O Plano Haddad: Vender o Brasil em Pacotes para o Meta-Trumpismo
por Isabela Rocha
Sob o discurso de promover uma transição digital sustentável, o ministro da Fazenda Fernando Haddad apresentou, nos Estados Unidos, a chamada Política Nacional de Data Centers (Redata): um plano que promete atrair até R$ 2 trilhões em investimentos para o Brasil por meio de isenções fiscais e incentivos regulatórios voltados às grandes empresas de tecnologia. A proposta, vendida como parte de uma estratégia verde e inovadora, na prática reativa padrões de dependência estrutural: ao invés de fomentar a capacidade tecnológica nacional, o governo oferece infraestrutura e benefícios fiscais a corporações estrangeiras, em especial à Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp), abrindo mão do controle sobre dados sensíveis, da autonomia regulatória e da soberania digital.
Não se trata de política de incentivo; em verdade, o Redata representa uma estratégia entreguista que configura o Brasil em base operacional para a economia política das Big Techs, aprofundando a vulnerabilidade informacional do país e comprometendo a defesa cognitiva da população. Não é uma política de incentivo: é uma política de submissão. Enquanto figuras como Mark Zuckerberg flertam abertamente com a desregulação impulsionada por lideranças autoritárias, como Donald Trump, o Estado brasileiro se prepara para ceder seu território digital sob a promessa de energia limpa e progresso. Trata-se de um pacto assimétrico que, em nome da sustentabilidade, sacrifica o futuro tecnológico e democrático do país ao abdicar de uma infraestrutura tecnológica soberana.
A Meta, sob influência de Trump, já desmantelou programas de checagem de fatos e prepara o terreno para um faroeste digital no Brasil, onde discursos de ódio e fake news serão moderados por “notas da comunidade”, não por leis, direitos ou garantias civis. O que está em curso não é um projeto de desenvolvimento, mas uma entrega acelerada do país ao Meta-Trumpismo: a simbiose entre o governo de Donald Trump e corporações tecnológicas como a Meta, resultando em uma governança digital que prioriza interesses corporativos norte-americanos sobre os processos democráticos do nosso país. Essa aliança se manifesta na desregulamentação das plataformas, na disseminação de desinformação e na normalização de ataques a grupos vulneráveis sob o pretexto de “liberdade de expressão”, dissolvendo o espaço público sob os termos de serviço da Big Tech.
No Brasil, o Redata se encaixa como luva nesse modelo ao oferecer infraestrutura e incentivos fiscais a empresas estrangeiras sem contrapartidas que garantam a soberania digital do país. Entre os principais pontos do programa está a isenção de IPI, PIS/Cofins e imposto de importação sobre equipamentos utilizados na implantação de data centers. A renúncia fiscal, estimada em bilhões, é concedida sem exigir transferência de tecnologia, participação de universidades, investimento em pesquisa local ou sequer a garantia de que os dados coletados permanecerão sob jurisdição brasileira. Nada é exigido nem soberania, nem contrapartida. O que o governo oferece, na prática, é um refúgio tributário digital, financiado com dinheiro público, que consolida o Brasil como vassalo computacional de um império algorítmico estrangeiro.
Enquanto isso, empresas brasileiras de tecnologia, pesquisadores, startups e redes públicas de ciência e dados seguem subfinanciadas, travadas por burocracia, insegurança jurídica e ausência de políticas estruturais. O Redata não corrige esse desequilíbrio – em verdade ele o cristaliza, reafirmando o lugar do Brasil na economia global como provedor de infraestrutura bruta e consumidor de soluções desenvolvidas fora, e não como criador autônomo de conhecimento, código e inovação. Haddad, ao privilegiar as Big Techs e importar “modernização” como pacote pronto, trai o empreendedor, o pesquisador, o desenvolvedor, o cientista, o técnico, o professor, o programador e o engenheiro brasileiros: todos os que constroem, apesar do Estado, as bases de uma soberania digital que seu ministério insiste em desmontar.
Mas talvez o gesto mais cínico, senão perfidioso, de todo o plano seja o uso da retórica ambiental como justificativa. O discurso do governo se ancora na promessa de uma transição digital verde, com data centers alimentados por energia limpa. No entanto, das mais de 80 reuniões ministeriais voltadas à pauta dos data-centers, nenhuma delas contou com a participação do Ministério do Meio Ambiente. Ou seja, essa operação meramente simbólica transforma a agenda ambiental em verniz para uma política de submissão tecnológica, e ao atrelar o “desenvolvimento sustentável” à instalação de servidores de empresas como Amazon, Google e Meta, o Estado abandona qualquer projeto de sustentabilidade de fato – que deveria incluir soberania, autonomia científica, e redução das dependências estruturais – para aderir a um modelo de greenwashing geopolítico.
Não há exigências ambientais vinculantes, tampouco compromissos de compensação, transparência ou contrapartidas sociais: o que se oferece é um selo verde genérico, uma isca para atrair capital estrangeiro e apaziguar a necessidade de corporações por ESG. A sustentabilidade surge apenas como isca retórica, um selo verde genérico usado para atrair capital estrangeiro, enquanto o controle real sobre dados, fluxos computacionais e a governança da inteligência artificial segue concentrado fora do país. O verniz ecológico não apenas esvazia o debate ambiental, reduzindo-o a marketing corporativo, como também fragiliza a própria agenda climática. Nada muda de fato: quem dita as regras segue sendo Washington, Menlo Park ou Dublin – jamais Brasília.
E a regulação de plataformas? Haddad lega essa preocupação ao Congresso Nacional, como se o simples anúncio de um marco legal resolvesse o problema. O detalhe é que esse marco será “construído em articulação com o setor privado”. Em outras palavras: as próprias Big Techs, principais beneficiadas pelo Redata, participarão ativamente da redação das normas que deveriam regulá-las. Para além da omissão do Executivo, o marco será construído sob pressão direta das Big Techs, com pouca ou nenhuma escuta da sociedade civil, da academia ou de especialistas em soberania informacional.
Essa captura institucional desmonta qualquer anseio por soberania. Em vez de proteger dados sensíveis, garantir transparência algorítmica ou assegurar os direitos digitais dos brasileiros, o que se antecipa é uma legislação moldada para caber dentro dos lucros das plataformas e não dentro da Constituição.
O resultado é uma política pública moldada por interesses extraterritoriais, sem amparo técnico-científico nacional, e que entrega a governança digital do país a atores cujo histórico inclui evasão fiscal, interferência eleitoral e desprezo sistemático pelos direitos cidadãos. Em nome de uma suposta modernização, o Brasil se submete a um modelo de autorregulação neoliberal disfarçado de parceria público-privada. E Haddad, orgulhoso, articula traição como linguagem técnica e rendição como plano de futuro, vendendo soberania a granel com o selo ESG colado na testa.
Isabela Rocha é mestre e doutoranda em Ciência Política pelo Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL UnB). Atualmente coordena o Grupo de Trabalho Estratégia, Dados e Soberania do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (GEPSI IREL UnB) e representa o Fórum para Tecnologia Estratégica dos BRICS+, em apoio à presidência brasileira do bloco, visando o desenvolvimento de infraestrutura tecnológica integra e soberana na União.
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