Grandes potências mundiais recorrem frequentemente a mecanismos de longo alcance para ampliar sua influência. Os Estados Unidos, por exemplo, lançaram após a II Guerra Mundial o ‘Plano Marshall’, um vigoroso programa de reconstrução da Europa. De lá pra cá, o país passou a transferir recursos a nações de menor renda por meio da Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional, a USAID (na sigla em inglês), presente hoje em mais de 100 países.
Agora, a USAID pode encerrar suas atividades por decisão do governo Donald Trump. O republicano anunciou a medida no início desta semana, suscitando consternação global. Pelo comunicado oficial, as operações da agência serão suspensas por 90 dias.
De modo oficial, Trump justifica o encerramento para reduzir gastos federais, alegando desperdício. O argumento fiscal, entretanto, não esgota os motivos políticos para a iniciativa, convertida em uma das principais bandeiras do segundo mandato do republicano.
“O fechamento da USAID, mais do que simplesmente um corte de gastos, é uma mudança de política externa dos EUA, que está renunciando a ser a potência que hegemoniza o mundo”, afirma Márcio Moretto, professor da Universidade de São Paulo e coordenador do projeto Monitor do Debate Político no Meio Digital.
Para Moretto, o que se vê “é o trumpismo mobilizando essa ideia de que os EUA não podem mais ser tão condescendentes — ou caridosos — como antes”. Essa reconfiguração, alerta o especialista, tem efeitos no mundo inteiro.
O que é a USAID
A Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional foi criada no início da década de 1960 para unificar os vários programas de assistência externa do país. Hoje, a USAID desenvolve iniciativas de saúde e presta ajuda humanitária em diferentes partes do mundo.
Os recursos da USAID podem ser destinados diretamente a outros governos, ou repassados para organizações não governamentais e entidades internacionais. Um exemplo é o financiamento à Organização das Nações Unidas (ONU): em 2024, 42% de toda a ajuda humanitária das Nações Unidas teve origem na agência, o que faz da USAID a maior doadora individual do mundo.
Politicamente, a USAID também funciona como instrumento de “soft power” dos EUA — um conceito de Relações Internacionais que se refere à capacidade de influenciar sem recorrer à força militar.
A atuação da agência abrange desde garantir acesso à água potável em determinadas regiões até financiar tratamentos para doenças ligadas ao HIV e investir em segurança energética. Países como Etiópia, República Democrática do Congo e Jordânia estão entre os principais beneficiários.
Quais as justificativas de Trump do fechamento?
Com um orçamento de aproximadamente 40 bilhões de dólares (cerca de 231 bilhões de reais), a USAID é considerada custosa por Trump, ainda que esse valor represente menos de 1% do orçamento federal dos EUA, segundo registros governamentais.
De modo oficial, Trump justifica o encerramento para reduzir gastos federais, alegando desperdício. As acusações também incluem a alegação de que a USAID não prestaria contas aos contribuintes, “destinando enormes quantias a projetos ridículos — e, em muitos casos, mal-intencionados — de burocratas entrincheirados”.
O argumento fiscal, entretanto, não esgota os motivos políticos já manifestados por ele e por Elon Musk, chefe do recém-criado Departamento de Eficiência Governamental dos EUA.
Desde que surgiram rumores sobre o possível fechamento, Trump e Musk vêm fazendo críticas contundentes à USAID. Sem provas, Musk chegou a classificar a agência, em sua própria rede social X, como “organização criminosa”.
Trump seguiu a mesma linha, qualificando a liderança da agência como “um bando de lunáticos radicais” e sugerindo — novamente, sem apresentar evidências — que bilhões de dólares foram desviados para veículos de imprensa supostamente alinhados ao Partido Democrata. Veículos como o New York Times e o site Politico foram citados como alguns destes beneficiários, desmentindo prontamente as afirmações.
Como os motivos reais permanecem difusos, as especulações encontram terreno fértil. Segundo o Washington Post, por exemplo, haveria uma disputa de poder interna: o governo Trump teria demitido recentemente dois altos funcionários da USAID após ambos se recusarem a conceder acesso a áreas classificadas como restritas dentro da agência.
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Manifestantes protestam contra fechamento da USAID. Foto: Kayla Bartkowski/Getty Images/AFP
Efeitos imediatos
O site da USAID saiu do ar no início da semana. Somente na última quarta-feira 5 voltou a funcionar, exibindo apenas uma mensagem de despedida.
Em comunicado, a agência informou que todos os funcionários não essenciais serão colocados em licença de forma temporária, a partir da virada da próxima sexta-feira 7 para sábado 8. Apenas servidores em “funções críticas de missão, liderança central e programas especialmente designados” permanecerão em atividade.
A USAID conta com cerca de 10 mil funcionários em diferentes países do mundo, mas não detalhou a dimensão exata do corte na força de trabalho. Funcionários da agência que atuam em países africanos relataram à AFP que a decisão prejudicará diversos programas de saúde em regiões altamente vulneráveis.
Trump pode mesmo fechar de vez a USAID?
A USAID é uma agência independente, ou seja, pertence à estrutura federal, mas dispõe de maior autonomia do que, por exemplo, uma secretaria de governo.
Em teoria, a agência não responde diretamente ao presidente, assim como a CIA. Cabe à própria USAID — e não necessariamente ao chefe do Executivo — definir as necessidades de seu orçamento.
A principal dúvida é se o Congresso norte-americano conseguirá impedir o encerramento definitivo das atividades. Além do futuro da USAID, há uma crescente insatisfação entre democratas e até republicanos moderados em relação ao papel de Elon Musk.
Chuck Schumer, líder democrata no Senado, declarou que “o que quer que o DOGE [referência à pasta liderada por Musk] esteja fazendo, certamente não se assemelha a uma democracia”. No entanto, tanto democratas quanto republicanos ainda não sinalizaram uma estratégia clara para travar o fechamento.
No lado governista, especula-se uma proposta de fundir a USAID com a Secretaria de Estado, chefiada por Marco Rubio. Isso evitaria o seu encerramento, mas comprometeria de forma definitiva a autonomia orçamentária da agência.
E o Brasil?
Recentemente, Mike Benz, ex-chefe do setor de informática do Departamento de Estado dos EUA no governo Trump, afirmou que “se a USAID não existisse, Bolsonaro ainda seria presidente do Brasil”. A declaração foi feita a um programa comandado por Steve Bannon, ex-estrategista de Trump e considerado o principal ideólogo da ultradireita moderna.
A menção agitou bolsonaristas no Brasil. Os deputados Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Gustavo Gayer (PL-GO) estão coletando assinaturas para abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar uma suposta interferência da USAID nas eleições brasileiras de 2022. São necessárias 171 para que o requerimento avance na Câmara dos Deputados.