O plano dos EUA para conter o Brics e salvar o dólar

“Brics foi criado para nos prejudicar, Brics foi criado para degenerar nosso dólar e tirar nosso dólar… como o padrão.”

 Presidente Donald Trump, julho de 2025

How to Counter Brics and Preserve Global Dollar Dominance” ou “Como neutralizar os Brics e preservar a dominância Global do Dólar” é o título de um memorando de política do Hudson Institute – think tank vinculado ao Partido Republicano (EUA) – datado de outubro de 2025. Nele, a autora Zineb Riboua, pesquisadora associada do Centro para a Paz e Segurança no Oriente Médio, examina o papel do Brics, concluindo que o grupo representa um desafio crescente à predominância financeira dos Estados Unidos.

Segundo ela, o principal motivo de preocupação é que esse bloco — composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — deixou de ser apenas uma associação de mercados emergentes e passou a atuar de forma incisiva, buscando confrontar instituições sob liderança ocidental e enfraquecer o domínio do dólar americano.

Ainda, o bloco remonta aos ideais do Movimento dos Não Alinhados da Guerra Fria, com a China e a Rússia agora liderando um esforço para transformar esse sentimento em uma ameaça material aos interesses dos EUA.

A seguir foco em alguns pontos do memorando e ao final opino sobre seu conteúdo.

Origens e Evolução da Ameaça dos Brics

O memorando argumenta que ascensão dos Brics representa a institucionalização de um sentimento de longa data contra a ordem financeira global liderada pelo Ocidente. Essa tendência não é um fenômeno recente, mas sim o acúmulo de sentimentos que surgem da Guerra Fria e das lutas pós-coloniais.

As raízes históricas ecoam dos princípios do Movimento dos Não Alinhados, lançado em Belgrado em 1961, que buscava oferecer aos estados recém-independentes uma alternativa à aliança com os Estados Unidos ou a União Soviética.

Leia mais: Brics x Chicago: a guerra de commodities e o desafio à hegemonia do dólar

Obedecendo a lógica história da Dualidade da Neutralidade o não alinhamento assumiu duas formas distintas:

 i. Neutralidade a favor: Buscava independência genuína e liberdade de manobra, exemplificada pela Índia de Jawaharlal Nehru e pela Iugoslávia de Josip Broz Tito.  ii. Neutralidade contra: Representava uma oposição indireta aos Estados Unidos, com muitos governos se declarando não alinhados enquanto dependiam do patrocínio soviético nos anos 1970.

Coube a China revitalizar esse movimento no início dos anos 2000, posicionando-se como a campeã do mundo em desenvolvimento e promovendo a multipolaridade como uma alternativa à dominância financeira ocidental. A persistente centralidade do dólar e a distribuição desigual de influência nas instituições globais deram a essa narrativa um apelo mais amplo.

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, posa para Fotografia de família dos Chefes de Estado e de Governo dos países-membros do BRICS, no Museu de Arte Moderna (MAM), Rio de Janeiro – 2025 | Foto: Ricardo Stuckert / PR

Motivações e Estratégias dos Membros-Chave

Embora unidos por um descontentamento comum, os principais membros dos Brics abordam o bloco com motivações e níveis de comprometimento variados, refletindo suas posições geopolíticas distintas.

Rússia (Neutralidade contra) – vê os Brics como um quadro de resistência aos EUA, especialmente após as sanções de 2014 e 2022. Usa o bloco para promover alternativas ao dólar e ao SWIFT.

China  (Líder da multipolaridade) – promove ativamente o uso do yuan, desenvolve seu próprio sistema de pagamento (CIPS) e utiliza os Brics para expandir sua influência na Ásia, África e América Latina.

Brasil   (Neutralidade a favor) – utiliza a diplomacia para ganhar alavancagem no sistema internacional sem romper os laços com Washington ou Bruxelas, adotando uma abordagem flexível.

Índia    (Busca por autonomia) – como membro fundador do Movimento dos Não Alinhados, valoriza a autonomia. Sua rivalidade com a China, intensificada pelos confrontos em Ladakh em 2020, limita sua disposição de aceitar estruturas que expandam a influência de Pequim.

A Agenda Financeira dos Brics: Um Desafio Institucional

A principal ameaça dos Brics reside em sua agenda financeira coordenada, que visa minar os dois pilares do poder econômico global americano: i. a centralidade do dólar e ii. o domínio da rede SWIFT.

Desde o sistema de Bretton Woods em 1944, a primazia do dólar tem sido a base do poder global americano. O SWIFT, um sistema de mensagens seguras, concede a Washington visibilidade sobre os fluxos financeiros globais, permitindo a aplicação de sanções, o combate à lavagem de dinheiro e a interrupção do financiamento ao terrorismo.

Leia mais: Uma mudança virá: Blues, Brics e a transição multipolar

As iniciativas dos Brics são comparadas ao antigo sistema hawala — uma rede informal e baseada na confiança para transferir valor sem supervisão centralizada. Os Brics buscam replicar essa resistência ao monitoramento externo, mas por meio de coordenação oficial entre grandes economias, o que representa uma mudança do desafio da periferia para o centro das finanças globais.

 O memorando expões quais são as iniciativas-chave:

  •  Novo Banco de Desenvolvimento (NBD): Criado em 2014 como uma alternativa ao Banco Mundial e ao FMI.
  • Acordos Bilaterais de Swap Cambial: Promovem o comércio em moedas locais.
  • Sistemas de Pagamento Alternativos: Como o Sistema de Pagamento Interbancário Transfronteiriço (CIPS) da China e o Sistema para Transferência de Mensagens Financeiras (SPFS) da Rússia.
Brics Rússia, 2024. Foto: Reprodução

Alternativas Propostas ao Dólar

Continua o memorando:

Os membros dos Brics estão explorando ativamente várias opções para reduzir a dependência do dólar, embora cada uma enfrenta desafios significativos.

1. Moedas Nacionais Alternativas:

 Estratégia: A China lidera o esforço para aumentar o comércio denominado em yuan, utilizando swaps cambiais e o CIPS.

 Limitações: O yuan representa apenas 2-3% das transações globais, segundo dados do SWIFT. Os controles de capital de Pequim e as restrições de conversibilidade do banco central chinês continuam a ser obstáculos para sua adoção como moeda de reserva.

2. Escambo e Acordos de Compensação:

Estratégia: Utilizados por países sob sanções, como o Irã, e em acordos bilaterais como o comércio rúpia-rublo entre Índia e Rússia.

 Limitações: Esses sistemas são difíceis de escalar e equilibrar em trocas multilaterais, servindo mais como soluções paliativas do que como alternativas duradouras.

3. Moedas Digitais:

Cenário Mais Disruptivo: Sistemas de troca baseados em criptomoedas.

Stablecoins (USDT, USDC): Já funcionam como um sistema bancário paralelo em estados financeiramente frágeis ou sancionados (Venezuela, Irã). Embora contornem a supervisão dos EUA, elas simultaneamente reforçam a primazia do dólar ao estender seu alcance digital.

Iniciativas Brics: O objetivo é criar um sistema independente do dólar. A China testou seu yuan digital, e a Rússia promoveu políticas favoráveis às criptomoedas. O projeto Brics Pay, uma plataforma para transações transfronteiriças em moedas locais, permanece em estágio embrionário.

O Golfo: Uma Frente Estratégica para a Desdolarização

Segundo o memorando, a região do Golfo tornou-se um campo de batalha fundamental onde os Brics, liderados pela China, buscam desafiar a dominação monetária dos EUA.

Isso se dá por:

A ofensiva da China

  • Pequim está pressionando os produtores de petróleo do Golfo a liquidar vendas em yuan, incentivando fundos soberanos a investir em plataformas denominadas em yuan e utilizando a Huawei para moldar padrões de telecomunicações que possam criar vias de pagamento alternativas.

As ações de Rússia e Irã

  • Esses países realizam transações de armas e energia em suas moedas locais, demonstrando a parceiros potenciais que o comércio fora do sistema do dólar é viável, mesmo sob forte pressão dos EUA.

A Erosão da Legitimidade

  • A adesão dos Emirados Árabes Unidos aos Brics em 2023 e o contínuo engajamento da Arábia Saudita (participando de cúpulas e discutindo vendas de petróleo em yuan) conferem legitimidade ao bloco.
  • Isso torna mais difícil para Washington enquadrar os Brics como um grupo marginal ou hostil. O envolvimento de aliados dos EUA no Golfo mina a narrativa de que o sistema atual, liderado pelos EUA, oferece os maiores benefícios.
Foto de encerramento da Cúpula de Joanesburgo reúne amigos do BRICS. Foto: Ricardo Stuckert/PR

Recomendações de Política para os Estados Unidos

O memorando aponta que para preservar a centralidade do dólar e a capacidade de supervisão financeira global, os EUA precisam adotar uma abordagem proativa e decisiva, pois a regulamentação interna por si só é insuficiente.

1. Proibir a Participação Dupla: Instituições financeiras que optarem por operar em um sistema de compensação projetado para contornar o SWIFT devem perder o acesso tanto ao SWIFT quanto às transações denominadas em dólar. O cálculo para os bancos seria claro, pois perder o acesso ao sistema americano seria muito mais prejudicial do que os benefícios de qualquer rede paralela dos Brics.

2. Fortalecer a Supervisão de Stablecoins: a legislação existente, como a Lei GENIUS, estabeleceu uma base, mas são necessárias medidas adicionais para garantir que as stablecoins não se tornem ferramentas para evasão de sanções, à medida que a tecnologia evolui e os estados dos Brics experimentam novos ativos digitais.

3. Aplicar Pressão Diplomática e Econômica Sustentada: Washington deve alertar os países sobre os custos de se alinharem a um projeto que visa enfraquecer os EUA. Simultaneamente, deve oferecer alternativas atraentes, como investimentos, assistência em infraestrutura e acordos de financiamento que garantam que a parceria com os EUA permaneça a opção mais benéfica.

Leia mais: O crepúsculo do Ocidente – Anatomia de uma crise anunciada

O memorando finaliza destacando que a supremacia do dólar é um dos recursos estratégicos mais importantes dos Estados Unidos, essencial para monitorar operações financeiras ao redor do mundo e impor normas diante de ameaças transnacionais.

Dessa forma, os Brics podem enfraquecer essa supremacia ao criar canais financeiros pouco transparentes e sem regulação, posicionando-se como apoiadores da neutralidade não alinhada e da multipolaridade.

É imprescindível que Washington adote medidas estratégicas para proteger o sistema SWIFT, regulamentar as moedas digitais e fortalecer a credibilidade da supervisão financeira global liderada pelos Estados Unidos, visando evitar o estabelecimento de uma ordem financeira contrária aos interesses norte-americanos.

Diante dessa leitura concluo:

Primeiro: Ao propor mais controle, mais sanções e mais chantagem financeira o memorando do Hudson Institute demonstra de forma clara e inequívoca o temor da nova ordem multipolar, pois reduz em larga escala a capacidade de comando unilateral do EUA e ao contrário do que preconiza ela não trará “caos” em si.

Segundo: Cada nova chantagem, ameaça, imposição de tarifas reforça a lógica de “segurança financeira” do Brics – quanto mais o dólar é usado como arma, mais forte se torna o impulso de criar rotas alternativas – tais como: transações em moedas locais, novos bancos de desenvolvimento e sistemas de pagamentos não subordinados ao Ocidente.

Terceiro e último: Para o Sul Global, o verdadeiro desafio é construir uma ordem monetária e financeira plural, regulada e voltada para o desenvolvimento nacional na qual nenhum país possa confiscar, unilateralmente, o futuro de outras nações pela via de sanções e da instabilidade cambial.

A desdolarização, não é uma cruzada contra um país, mas um instrumento de soberania coletiva e indicador de que o crepúsculo da hegemonia unipolar vendo abrindo espaço para um mundo em que o Brics é menos “ameaça” e mais sintoma de um reequilíbrio histórico em curso.

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