
Por Reynaldo Aragon e Sara Goes
Embora o nome oficial da nova articulação do Senado seja Frente Parlamentar de Apoio à Cibersegurança e à Defesa Cibernética, nas redes sociais e em parte da imprensa ela tem sido mais conhecida como FrenCyber. Ao longo deste artigo, utilizaremos preferencialmente essa forma popular, já consolidada no debate público digital.
No entanto, o leitor poderá se deparar com outras variações, como FrentCiber, FrentCyber e a sigla FPCIBERSEG, presente em documentos institucionais e materiais oficiais utilizados como fonte nesta análise.
A nova frente parlamentar e o perigo da soberania cibernética sem povo – Criada pela Resolução nº 55 do Senado Federal, em 2024, e formalizada no dia do julgamento de Bolsonaro no STF, em 25 de março de 2025, a Frente Parlamentar de Apoio à Cibersegurança e à Defesa Cibernética, com sede em Brasília e funcionamento por prazo indeterminado, se propõe a debater modelos de políticas públicas de cibersegurança, fomentar parcerias com o setor privado, propor medidas legislativas e até viabilizar a criação de uma agência reguladora nacional.
Em teoria, trata-se de um avanço institucional. Na prática, porém, o estatuto da FrenCyber levanta sérios alerta quanto à sua legitimidade democrática, transparência e alinhamento com o interesse público.
Aparentemente neutro, o documento apresenta contradições explícitas. Declara não ter objetivos político-partidários, mas está sendo construído por uma elite parlamentar ligada ao conservadorismo, ao militarismo e a alianças com o capital internacional. Afirma atuar em defesa da soberania, mas não estabelece qualquer proteção real contra a dependência tecnológica externa nem mecanismos de controle democrático.
É nesse descompasso entre o discurso e a prática que reside o perigo: sob a justificativa de proteger o Brasil, a FrenCyber pode aprofundar nossa subordinação aos interesses do Norte Global e à agenda das big techs, justamente os atores que mais ameaçam nossa soberania digital.
O cargo de presidente da frente é reservado, segundo o Estatuto, a um membro do Senado Federal. Entre os nomes em circulação, e que participaram da cerimônia de instalação em abril de 2025, estão figuras como Hamilton Mourão (Republicanos), Esperidião Amin (PP), Damares Alves (Republicanos), Sergio Moro (União Brasil), Plínio Valério (PSDB), entre outros parlamentares com longo histórico de atuação em pautas reacionárias, autoritárias ou ligadas ao antipetismo sistemático.

Não por acaso, a instalação da frente contou com a presença destacada do general Amaro, atual ministro da Defesa, e de representantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o mesmo que durante anos atuou com amplo poder extralegal nas sombras do governo federal, inclusive sob Bolsonaro.
É preciso destacar que não há qualquer representante de partidos progressistas ou da esquerda democrática brasileira entre os fundadores, ou dirigentes da FrenCyber. Esse viés político-ideológico não é detalhe técnico: ele condiciona todo o funcionamento da frente e molda os interesses que ela buscará proteger. Durante a cerimônia de lançamento, chamou atenção a presença da deputada Tabata Amaral (PSB-SP) entre os parlamentares convidados.
Embora não integre a mesa diretora da frente, sua participação no evento pareceu cumprir uma função simbólica — quase como uma representação progressista cuidadosamente posicionada para conferir legitimidade plural à iniciativa.
Tabata, que tem trajetória ligada à pauta da educação e se identifica com causas sociais, também mantém interlocução com setores empresariais e defende propostas alinhadas ao liberalismo econômico. Sua presença, nesse contexto, funcionou como um álibi de diversidade em uma frente cuja composição majoritária aponta para uma agenda conservadora, tecnocrática e alinhada à lógica da segurança nacional militarizada.
Essa captura ideológica se torna ainda mais perigosa quando consideramos que essa mesma composição política e seus aliados foram os protagonistas da destruição da ciência, da criminalização das universidades, da perseguição à imprensa livre e da disseminação da desinformação em larga escala nos últimos anos. A ironia é brutal: os mesmos atores que ajudaram a transformar o Brasil em laboratório da guerra híbrida agora querem posar como guardiões da ciberdefesa.
Parcerias com o setor privado: porta aberta para a captura estrangeira da infraestrutura crítica nacional – Logo no Art. 1º, inciso II, o documento propõe “a criação de uma agência reguladora nacional responsável tanto pela prevenção como pela coordenação de resposta aos ataques e incidentes cibernéticos que envolvam as infraestruturas críticas nacionais, em conjunto com o setor privado e a academia.”
Em outras palavras, a gestão da segurança digital do país, incluindo áreas sensíveis como energia, comunicação, sistema financeiro e defesa, seria compartilhada com atores privados, sem qualquer definição sobre sua origem, limites, responsabilidades, nem salvaguardas de soberania tecnológica.
Na prática, isso significa abrir caminho para a entrada irrestrita de gigantes como Microsoft, Google, Palantir, Oracle, Amazon e IBM no coração da governança cibernética brasileira. Empresas essas que, como se sabe, mantêm contratos bilionários com o Pentágono, com agências de inteligência norte-americanas como a NSA e a CIA, e com organismos multilaterais controlados pelo G7.
Não é teoria da conspiração, é geopolítica pura: as big techs são, hoje, instrumentos do poder imperial, e seu avanço sobre países do Sul Global tem sido uma das formas mais sofisticadas de recolonização informacional.
A participação da academia nesse “tripé” (Estado-setor privado-universidade), embora aparentemente positiva, pode se revelar apenas um ornamento tecnocrático se estiver limitada a setores cooptados, alinhados a think tanks internacionais e sem autonomia crítica.
O verdadeiro risco reside no fato de que, sem um projeto público claro, com base em ciência aberta, software livre e servidores nacionais, o setor privado ocupará os espaços vazios com soluções de prateleira — caras, viciadas, opacas — que reforçam a dependência tecnológica e a vigilância externa.
O Estatuto também menciona, de forma preocupante, o objetivo de “ampliar fontes de recursos e financiamentos, sejam públicos ou privados, e propor mecanismos que viabilizem a aquisição de equipamentos e a contratação de serviços” (Art. 1º, inciso VIII).
Isso escancara o flanco para lobbies empresariais, parcerias desiguais, contratos sem licitação amparados por “segredos estratégicos” e, no limite, a transformação da segurança cibernética em um grande balcão de negócios entre parlamentares e corporações globais.
Não há, em nenhum trecho do documento, qualquer menção ao uso de infraestrutura pública soberana, servidores nacionais, nuvem estatal, tecnologias abertas ou proteção de dados sensíveis com controle exclusivo do Estado.
Nenhuma linha sobre o papel da Telebras, da RNP, das universidades públicas ou do Serpro. O Brasil parece, mais uma vez, disposto a colocar a gestão de seus nervos digitais nas mãos de quem já lucra com sua desinformação, com seu subdesenvolvimento e com seu desequilíbrio informacional.
Estamos diante de um projeto que, sob a retórica da defesa e da inovação, abre a porta para a privatização total da soberania digital brasileira. Não se trata de aprimorar a segurança do país, mas de transformá-la em um negócio rentável para poucos — e potencialmente perigoso para todos.
Ausência de participação popular e controle social: segurança sem povo é vigilância – É impossível falar de soberania em qualquer campo — seja ele militar, tecnológico ou informacional — sem falar de democracia. E não há democracia sem mecanismos institucionais de controle social, transparência e participação cidadã. Esse princípio, que deveria estar no cerne de qualquer política pública voltada à cibersegurança, foi solenemente ignorado no Estatuto da FrenCyber.
O documento inteiro é construído com base em uma lógica verticalista, parlamentocêntrica e absolutamente hermética. A Frente é composta por senadores e deputados que dela decidirem participar. Os cargos são ocupados por escolha interna, sem qualquer critério de representação plural ou consulta pública.
Não há menção, em nenhum trecho, a conselhos consultivos, audiências públicas, escuta da sociedade civil, participação de especialistas independentes, organizações sociais, sindicatos, universidades ou coletivos da periferia digital. Nada.
A única possibilidade de interação com entidades externas aparece no Art. 4º, parágrafo único, onde se menciona a possibilidade de “relações de intercâmbio e cooperação com entidades nacionais e estrangeiras”. Mas até esse trecho é vago e focado exclusivamente em articulações de alto nível, que pouco ou nada dizem respeito à escuta social.
Trata-se de um estatuto construído por dentro do Estado, para dentro do Estado e a serviço de uma elite política e empresarial que não presta contas a ninguém.
Esse tipo de arranjo institucional não apenas exclui a sociedade brasileira do debate sobre sua própria segurança digital, como também cria um risco real de que medidas autoritárias, como monitoramento em massa, perseguição política, repressão a movimentos sociais e criminalização da dissidência, sejam aprovadas sob a desculpa da “proteção cibernética” sem qualquer tipo de resistência ou questionamento institucional. Afinal, quem vigiará os vigilantes?
A ausência de controle social também significa que as decisões tomadas pela FrenCyber podem ter implicações profundas sobre os direitos civis da população brasileira, sem que esta sequer saiba o que está sendo discutido.
Quem definirá, por exemplo, o que é considerado “crime cibernético”? Quem terá acesso às bases de dados dos cidadãos? Quem poderá determinar o bloqueio de conteúdos ou o rastreamento de comunicações em nome da segurança nacional?
Num país onde o lawfare destruiu biografias inteiras, onde jornalistas são perseguidos, onde a desinformação se tornou política de Estado e onde a militarização do cotidiano se normalizou, dar poderes quase ilimitados a uma frente parlamentar fechada, sem transparência e sem contrapesos democráticos, é uma ameaça real ao Estado de Direito.
Cibersegurança sem democracia é apenas mais um nome para vigilância estatal seletiva, privatização da repressão e erosão das liberdades fundamentais. Não se constrói soberania digital expulsando o povo da sala.

Militarização da cibersegurança: quando a defesa vira doutrina e o inimigo é interno –
A instalação da frente parlamentar em março de 2025 contou com a presença ostensiva de representantes das Forças Armadas, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), do Ministério da Defesa e de parlamentares com histórico de defesa do regime militar e da repressão política. A militarização da cibersegurança traz consigo uma série de perigos:
– Primeiro, porque ela transforma a informação e seus fluxos em um campo de batalha permanente, onde tudo é suspeito, tudo pode ser espionado, e tudo pode ser justificado em nome de uma suposta “ameaça híbrida”. Isso permite a expansão de práticas autoritárias sob a desculpa da proteção nacional, como vimos acontecer com a ABIN no governo Bolsonaro, com o monitoramento ilegal de opositores, jornalistas, professores e movimentos sociais.
Durante o evento, esse espírito belicista e distorcido da segurança digital ficou evidente. Hamilton Mourão, por exemplo, evocou o risco de uma guerra digital entre potências. Já Marcos Pontes, senador e ex-astronauta, tentou justificar sua participação com uma fala desconexa sobre soberania, voo, educação e espaço, carregada de metáforas e chavões que nada diziam sobre o tema central.
Se há um campo onde o controle popular e a regulação estatal se tornam urgentes, é o digital. Mas o discurso da frente não mira nisso, mira na manutenção de privilégios, no controle de narrativas e na criminalização seletiva. A “cibersegurança” que ali se defende não é para todos, é para poucos.
– Segundo, porque essa lógica securitária acaba naturalizando o uso de tecnologias invasivas sem qualquer controle civil, como sistemas de vigilância massiva, softwares de reconhecimento facial, interceptações automatizadas, backdoors em sistemas públicos e parcerias opacas com empresas de inteligência. Tudo isso sem debate público, sem prestação de contas e com altíssimo risco de abuso institucional.
– Terceiro, porque ela rompe com o princípio da supremacia civil sobre as forças armadas, essencial em qualquer democracia. Quando os militares começam a ditar as regras do jogo informacional e mais ainda, quando o fazem por meio de frentes parlamentares, o que está em jogo é o próprio pacto constitucional. A segurança digital, nesse cenário, deixa de ser um direito coletivo e passa a ser um instrumento de doutrinação ideológica e controle político.
– Por fim, a militarização da cibersegurança promove uma visão binária, belicista e paranoica do ambiente informacional, na qual o inimigo está sempre dentro do país, infiltrado nas universidades, na imprensa, nas redes sociais ou em ONGs. Essa lógica não protege o Brasil ela o isola, o intoxica e o submete a uma guerra permanente contra si.
Soberania digital só existe com povo, ciência e democracia – A Frente, tal como instituída por seu Estatuto e pelas forças políticas que a compõem, não é um espaço neutro ou técnico para formulação de políticas públicas. É um organismo político-ideológico, montado visando capturar, normatizar e direcionar o debate sobre segurança digital no Brasil a partir de uma lógica conservadora, privatista, militarizada e autorreferente.
Em vez de representar um avanço institucional, ela pode significar um retrocesso histórico no campo da soberania informacional, justamente num momento em que o país mais precisa se proteger.
É urgente que a sociedade civil, a academia crítica, os coletivos de tecnologia popular, os movimentos sociais, os comunicadores, juristas e ativistas da liberdade digital tomem parte nesse debate e denunciem o projeto de poder que se esconde por trás da FrenCyber. Não se trata de negar a necessidade de políticas públicas de cibersegurança, ao contrário.
Trata-se de impedir que esse campo vital para a soberania nacional seja dominado por quem sempre utilizou a segurança como instrumento de exclusão, opressão e vigilância. A soberania digital do Brasil será pública, popular e democrática, ou será apenas mais uma zona de ocupação estrangeira invisível, legitimada por um Congresso tutelado por interesses que não são os do povo.
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