Sou desses acusados de trabalhar muito. Um workaholic, para usar a expressão corporativa. Me peguei pensando nisso esses dias. Não deixa de ser irônico que um militante se mate de trabalhar para um patrão. E digo irônico porque, para o marxismo, o trabalho é uma categoria central para entender o ser.
Para a teoria marxista, o trabalho não é isso que hoje chamamos de trabalho. Não é apenas um ganha-pão. Ao contrário dos outros animais, que se relacionam com a natureza imediatamente, o homem se relaciona de maneira mediata. E é justamente o trabalho — não como atividade econômica apenas, mas como processo social — que faz essa mediação. Ou seja, é a atividade fundante de nós enquanto seres sociais. Como diz Marx, ao agir sobre o mundo e ao mudá-lo, o homem muda a si mesmo. Como os indivíduos expressam sua vida é o que eles são de fato, pois é o ser social que determina a consciência, e não o contrário. Em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos, afirma que “a educação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história”.
Não por acaso o homem se caracteriza também por uma crescente e complexa mediação simbólica do mundo que é indissociável do trabalho: a linguagem e a cultura. Nossa consciência não se limita ao registro imediato dos sentidos, dos sons, dos gostos. Elaboramos sobre isso e, através da linguagem, construímos sentidos e formamos discursos sobre as coisas. Engels chegou a afirmar em um de seus textos que foi através do trabalho que o macaco virou homem. Outros marxistas vão além, como Lukács, e atribuem ao trabalho um estatuto ontológico do ser social.
Mas a questão não são essas polêmicas. Tampouco pretendo questionar a centralidade do trabalho. É algo mais cotidiano mas, não por isso, menos filosófico: apesar de tudo, é possível haver alguma forma de felicidade em trabalhar? Parece um contrassenso. Você não odeia as segundas-feiras, você odeia o capitalismo, dizem. Para tentar responder, vou abrir um parêntese etimológico. Marx usa três ideias muito pertinentes para descrever a atividade do trabalho (sempre no sentido amplo da coisa): exteriorização (Entäußerung), objetivação (Vergegenständlichung) e alienação/estranhamento (Entfremdung).
Vamos começar com a ideia do trabalho como uma atividade produtiva. Atividade deriva do latim activus, que é aquilo que age, que põe em movimento. Já produzir deriva de producere, formado por pro — para frente, adiante — e ducere, aquilo que conduz. Ou seja, fazer ir adiante, fazer sair, pôr para fora, fazer surgir e, em última instância, realizar. Agir e pôr para fora é exatamente a ideia contida em exteriorizar. O produto, aquilo que é produzido, é o resultado concreto de uma ação. Aquilo que foi exteriorizado.
E aqui realizar tem um papel interessante em dois sentidos. Primeiro, dizemos que algo é real no sentido de que é verdadeiro. Faz parte da realidade. Segundo, real são os objetos concretos. Realizar é formado por rēs (“coisa”) + alis (relativo a) → real + -izare (verbalizador). Ou seja, aquela ideia que foi transformada em coisa, em objeto tangível. O que tem tudo a ver com a ideia de objetivação — fazer-se objeto.
Portanto, o trabalho é a atividade produtiva que exterioriza, que põe para fora e faz vir ao mundo um produto, um objeto real, feito coisa. Pode parecer abstrato, mas pensem como é curiosa a expressão em português usada para se referir quando fazemos algo que nos dá plenitude e felicidade. Dizemos: “eu me senti realizado”. Em outras palavras, nos exteriorizamos no mundo e, ao mudar o mundo, vemos nós mesmos nele e nos identificamos. Reconheço a mim mesmo ao reconhecer o objeto que fiz vir ao mundo.
É interessante complementar isso com a ideia de felicidade — que não era originalmente o que hoje chamamos de felicidade. Para a alegria e contentamento individual, os gregos usavam eudaimonia. A palavra felicidade tem a mesma raiz indo-europeia que fértil, no sentido natural daquilo que é fecundo, próspero, que frutifica e produz em abundância. Felicidade então estava relacionada a certa ideia de fortuna, não no sentido monetário, mas no sentido de ver florescer sua vida. Em inglês, por exemplo, felicidade (happiness) deriva do germânico hap, que também aparece em acontecimento (happen) e por acaso (perhaps). Não à toa, ainda hoje a ideia de ser feliz é comumente associada a uma família com filhos e sucesso no trabalho — ser rico sem ser de dinheiro, dizem. É um acontecimento natural.
Mas se, originalmente, falar do que era produtivo e do que era trabalho estava relacionado a certa ideia de felicidade, em que momento passamos a odiar as segundas-feiras? A raiz dessa distinção está na Grécia antiga. Como uma sociedade escravocrata, não é de se surpreender que os “trabalhos do espírito”, como a política, a filosofia (e a contemplação), fossem considerados superiores, enquanto os trabalhos manuais fossem considerados inferiores. Para esses, passou-se a utilizar a palavra labor, no sentido de um esforço físico árduo, com cansaço e sofrimento. Daí labirinto (o que é confuso e difícil) e lábil (instável, transitório). Não por acaso, a nossa palavra trabalho deriva de tripalium (tri + palus — três estacas), um instrumento de tortura. Por isso, entre nós, algo difícil é algo que dá trabalho, em um sentido negativo. Vertentes cristãs inclusive assumem que, sendo o auto sacrifício uma exigência moral do cristianismo, o que resta é trabalhar — “Ora et labora” — rezar e trabalhar, como diz o slogan beneditino. Trabalho é sacrifício.
A coisa muda com a ascensão do capitalismo e com a Reforma Protestante. Weber é quem dá a pista em seu A ética protestante e o espírito do capitalismo. Se, para os cristãos, Deus é onisciente e a vida é predestinada, nosso destino já está dado. Como saber se seremos salvos ou não? Os protestantes vão resolver a questão dizendo que, quando seu trabalho dá frutos (fortuna), é sinal de que Deus escolheu você. É um ponto importante de flexão sobre a relação com o trabalho e que vai cair como uma luva para o capitalismo industrial, em que vale a ideologia do empreendedor de si mesmo e da meritocracia. Desde o ponto de vista moral, trabalhar passa a ser uma virtude e um dever moral. Por outro lado, a preguiça é um vício a ser combatido.
Mas aqui entra a terceira ideia de Marx sobre o trabalho: o estranhamento. A complexificação do processo de trabalho e a sua estruturação no molde capitalista produz, inevitavelmente, a inferiorização e a exclusão crescente dos trabalhadores. Por um lado, o trabalho passa a ser meramente meio de subsistência. Por outro, aquele dever moral se converte em massacre psicológico, na medida em que não se tem os meios para realizar o trabalho. Por fim, o modelo produtivo baseado na grande propriedade privada aliena o trabalhador de seu produto. Não sabemos ao certo para quê produzimos e para quem produzimos. O trabalho alienado é alienado materialmente (não pertence a nós) e também subjetivamente (não tem muito sentido além da existência).
O que então era uma mediação com o mundo, através da qual nos reconhecíamos pertencentes ao mundo, nos realizando e fazendo a nós mesmos, passa a ser a desrealização do sujeito. Se não me identifico com meu trabalho, como me realizo? O trabalho converte-se na total negação de si. O que resta é a sensação de perda de tempo e a culpa por querer se esquivar de um suposto dever moral.
É curioso que as saídas para o burnout e excesso de trabalho hoje passem quase que necessariamente pela negação do trabalho. Descansar é não trabalhar, e o entretenimento tem sempre cara de alienação do mundo. Como se não houvesse outra forma de trabalho que não a que nos é imposta hoje. Mesmo assim, as pessoas continuam buscando alguma forma de realização no trabalho, mesmo que essa forma de trabalho consiga, no máximo, oferecer o mínimo de felicidade.
Dada a carga semântica pejorativa, alguns vão preferir chamar esse outro algo por outro nome que não trabalho. Atividades significativas, produção de vida, etc. Não julgo. A questão é que ninguém se realiza não fazendo nada. Só se realiza fazendo algo. Porque parece que o trabalho é a única alternativa? A tragédia do nosso tempo não é que o trabalho nos esgote. É que, mesmo exaustos, ainda queremos nos realizar — mas só nos oferecem cargos, metas e crachás. A felicidade não cabe na rasura de uma planilha, ela precisa de raízes profundas para florescer e ser fértil. Devolver o trabalho a nós não é metáfora de nada.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
— Garrafa, prato, facão —
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Operário em construção – Vinícius de Moraes