Uma das definições para corporativismo no dicionário Aurélio é a “defesa que prioriza uma determinada categoria profissional ao invés da sociedade de uma forma geral”. O conceito está no centro da crise instalada no IBGE desde o ano passado, após o surgimento de um movimento de oposição interna ao presidente da instituição, Marcio Pochmann, nomeado por Lula em agosto de 2023. Para insatisfação de alguns setores e da forte ala sindical do instituto, o economista lidera, segundo suas próprias palavras, “um necessário processo de modernização”. Os críticos o acusam de autoritarismo, falta de diálogo e tentativa de privatização dos serviços prestados pelo órgão público. A campanha para derrubar Pochmann do cargo ganhou novas proporções nas últimas semanas e conta com o apoio maciço dos principais meios de comunicação, avessos ao alinhamento do economista ao pensamento desenvolvimentista.
O embate trouxe à tona interesses recônditos de uma ala dos opositores. A divulgação de uma carta aberta dos servidores contra o presidente do IBGE coincidiu com o anúncio da abertura de investigação pelo Ministério Público Federal, a partir de uma denúncia sobre o uso ilegal da marca e da sede do instituto para a prestação de consultorias privadas por um grupo de funcionários, alguns deles na linha de frente dos ataques a Pochmann. Diretoria e trabalhadores parecem viver realidades paralelas. Na quarta-feira 29, o primeiro escalão estava em Brasília para o lançamento do Plano de Trabalho 2025, uma das novidades introduzidas pela atual gestão. Foi a terceira etapa de uma série de apresentações regionais que incluiu Belém e Recife e seguiu por Vitória e Porto Alegre. No mesmo dia, o sindicato dos servidores, o ASSIBGE, organizou um protesto na porta da sede nacional, no Rio de Janeiro. No ato, foi lida a carta assinada por 136 funcionários, dos quais 125 ocupam postos de chefia, que pede a saída imediata de Pochmann. “A condução administrativa tem sido pautada por condutas autoritárias e em desrespeito ao corpo técnico da casa”, diz o documento.
Há incômodo em parte dos servidores com a investigação do Ministério Público sobre a empresa de consultoria Sociedade para o Desenvolvimento da Pesquisa Científica, mais conhecida como Science, cujos sócios são servidores do IBGE. A Science, diz a denúncia, utilizaria o nome do instituto, além da sede carioca, como referência para firmar contratos de cunho privado. “A Procuradoria Federal, órgão autônomo que funciona dentro das repartições públicas, recebeu a denúncia de haver conflitos de interesse de colegas diante da presença de instituições estranhas ao IBGE. Ao sabermos dessa informação, tomamos a iniciativa de encaminhar para apuração pelos instrumentos que a casa tem e também repassar ao Ministério Público. Meu papel como presidente é apurar. Procuramos, dentro do possível, dar transparência à modernização que estamos fazendo. Entendemos que toda transformação sofre resistência e estamos enfrentando essa resistência”, argumenta Pochmann.
A revelação de uma investigação do Ministério Público sobre a consultoria Science acirrou os ânimos
Presidente da instituição de 2011 a 2016, durante os governos de Dilma Rousseff e Michel Temer, Wasmália Bivar afirma que “a direção lançar desconfiança em relação aos servidores de forma generalizada é algo inédito”. As investigações internas, diz, criam uma aura de desconfiança sobre todos os técnicos da casa. “O que é isso? Os técnicos são os que produzem os dados. Eles estariam comercializando informações sigilosas? Nunca aconteceu de o IBGE receber uma denúncia desse tipo. Ela é gravíssima, põe suspeição sobre todos, e até o momento não apareceu nenhuma evidência de que isso esteja acontecendo de fato. São só insinuações muito sérias e fazem com que os ânimos fiquem cada vez mais exaltados.” Embora as investigações corram em sigilo, uma fonte do Ministério Público disse reservadamente a CartaCapital que a prestação de serviços privados no IBGE é um fato concreto e que envolve projetos de consultoria em andamento, alguns com orçamento na casa das dezenas de milhares de dólares. A investigação está em curso e os resultados serão divulgados “em momento oportuno”.
A denúncia sobre a utilização, pelos servidores, de dados individualizados produzidos pelo IBGE para prestar consultorias privadas, avalia Bivar, deveria ter sido objeto de uma investigação interna, feita de forma sigilosa. “Fazer um processo administrativo interno só baseado em insinuações e sem nenhuma evidência, e já de forma pública, realmente é para ‘descredibilizar’ e lançar suspeita sobre os servidores do IBGE. Pochmann esquece que o IBGE são os seus servidores, são aqueles que calculam as principais informações do País, que são responsáveis por um volume de informação enorme, sem o qual a sociedade brasileira simplesmente não vive.”
A maior crítica da associação dos servidores é dirigida à criação de uma fundação pública de direito privado, o IBGE+, que, segundo Pochmann, vai apoiar o instituto na captação e internalização de recursos financeiros para pesquisas e projetos, além de ter papel fundamental na modernização do tratamento dos dados nacionais. “Pochmann ameaça seriamente a missão institucional e os princípios orientadores do IBGE na medida em que impõe a criação da Fundação IBGE+ como única alternativa às demandas por recursos financeiros para a realização das pesquisas e projetos que compõem nossa agenda de trabalho”, prossegue a carta aberta.
O ponto central da questão, rebate o presidente do instituto, é que a criação da nova fundação é a única alternativa para recuperar o IBGE após os anos de penúria sob Temer e Jair Bolsonaro, período em que até o Censo Demográfico deixou de ser realizado. “Quando cheguei, encontrei uma instituição com sérias dificuldades orçamentárias, quadro que resultou em um conjunto de problemas acumulados. Desde 2016, nenhum concurso foi realizado, houve redução do número de servidores, presença de cerca de 500 consultores diante da ausência de servidores concursados, queda no salário médio estimada em 25%. Pesquisas que deveriam ter sido feitas foram congeladas, como a de Orçamento Familiar (POF), a de Inovação (Pintec) e o Censo Agropecuário, Florestal e Aquícola.”
Transformar o IBGE numa instituição de ciência e tecnologia e constituir um núcleo de servidores para montar uma política de inovação no instituto é tarefa encomendada por Lula, afirma Pochmann. “Em diálogo com o Ministério do Planejamento, entendeu-se que seria conveniente que o IBGE tivesse a abertura de uma fundação pública de direito privado. Há no Brasil a experiência de cem fundações desse tipo que operam nas universidades, institutos de ciência e tecnologia, e assim por diante. No ano passado, essas fundações arrecadaram 20 bilhões de reais. Com a autorização do Ministério do Planejamento, colocamos em prática a fundação IBGE+.” Após ter sido convidado duas vezes para discutir o tema, acrescenta, “o sindicato não aceitou e passou a ter um enfrentamento pelos meios de comunicação”.
A mídia abraçou a campanha para derrubar Pochmann, velho desafeto
Bivar afirma “estar um pouco surpreendida” com a falta de posicionamento de Simone Tebet em relação ao caso. “Só na segunda a ministra do Planejamento disse que as portas estão abertas para ouvir as discordâncias em relação ao Pochmann, parece que não existem ouvidos para a gravidade da situação do IBGE. Isso é muito preocupante porque a casa precisa de alguma tranquilidade para continuar mantendo sua produção de forma regular e eficiente.” A ministra preferiu não se pronunciar sobre o tema. Uma fonte palaciana, sob anonimato, voltou a garantir que Pochmann “tem e terá todo o apoio do Planalto nessa disputa”.
A pressão da burocracia deu certo. Na quarta-feira 29, o ministério anunciou a suspensão “temporária” da criação do IBGE+, embora o restante da nota conjunta com o instituto dê a entender que a iniciativa permanecerá na gaveta por muito tempo. Em troca, a pasta promete suprir os custos das pesquisas mais urgentes da instituição. O IBGE, diz o texto, “é um órgão basilar na geração e análise de dados referentes ao Brasil”.
Enquanto tenta resistir aos bombardeios internos e midiáticos, o economista tem recebido publicamente o apoio de servidores históricos do instituto. “Não caiamos nas armadilhas daqueles que, sob o pretexto de defender a instituição, querem na verdade torná-la refém de interesses privados e políticos que não servem ao povo brasileiro”, afirma Gilberto dos Santos, ex-dirigente do ASSIBGE em Minas Gerais. Um documento de apoio ao petista foi divulgado pelas frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. “Pochmann é a expressão do compromisso coletivo com os valores e objetivos representados pelos nossos movimentos populares. Sua atuação no IBGE tem sido essencial para fortalecer projetos que apontem a realidade e possibilitem políticas de inclusão, justiça social e a construção de uma sociedade mais igualitária.”
O presidente da instituição rebate outra queixa recorrente do sindicato, a volta ao trabalho presencial feita sem consultar os servidores: “O IBGE tinha 3,8 mil servidores há cerca de quatro anos em regime de trabalho em casa, sem aparecer na instituição. Tendo em vista o reajuste salarial concedido em 2023 e o concurso realizado pelo atual governo, tomamos a iniciativa de começar a chamar o retorno ao trabalho presencial, dois dias por semana, tendo em vista que o IBGE era uma das poucas instituições estatísticas do mundo que ainda mantinham trabalho remoto integral. Essa iniciativa não foi de agrado geral. E aí começaram as insatisfações e a posição do sindicato, apesar de termos tomado a iniciativa de fazer diálogos internos”.
Bivar avalia que a situação de Pochmann no comando do IBGE tornou-se insustentável, por causa do número de coordenadores e gerentes que se manifestaram contra a atual gestão. “Ele não se dispõe a conversar com ninguém, nem com o sindicato, nem com o corpo funcional. Não tem aliados no IBGE e é muito difícil a continuidade dessa gestão do ponto de vista prático. Não sei como ele pensa em poder continuar.” Os nomes indicados pelo atual presidente para postos importantes, ressalta, não permaneceram. “Ou seja, demonstraram insatisfação.”
Até o momento, Pochmann trocou oito diretores, “uma prática convencional”, garante. O economista promete não esmorecer diante do compromisso assumido com o presidente Lula. “Desde 2016, o IBGE distanciou-se da modernidade, das novas tecnologias, do uso de Inteligência Artificial, do algoritmo. A casa tem experiência, mas ainda deve avançar muito mais. Devemos ter na direção colegas que estejam compatíveis com isso. As pessoas que saíram foram substituídas por gente da casa.” Sobre as acusações de falta de diálogo, argumenta: “Às vezes me parece que os colegas confundem autoridade com autoritarismo. Autoridade é o respeito a quem está responsável e, obviamente, fazendo o melhor que pode pela instituição. Estou a favor dos servidores, não o contrário. Nem sempre a gente é bem entendido”. •
Publicado na edição n° 1347 de CartaCapital, em 05 de fevereiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O poder da burocracia’