no Observatório Internacional do Século XXI

O projeto europeu e as identidades nacionais

por Wagner Sousa

As importantes mudanças na geopolítica da Europa e do mundo nos últimos anos trazem, uma vez mais, a questão da unificação política do continente. Desde as primeiras discussões sobre uma Comunidade Europeia, no pós-guerra, a hipótese da criação de uma federação sempre esteve na cabeça de muitos defensores do processo de integração como o objetivo final. Contudo as lideranças dos Estados, em especial dos dois Estados à frente do processo, França e Alemanha, nunca consideraram efetivamente a cessão de suas soberanias em prol de um ente político regional ao qual se submeteriam. O avanço na integração sempre esteve ligado à criação, na maior parte do tempo de “consensos” que representam o “menor denominador comum”, as concessões politicamente viáveis que representam as vontades dos Estados Nacionais.

Norbert Elias em “A Sociedade dos Indivíduos” ao tratar de uma eventual forma federativa na União Europeia problematiza a questão da identidade. Um dos problemas para a criação de uma federação na Europa estaria na questão das diferentes identidades nacionais, da falta de uma “solidariedade europeia” e da visão do indivíduo de que o Estado Nacional continua sendo a sua “fonte de proteção” e de que a comunidade nacional consolidou um habitus social que, segundo o autor: “a continuidade da existência dos Estados Nacionais europeus como unidades de sobrevivência formalmente independentes é o que melhor se ajusta ao habitus social dos povos a eles pertencentes. Países como a Inglaterra, a Holanda, a Dinamarca ou a França desenvolveram-se continuamente, como unidades organizacionais relativamente autônomas, durante vários séculos, e nos últimos 100 anos em particular houve um intenso avanço da democratização funcional que integrou na estrutura estatal praticamente todas as classes. Esses avanços promoveram, nas estruturas individuais de personalidade das pessoas de todas as classes, uma arraigada predisposição a conviverem dessa forma específica, como dinamarqueses, holandeses ou franceses. Algo semelhante aplica-se à maneira como as pessoas se adaptam à competição dentro do país ou como os sentimentos pessoais se harmonizam com a imagem-nós e a identidade-nós conhecidos. (..) é comparativamente tênue ou inexistente em relação às formas preliminares da federação europeia de nações”. (ELIAS, 2004, p.178-179)   

Elias entendeu que o problema é identitário e este seria o obstáculo para que acordos entre os países pudessem formar uma federação na Europa, haja vista, no entendimento do autor “a realidade social do desenvolvimento das nações em direção a unidades pós-nacionais”. (ELIAS, 2004, p. 179) Embora considere corretamente a dimensão da identidade nesta questão, o argumento de Elias de uma “tendência pós-nacional” é funcionalista e não considera o papel do poder e sua disputa entre os Estados na dificuldade para o acordo para uma união supranacional.

A própria formação dos Estados Nacionais europeus se deu ao longo dos séculos através de guerras e imposições dos poderes vencedores. A construção de uma “identidade pós-nacional” europeia de forma pactuada e que signifique maior cessão das soberanias e orçamentos para um ente comum, além de redistribuição de recursos em prol das áreas menos desenvolvidas (do norte para o sul e o leste) demandaria um difícil consenso regional, especialmente entre os maiores Estados que, a rigor, não querem perder poder de decisão ou transferir, em grande escala, os seus recursos (os eleitorados nos países mais ricos da UE resistem à concessão de subsídios aos países menos desenvolvidos).

Mas isto não significa que a União Europeia não possa, embora isto não esteja dado, coordenar áreas que necessitam de protagonismo regional, como no caso da segurança. A invasão da Ucrânia pela Rússia e os sinais dúbios de Donald Trump em relação ao compromisso dos EUA com a OTAN vem fazendo com que os governos europeus busquem articulação estratégica imaginando um possível futuro sem a cobertura militar (nuclear especialmente) norte-americana. O imperativo da segurança frente à atores militarmente mais poderosos como a Rússia e a China e atores ascendentes como a Índia, sem a proteção dos EUA pode ensejar a organização da segurança coletiva regional europeia apenas pelos próprios europeus.

Elias, neste texto citado de 1987, portanto anterior ao fim do bloco socialista e da URSS, da reunificação da Alemanha e da criação da União Europeia, antecipa, tendo como fulcro a conjuntura da época, as dificuldades que a Europa enfrenta hoje: “As unidades de sobrevivência no estágio de desenvolvimento de Estados Nacionais não podem competir com organizações estatais no estágio seguinte, sobretudo os Estados Unidos e a União Soviética, sem se combinarem em Estados multinacionais maiores e com maiores recursos. A pressão do desenvolvimento, particularmente técnico e econômico, e toda a pressão da competição internacional estão forçando a integração humana a ultrapassar o estágio dos Estados Nacionais, rumo à formação de Estados unificados. Mas essa pressão do desenvolvimento não-planejado depara-se com a pressão oposta da identidade-nós das nações e até agora esta última tem geralmente sido mais forte”. (ELIAS, 2004, p. 181) Portanto, o problema da identidade e das estruturas de poder regional e global colocam desafios à continuidade do projeto europeu.

Wagner Sousa – Doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ. Pós-Doutorado em Relações Internacionais pela Unesp. Atualmente é pós-doutorando em Economia Política Internacional na UFRJ com pesquisa sobre a política externa alemã e suas relações com grandes potências (EUA, Rússia e China)

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Last Update: 26/05/2025