Muito já se falou sobre a “taxação do Pix”, que, segundo o governo, era mais uma das “fake news” da direita bolsonarista, empenhada em destruir a sua imagem. Bom seria que tudo fosse assim tão simples.  A população, sumariamente tachada de ignorante, entendeu muito bem que a manobra, muito pior que uma CPMF do Pix, era um meio de submetê-la à poderosa malha fina da Receita Federal.

Mesmo argumentando que tudo não passou de má-fé da oposição, o governo revogou a Instrução Normativa 2.219, de 17 de setembro de 2024, cujos efeitos se fariam sentir a partir de 1º de janeiro de 2025.  Pouco antes da publicação da norma, a Receita dava a conhecer alguns dos resultados de seu programa de inteligência artificial, o Projeto Analytics, que promete cruzar dados, descobrir padrões de movimentações financeiras e impedir de vez a sonegação fiscal.

“Criada por auditores-fiscais e analistas-tributários, a plataforma utiliza algoritmos de inteligência artificial e análise de redes complexas para potencializar a análise dos dados fiscais e proporcionar um incremento considerável na capacidade de detectar fraudes e ilegalidades”, informava o site do governo em 5 de setembro de 2024. Além da tecnologia, era também necessário estabelecer uma garantia jurídica de acesso aos dados bancários da população, em tese protegidos pelo sigilo.

No dia 10 de setembro, chegava ao noticiário uma decisão do STF sobre o tema: “O Plenário do Supremo Tribunal Federal validou, por maioria, regras de convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) que obrigam as instituições financeiras a fornecer aos estados informações sobre pagamentos e transferências feitos por clientes (pessoas físicas e jurídicas) em operações eletrônicas (como Pix, cartões de débito e crédito) em que haja recolhimento do ICMS”, de acordo com o site do STF.

Segundo a ministra Cármen Lúcia, relatora do processo que provocou a decisão, “os deveres previstos no convênio não caracterizam quebra de sigilo bancário, constitucionalmente proibida, mas transferência do sigilo das instituições financeiras e bancárias à administração tributária estadual ou distrital”. Ela acrescentou que “a transferência de dados bancários por instituições financeiras à administração tributária não viola o direito fundamental à intimidade” e que “as regras visam dar maior eficiência aos meios de fiscalização tributária, tendo em vista a economia globalizada e o crescente incremento do comércio virtual”. Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Flávio Dino, Dias Toffoli e Luiz Fux seguiram o voto da relatora. Gilmar Mendes abriu divergência, seguido por Nunes Marques, Cristiano Zanin, André Mendonça e Luís Roberto Barroso.

A decisão encerrou uma longa disputa judicial sobre o sigilo bancário, defendido pelas instituições financeiras e pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif). Foi nesse cenário que a Instrução Normativa da Receita Federal foi publicada. Alega-se que o objetivo era monitorar os bancos digitais e as fintechs, supostamente mais porosos às fraudes. Se a intenção era apenas essa, o governo terá falhado, no mínimo, por desconhecer a vida real da população.

Infelizmente, a vida real nem sempre aparece claramente descrita nos índices e planilhas da equipe econômica. Considere-se a propósito o propalado índice de queda do desemprego, que passa a impressão de que o problema foi resolvido no país, embora 20,8 milhões de famílias dependam do Bolsa Família. Desse total, um pouco mais de 2,74 milhões de famílias, segundo o site do governo, estão em Regra de Proteção, recebendo em média R$ 370,33. A redução do valor (que é de R$ 600) ocorre quando as famílias registram aumento de renda superior a R$ 218 por pessoa, mas sem alcançarem meio salário mínimo per capita. Estamos falando de valores obviamente muito baixos, insuficientes para que uma família passe um mês.

Por outro lado, segundo o próprio IBGE, em setembro de 2024, havia cerca de 40 milhões de trabalhadores informais no país. Além disso, existe a modalidade MEI, que foi criada para dar formalidade legal a atividades informais ou “bicos”, que passam a pagar uma taxa mensal em torno de R$ 70 a título de imposto.

Na prática, muitas empresas deixaram de contratar pela CLT e obrigaram os funcionários a ter o registro MEI, que é um CNPJ, ou seja, formalmente o empregador contrata o serviço de uma “empresa”, não de uma pessoa. Com essa mágica, desaparecem os encargos trabalhistas e, com eles, todos os direitos do trabalhador, entre os quais as férias de 30 dias, o 13º salário, o FGTS, o seguro-desemprego e, pasme, até o fim de semana, cuja conquista se deu graças à luta de operários ingleses no início do século XIX, quando as jornadas de trabalho podiam chegar a 16 horas diárias.

Quando se transforma (ainda que apenas formalmente) em “empreendedor”, o trabalhador deixa de ter direitos. Simples assim. Além disso, no mundo do “cada um por si”, perde-se a percepção de categoria profissional e enfraquece-se a organização sindical. Negociações para aumento de salário passam a ser individuais, portanto inexistentes na maioria dos casos.

O trabalhador, no entanto, faz o que é possível para sobreviver, talvez sem a exata noção de tudo o que está envolvido no admirável mundo do empreendedorismo, tão estimulado pela burguesia. Vendido ao trabalhador como uma forma de se livrar dos patrões e do horário fixo de trabalho, oculta vários elementos muito importantes: perdem-se direitos, e a jornada de trabalho se torna tão elástica quanto forem as necessidades, o que acaba sequestrando dos trabalhadores os sagrados momentos de descanso, com consequências nefastas, como desenvolvimento de doenças e aumento do risco de acidentes. Além disso, o empreendedor tem impostos a pagar. Mesmo o MEI, que paga uma taxa mensal pequena, quando passa os valores para a conta pessoal, está sujeito à trbutação como pessoa física.

Há quem seja contratado pela CLT, em geral recebendo um salário baixo, e tenha o MEI para fazer outros trabalhos nas horas que deveriam ser de folga. Esse trabalhador, caso seja demitido, não poderá usufruir do seguro-desemprego, pois o governo entende que ter um CNPJ significa, por si só, ter “renda” e, assim, é sonegado um direito do trabalhador formal, cujos descontos em folha de pagamento já custearam. É claro que essa “interpretação” não corresponde à verdade, como se viu no período da pandemia, quando empresas demitiram trabalhadores formais e ninguém contratava trabalhos avulsos.

O governo Bolsonaro, na ocasião, permitiu às empresas cortar 25% do salário dos empregados formais durante três meses e ao MEI desamparado concedeu que pagasse o imposto mensal com três meses de atraso, mas sem abrir mão da taxa, mesmo não havendo emissão de nota fiscal. Empresários aplicaram esses 25% da folha de pagamento no mercado financeiro por três meses, enquanto os empregados silenciaram com medo de perder a vaga.

O fim de semana passou a ser um luxo, assim como o registro pela CLT. Quem vive de trabalhos avulsos ou no “corre” das entregas por aplicativo já aboliu o descanso para conseguir fechar as contas no fim do mês. Diante dessa situação, que avança das classes mais baixas para os estratos da classe média, soa como hipocrisia o argumento moralista de defesa do Fisco: “quem sonega imposto está errado”. Além de moralista, o argumento é simplista, pois não considera a realidade do país.

Muitas das movimentações via Pix e cartões nem mesmo configuram recebimento de proventos oriundos do trabalho, sujeitos à tributação. É comum que uma pessoa empreste o cartão a outra que está com o nome “sujo” por causa de dívida ou receba o Pix por outra que não tem conta. Aliás, esse tipo de coisa explica a existência de mendigos que aceitam esmola via Pix. Há uma série de transações que antes não passavam pelos bancos, pois eram feitas com dinheiro vivo. De resto, estão todos sendo considerados sonegadores até prova em contrário.

Vale lembrar que quem arca com a maior carga de impostos é a população mais pobre, que paga sobre os produtos consumidos o mesmo que os multimilionários. Basta comparar qualquer produto do supermercado com o saldo bancário do consumidor para entender a proporção. Nesse sentido, R$ 10 valem diferentemente para um banqueiro e para um beneficiário do BPC (Benefício de Prestação Continuada), que em geral já teve todos os seus direitos surrupiados pelas sucessivas leis e normas aprovadas no país.

Não é segredo para ninguém que os ricos, no Brasil, sempre se livram dos impostos. Seja porque lucros e dividendos são, por lei, isentos de imposto de renda, seja porque a posse de lanchas, iates, helicópteros e jatinhos é, por lei, isenta de IPVA, seja porque os ricos sempre conseguem na Justiça um meio de evitar pagar os impostos que a lei não lhes aliviou. Veja-se o recentíssimo caso da repatriação de cerca de R$ 430 milhões da herança de Sílvio Santos, cujo montante chegou a R$ 6,4 bilhões. Para trazer para o Brasil o valor, investido em um paraíso fiscal, recairia sobre ele um imposto de R$ 17 milhões, que as herdeiras se recusaram a pagar. Por ora, a Justiça deu liminar favorável a elas.

Enquanto isso, pessoas que moram em residências alugadas arcam também com o IPTU, que é o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana. Em suma, as classes baixas e médias não têm como escapar da maioria dos impostos, diferentemente de uma celebridade de internet, como Felipe Neto, que se beneficia de uma lei da pandemia editada para proteger artistas sem trabalho. Uma de suas empresas, da qual ele diz ser sócio minoritário, deixou de pagar R$ 14,5 milhões em impostos no ano passado. A empresa argumenta estar dentro da legalidade e informa que o benefício tem vigência prevista até o fim de 2026 ou até o esgotamento do fundo de R$ 15 bilhões. São muitos os exemplos e o próprio Felipe Neto diz que até o agronegócio se beneficiou da lei.

Na hora de aumentar a arrecadação, no entanto, muito mais fácil que mexer com a burguesia é botar na malha fina o grosso da população, que, graças ao Pix, uma espécie de substitutivo do dinheiro vivo, se bancarizou, passando a aumentar grandemente o volume de recursos à disposição das instituições financeiras. Para tanto, o governo dispõe da valiosa ajuda da plataforma de inteligência artificial da Receita Federal e do STF, que embasou não só a quebra de sigilo bancário, chamada pela ministra Cármen Lúcia de “transferência de sigilo”, como também o raciocínio de que todos são sonegadores até prova em contrário, invertendo o ônus da prova, segundo entendimento do ministro Alexandre de Moraes em decisão de repercussão geral.

Como se vê, o buraco é bem mais embaixo, sobretudo quando se considera que o aumento da arrecadação, tão diligentemente defendido pela esquerda pequeno-burguesa, que tem a vida financeira organizada, é destinado em grande parte ao pagamento da impagável dívida pública, ou seja, vai parar na mão dos banqueiros, que estão pouco se lixando para a saúde e a educação da população.

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Last Update: 23/01/2025