
Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
De todas as delícias e atrativos das Feiras da Reforma Agrária do MST, o espaço da Culinária da Terra é, sem dúvidas, um dos que mais chamam a atenção do público. Entre os dias 8 e 11 de maio de 2025, no Parque da Água Branca, em São Paulo, será possível fazer uma verdadeira viagem pelos sabores do Brasil. Com aromas que se espalham pelo parque e o ritmo animado das panelas, o local promete ser um dos pontos mais concorridos do evento, que espera receber mais de 300 mil visitantes durante os quatro dias de programação.
Nesta edição, o espaço gastronômico reunirá pratos típicos de 23 cozinhas dos estados onde o MST está presente, representando a riqueza cultural e culinária de todas as regiões do país. De Norte a Sul, os visitantes poderão experimentar desde o tacacá paraense e o pato no tucupi, da Amazônia, até o arroz com pequi goiano, símbolo do Cerrado, passando pela moqueca capixaba, feita em panelas de barro, e pelo entrevero gaúcho, que carrega a tradição campeira do Sul.
“Estamos em um processo intenso de preparação, e nossas cozinhas têm o desafio de trazer para a Feira uma comida gostosa e saudável, com os sabores da comida de roça e da Reforma Agrária, que fazem parte da memória e da cultura alimentar de muita gente que mora na cidade de São Paulo e visita a nossa Feira, justamente atrás desse ‘carinho’ em forma de comida que a gente busca trazer”, afirma Ana Chã, da coordenação do espaço na Feira.
A Culinária da Terra, assim como o todo da Feira Nacional da Reforma Agrária, não traz apenas os sabores, mas também as histórias por trás de cada prato. O bode assado de Pernambuco, o caldo de sururu baiano e a quiabada sergipana revelam a diversidade de técnicas e ingredientes que fazem da culinária brasileira uma das mais ricas do mundo. Tudo é preparado por cozinheiras e cozinheiros Sem Terra que mantêm viva a tradição de suas comunidades, garantindo autenticidade em cada receita.

“É um ato político que questiona e resiste ao modelo do agronegócio que em geral só produz commodities e também resistência à indústria dos ultraprocessados que vem descaracterizando cada vez mais os alimentos e contribuindo para vários problemas de saúde na população”, afirmou Ana Chã.
É preciso ressaltar também que a Culinária da Terra é um espaço de valorização da agricultura familiar e camponesa e da Reforma Agrária, mostrando como a produção sustentável de alimentos se transforma em pratos cheios de identidade. Na última edição, foram servidas 80 mil refeições, e a expectativa é superar esse número em 2025, levando ainda mais pessoas a descobrirem os sabores que vêm direto do campo para a mesa da população brasileira.
Com opções para todos os gostos, o sucesso da Culinária da Terra está também nos ingredientes, cultivados com mãos que entendem de terra, nos temperos que carregam histórias de resistência e no saber tradicional de quem transforma alimentos sem agrotóxicos, a partir da produção agroecológica dos assentamentos do MST. “Acreditamos que a base de uma alimentação saudável está justamente nos alimentos que a compõem, sua origem, a forma como são produzidos, além, claro, da forma como são preparados, da relação com cada cultura”, ressalta Ana Chã.

Do milho crioulo à macaxeira, do arroz orgânico ao pinhão, passando por frutas e legumes que nascem livres de venenos, estes ingredientes viajam das áreas mais distantes da Reforma Agrária Popular do país para mostrar como se faz comida de verdade, com o cuidado pela natureza e respeito aos ciclos da terra.
“Poder cozinhar na feira os alimentos que na sua maioria são produzidos nos assentamentos e acampamentos de Reforma Agrária é uma forma de reafirmar na prática a importância da produção agroecológica, da cooperação entre as famílias, da importância das políticas públicas voltadas para a agricultura camponesa e familiar”, conta.
A cada edição, a Culinária da Terra prova que comer é um ato político. Este ano, o espaço foi pensado para materializar a diversidade alimentar e cultural dos acampamentos e assentamentos de todo o Brasil. Mais que matar a fome de pão, a Culinária da Terra alimenta a alma. É espaço de troca de saberes, de celebração da cultura camponesa e de demonstração concreta de que outro modelo alimentar é possível – saboroso, diverso e radicalmente comprometido com a vida.
Para realizar tudo isso, os desafios são grandes, uma vez que algumas regiões estão distantes de São Paulo e que há toda uma logística necessária para garantir que os alimentos cheguem com qualidade e na quantidade necessária, de modo a assegurar que todos possam degustar os diferentes pratos.
Entretanto, Ana Chã garante: “A experiência das Feiras passadas e de grandes atividades massivas que o MST organiza há mais de 40 anos tem nos permitido aperfeiçoar os processos, buscar soluções coletivas. Sem dúvida o conhecimento e prática das nossas cozinheiras e cozinheiros e a nossa forma organizativa são centrais para fazer ferver esse caldeirão de diversidade de sabores.”
Confira alguns dos pratos favoritos que você não pode perder nesta Feira![…]
Amazônia: Tacacá

Nascido da sabedoria ancestral dos povos Tupinambás, o tacacá é um tipo de sopa que combina tucupi (caldo ácido extraído da mandioca brava), goma de tapioca, camarão seco e jambu – erva amazônica que provoca leve formigamento na boca. Sua preparação exige conhecimento ancestral, principalmente no processamento da mandioca brava, que precisa ser fermentada para eliminar toxinas naturais.
O prato representa a fusão de saberes tradicionais com influências portuguesas (nos camarões secos) e africanas (nas técnicas de cozimento). O tacacá é mais consumido no final da tarde, vendido por tacacazeiras em bancas de rua, onde os clientes tomam em pé, temperando com pimenta-de-cheiro a gosto. Além de seu valor cultural, o tacacá ganhou reconhecimento como símbolo da biodiversidade amazônica, utilizando ingredientes nativos como o jambu, que tem propriedades medicinais, e o tucupi, base de outros pratos regionais como o pato no tucupi.
Também vale conferir: Peixe com açaí
Dizem que o peixe com açaí da Amazônia é a dança das águas e das florestas, é a Amazônia em um só garfo: o rio generoso, a mata que nutre, o povo que reinventa a tradição sem perder suas raízes.
Nordeste: Baião de Dois
Também nascido da inventividade sertaneja, o baião de dois representa a culinária nordestina, unindo novamente as tradições indígenas, africanas e europeias. Sua origem vem dos tropeiros e vaqueiros, que precisavam criar pratos nutritivos com ingredientes que resistissem ao clima árido.

A combinação de arroz e feijão-verde (ou feijão-de-corda) reflete a adaptação aos recursos disponíveis no sertão, enquanto a carne seca, queijo coalho e toucinho refletem a pecuária da região. A técnica de preparo: cozinhar o feijão primeiro e depois acrescentar o arroz – foi desenvolvida para otimizar o uso do fogo e da água, recursos escassos no semiárido.
Durante as grandes secas, o prato salvou famílias da fome, e hoje figura como prato nacional, mantendo viva a memória da culinária sertaneja. Sua evolução inclui variações regionais, como a versão cearense com pequi e a paraibana com carne de sol, sempre preservando sua essência como alimento que narra a história de um povo e sua relação com a terra.
Também vale a pena conferir: Moqueca Baiana
Com técnicas trazidas pelos africanos, a moqueca baiana transforma simples peixes e frutos do mar em uma explosão de sabores e cores. O dendê, óleo sagrado na cultura afro-brasileira, dá o tom dourado e o sabor marcante, enquanto o leite de coco suaviza e equilibra os temperos.
Cerrado: Arroz com Pequi

O arroz com pequi é um dos pratos mais famosos da culinária do Centro-Oeste, especialmente em Goiás, onde se tornou símbolo cultural. O pequi, fruto nativo do Cerrado, possui uma polpa amarelo-dourado de sabor marcante – descrito como mistura de queijo, flor e terra úmida –, mas exige cuidado: seu caroço esconde espinhos finos, daí o ditado local que alerta para “lambar, não morder”.
Preparado tradicionalmente com banha de porco, o prato leva arroz refogado no mesmo tempero do pequi, resultando em uma combinação de cores e sabores intensos. Embora algumas versões incluem frango caipira ou costelinha, a receita clássica valoriza a simplicidade. Assim, o prato carrega um significado ecológico: é um símbolo de resistência do Cerrado, bioma ameaçado pelo avanço do agronegócio. O óleo de pequi, extraído da polpa e usado na culinária e na cosmética, é chamado de “ouro do Cerrado”, reforçando o valor econômico e cultural do fruto.
Também vale a pena conferir: Frango com guariroba
Nascido da criatividade dos cozinheiros do Cerrado, o frango com guariroba transforma o palmito amargo em um prato com personalidade. A guariroba, extraída da mesma palmeira que produz o pequi, é “dessaborizada” e refogada com frango caipira, temperos frescos e até um toque de bacon, criando uma harmonia entre o amargo característico e os sabores robustos da carne.
Sudeste: Moqueca Capixaba
A moqueca capixaba é uma expressão autêntica da cultura gastronômica do Espírito Santo, diferenciando-se radicalmente de sua prima baiana. Sua história remonta às tradições indígenas de cozinhar peixe em folhas, técnica que se fundiu com a introdução das panelas de barro pelos portugueses.

O uso exclusivo de urucum para coloração, em contraste com o dendê baiano, revela uma adaptação local aos ingredientes disponíveis. A autenticidade está também nas panelas de barro artesanais de Goiabeiras, fabricadas com técnicas ancestrais, que remontam aos povos originários; alguns se arriscam a dizer que ela simboliza a harmonia entre o homem e o meio ambiente, utilizando peixes nativos como o robalo e a garoupa, pescados tradicionalmente nas águas costeiras do estado. A moqueca capixaba preserva um preparo meticuloso: cozimento lento em fogo brando, sem alho ou cebola, mantendo a pureza dos sabores.
Também vale a pena conferir: Broa de milho cremoso de MG
Nascida nos fogões a lenha das fazendas coloniais, a broa de milho cremosa de Minas Gerais transforma ingredientes simples – fubá fresco, ovos caipiras e leite recém-ordenhado – em um doce que é pura memória afetiva. Sua versão cremosa mantém a textura úmida e aveludada, trazendo a essência da doçaria mineira.
Sul: Entrevero

O entrevero representa a essência da culinária campeira sulista, nascida da necessidade prática dos peões durante as longas jornadas de trabalho no pampa. Feito com arroz orgânico, a receita mistura carnes diversas – incluindo cortes menos nobres como miúdos e linguiça, além do pinhão, tomate e temperos e sal de ervas.
O uso de banha de porco e o cozimento em fogo brando revelam técnicas herdadas tanto dos indígenas quanto dos colonizadores europeus. Assim, o entrevero acaba sendo documento histórico da vida campeira, preservando saberes tradicionais do mundo pastoril. Sua evolução acompanhou a formação da identidade gaúcha, incorporando elementos como o vinho tinto na degustação, e hoje figura como símbolo da culinária regional.
Também vale a pena conferir: Arroz de Carreteiro
Também nascido nas longas jornadas dos tropeiros pelo Sul do Brasil, o arroz de carreteiro transformou a carne seca, alimento resistente ao tempo, em um prato que alimentou gerações. A receita une o arroz à carne desfiada, refogada com banha, alho e cebola até atingir o ponto perfeito – nem seco demais, nem aguado.
*Editado por Solange Engelmann