil começava a se enxergar, ainda ao microscópio, como uma proto-nação que, como tal, tinha direito a independência e soberania. O país de tantas desigualdades iniciava sua história de vitórias, derrotas e contradições no cenário mundial; o conjunto de chacotas de Critilo e a diligência de Doroteu serviram como uma de suas primeiras manifestações artísticas.
Felipe Bueno é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.
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