“Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito.”
— William Blake

Que felicidade ver Ainda Estou Aqui ganhar o Oscar de Melhor Filme Internacional!

Quantas pessoas, especialmente jovens, terão agora acesso à verdade sobre a ditadura neste país—um regime que amedrontou, torturou e matou impunemente. O prêmio chega num momento oportuno, quando fantasmas insepultos teimam em retornar. O golpe de 2016 e a tentativa de 2023 são provas eloquentes disso, assim como o recente atentado terrorista contra o Supremo Tribunal Federal, na semana passada, quando um homem tentou ingressar no prédio portando uma bomba.

A premiação do filme pode contribuir para a consolidação de um consenso social sobre a necessidade de punir terroristas e golpistas de forma exemplar—literalmente, como um exemplo para evitar que, no futuro, violências coletivas se repitam.

Que alegria ver o país voltado para a cultura, torcendo por uma premiação como se fosse a Copa do Mundo! Quem sabe não veremos isso com mais frequência em outras modalidades, como literatura, música e artes plásticas?

Lendo Ney Matogrosso – Memórias (Editora Tordesilhas), o cantor revolucionário afirma: “Amo ler.”

Em sincronicidade, pensei na semana passada que, ao lermos, um outro se instala dentro de nós. O simples ato de leitura nos traz uma voz que nos acompanha—com ela, descobrimos que podemos ter diálogos internos e jamais estaremos sós. Por isso se diz que quem lê nunca está só.

Na obra citada, Ney revela:

“Tive dificuldade com a poética. Só fui me aproximar da poesia com o Secos & Molhados, pois estávamos trabalhando um som pop com poemas famosos: ‘Rosa de Hiroshima’, de Vinicius de Moraes; ‘Prece Cósmica’, de Cassiano Ricardo; ‘Rondó do Capitão’, de Manuel Bandeira; ‘Não, não digas nada’, de Fernando Pessoa. Sem falar em outras canções que são pura poesia, como ‘Sangue Latino’, capaz de invocar a força do nosso sangue contra o que nos é imposto pela América do Norte—um hino de resistência.”

Nas memórias do cantor, também há espaço para Hilda Hilst:

“Que canto há de cantar o indefinível? O toque sem tocar, o olhar sem ver, a alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis… Como te amar, sem nunca merecer?”

O grande médico e escritor Moacyr Scliar, imortal da Academia Brasileira de Letras, lança luz sobre nossas capacidades de ler, perceber e criar. Em A Face Oculta – Histórias da Medicina (Editora Artes & Ofícios), ele relata:

“… mais interessante é a teoria, desenvolvida em 1982, da inteligência múltipla, de Howard Gardner. Ela nos explica como um aluno medíocre pode se transformar num grande artista—caso de Picasso e Matisse. Devemos pensar, diz Gardner, não em uma inteligência, mas em inteligências no plural: linguística, musical, lógico-matemática… Dessa forma, podemos entender que cada pessoa tem uma maneira própria de expressar sua inteligência. Tais habilidades podem surgir muito cedo, como ocorre no talento musical. O caso de Mozart é bem conhecido, mas ele não é único: Mahler deu seu primeiro concerto aos dez anos; Stokowski regeu uma orquestra aos doze.”

Isso deveria nos despertar para o fato de que todos somos inteligentes, apenas diferimos em dons e aptidões. A natureza, sábia, equilibra essas habilidades—se todos tivéssemos os mesmos talentos, não sobreviveríamos.

Mais uma vez, torna-se evidente que precisamos viver coletivamente, pois dependemos uns dos outros. No entanto, podemos tanto fazer o bem quanto o mal.

A arte e a guerra são opostos quase perfeitos, e Ainda Estou Aqui escancara essa verdade ao transformar uma guerra suja—como aquela movida pelos militares brasileiros e pela oligarquia contra seu próprio povo—numa obra de esclarecimento, consciência e resiliência, capaz de prevenir novas ditaduras.

Por outro lado, Scliar nos alerta para os perigos da manipulação da medicina. Ele questiona o conceito de doença e denuncia sua distorção para fins de dominação e opressão:

“Em 1851, falando diante da Associação Médica de Louisiana, o famoso doutor Samuel Cartwright chamou a atenção de seus colegas para uma doença que, segundo ele, grassava entre a população negra dos Estados Unidos, à época composta de escravos. Essa enfermidade, que atendia pelo pomposo nome de drapetomania, tinha uma única característica: o escravo acometido por ela ficava possuído por uma incontrolável vontade de fugir do senhor. E escravo fujão, para a mentalidade escravocrata, só podia ser escravo doente.”

Atualmente, quando vemos tentativas de medicalizar e reprimir a sexualidade, o uso de drogas leves e até o desejo de liberdade religiosa—sobretudo contra rituais de matriz africana—devemos nos perguntar se não estamos diante de mais uma tentativa de falsear a ars curandi (sem esquecer daquele ex-presidente que falsificou até o certificado de vacinação).

Sobre as drogas, Scliar conclui:

“O problema da droga não se resolve com medidas morais ou policiais. O problema da droga é um problema de saúde pública. Os países europeus já compreenderam isso. Lá, quem fornece a droga ao usuário não é o traficante, a preços exorbitantes, mas o poder público, que cobra o que o dependente pode pagar: a adesão ao tratamento. O drogado não está na rua assaltando, nem na prisão. Ele está numa clínica, que é seu lugar.”

E complementa:

“Nos Estados Unidos, foi montado um aparato policial formidável para reprimir o tráfico. No Brasil, uma cena familiar da TV é a polícia entrando nos morros do Rio em busca de traficantes. Balas perdidas voam para todos os lados. E muitas delas matam inocentes.”

Um feliz Carnaval a todas, todos e todes! Que a arte da alegria, do prazer, da companhia e da fantasia reinem nestes dias e sempre!

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Last Update: 05/03/2025