O primeiro livro a gente nunca esquece… (I), por Izaías Almada
A ilustração acima é a capa do meu primeiro livro e como todo livro, sobretudo o primeiro, tem a sua história.
Foi editado e publicado em 1989 pela Editora Estação Liberdade, sob a responsabilidade editorial de Jiro Takahashi, editor e professor universitário de editoração.
Entre os anos de 1987/1988, leitor apaixonado que eu era e incentivado por um grande amigo, José Adolfo de Granville Ponce, já falecido, que foi o primeiro leitor de dois ou três contos literários “cometidos” por mim. Surpreendeu-me dizendo que eu tinha algum jeito para a escrita.
Granville, que trabalhava na Editora Scipione, era um profissional do ramo, acendeu-me a chama e prometi-lhe que escreveria mais alguns contos.
Entre a confiança e a insegurança fui juntando as palavras na expectativa de conseguir dar sentido às ideias que me surgiam. Passados três ou quatro meses apresentei mais uns cinco contos ao “Granva”, assim chamado pelos amigos, aguardando as suas críticas. Um desses contos, aliás, ”O Gato Rambo”, foi publicado aqui no GGN.
Após a segunda leitura do Granville, veio o susto: “você vai procurar um amigo meu que é sócio de uma nova editora, a Estação Liberdade”… “O nome dele é Jiro, Jiro Takahashi”…
Rua Fagundes, 61, Bairro da Liberdade…
Mal sabia eu que naquele endereço começava uma nova vida para mim… Na época eu trabalhava como diretor de RTV na McCann-Erickson, uma das grandes agências de publicidade no Brasil.
Espiralei os contos, sete ou oito deles, já não me lembro bem, coloquei-os num envelope de papel pardo e parti para o endereço que me foi indicado.
Alguns dias depois, recebi o telefonema do Jiro Takahashi convidando-me para uma conversa na editora e, com o coração batendo em ritmo mais acelerado, fui ouvir o que ele tinha dizer.
Jiro gostou de alguns dos contos e de outros nem tanto… E deu-me um conselho: “Um livro de contos pode não ser a melhor maneira de iniciar a vida literária, pois para os críticos profissionais basta não gostarem de um deles já é motivo suficiente para afirmarem que o livro não é bom… Por que você não escreve um romance?”.
Não sei bem qual foi a minha expressão, mas por dentro eu pensava: será que é gozação? Disse que iria pensar e voltei para casa sem saber muito bem o que fazer.
Um dos contos tinha por título “O enigma de Ruth”, escrito como pré-roteiro para inscrever em um edital de cinema da Secretaria Estadual de Cultura. A narrativa, com princípio, meio e fim, deu-me alguma noção e coragem para o desafio recebido.
Passaram-se alguns meses e no final de 1988 ou início de 89, sempre com o incentivo do amigo Granville e a paciência do futuro amigo Jiro Takahashi, entreguei à Editora Estação Liberdade os originais daquele que se transformou no meu primeiro livro: “A Metade Arrancada de Mim”.
Quando recebi do Jiro a notícia de que o livro seria publicado, entreguei a cópia dos originais que ficaram comigo ao ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri, amigo e companheiro no Teatro de Arena de São Paulo, para que me desse sua opinião, depois colocada nas “orelhas do livro”:
Com esse romance de estréia, Izaías Almada dá uma importante contribuição para o resgate das indagações sobre nosso passado recente.
Costuma-se afirmar que somos um povo de pouca memória, sem visão histórica. Certamente este livro nos auxiliará a refletir sobre os fatos que tornaram nossa sociedade na que constituímos hoje.
A narrativa foi estruturada em dois tempos: o atual (1988) em um Brasil de ressaca, convalescente, em reestruturação, e o do passado (1971) quando nos conduz pelos porões da ditadura e nos desvenda os métodos da repressão à luta armada.
Dois personagens conduzem a trama: Ruth e Rafael. Vítima e algoz, torturada e torturador.
Luís Otávio – novo e promissor membro do staff da Nova República – é o terceiro personagem que forma o trio básico da história.
Um mero telefonema implode a vida de Ruth, que é brutalmente remetida a uma época cujas experiências procurava deixar adormecidas, já que esquecê-las se tornara impossível.
Novos telefonemas desencadeiam conflituadas lembranças, paixões, certezas e angústias que pareciam convenientemente sedadas.
O tema se universaliza, o que está em questão é a própria dignidade do ser humano, sua condição, a consciência de seus direitos conquistados em milhares de anos de luta.
Apesar da densidade do tema, o livro é de leitura fácil e empolgante. Escrito originalmente em forma de roteiro cinematográfico, conserva do gênero o poder de síntese e a agilidade e, como romance, mantém página após página o interesse e a atenção do leitor.
Não tendo nenhuma intenção autobiográfica, “A Metade Arranca de Mim” enriquece-se com a experiência do autor – ex-preso político – que soube transpor literariamente sua vivência com grande sensibilidade e emoção.
E no final do livro compreenderá o leitor porque agora, temo, ao entrar em uma cabine telefônica, deparar com um ursinho de pelúcia enforcado no fio do aparelho.
(Continua)
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.