“O governo se esforçou para colocar mais recursos. É um esforço que a bancada reconhece.” O comedimento da ruralista Tereza Cristina, ex-ministra de Jair Bolsonaro e hoje senadora pelo PP, ao “comemorar” o Plano Safra recorde, que disponibilizará meio trilhão de reais para a agricultura empresarial, reflete a resistência do setor ao governo Lula. Apesar de todos os mimos que vem recebendo desde o ano passado, o agronegócio permanece na linha de frente da oposição, seja no Congresso Nacional, por intermédio da atuação da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), seja através da postura pública de suas principais entidades representativas, relutantes em se adaptar às exigências das novas regras internacionais que buscam dissociar a produção agropecuária brasileira do desmatamento florestal e outros crimes ambientais.
Lançado no começo de julho com um aumento de 10% em relação ao montante concedido no período anterior, o Plano Safra 2024/2025 distribuirá 400,6 bilhões de reais em incentivos, linhas de crédito e políticas de apoio agrícola para médios e grandes produtores. Os recursos serão divididos em investimento direto (107,3 bilhões) e projetos de custeio e comercialização (293,3 bilhões). Os médios e grandes produtores ainda terão direito a 108 bilhões de reais em recursos provenientes das Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), através das quais podem contrair empréstimos e financiamentos junto a instituições financeiras com o pagamento de juros subsidiado pelo governo federal.
É uma ajuda mais do que considerável para qualquer setor da economia, mas não para o ingrato agro, a considerar meio trilhão de reais insuficiente para “cobrir os custos do setor”. Nos cálculos da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), seriam necessários 570 bilhões de reais para equilibrar as contas dos gigantes do agronegócio nacional. Outra reclamação é que os chamados recursos equalizados, usados para zerar as taxas de juro dos empréstimos pedidos pelos produtores às instituições financeiras, foi de “apenas 16,3 bilhões de reais”. O montante desejado era 21 bilhões: “Precisávamos de um plano mais robusto”, resumiu Bruno Lucchi, técnico da CNA. A Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), por sua vez, ignorou o valor recorde do Plano Safra e preferiu cobrar mais investimentos para “acabar com o gargalo logístico de 124 milhões de toneladas” a afligir, sobretudo, os produtores exportadores.
Até o rastreamento do rebanho bovino, proposto por setores civilizados do agro, enfrenta a oposição da CNA, a principal representante do setor
As queixas não levam em conta o fato de o agronegócio ser praticamente sustentado com os subsídios dados pelo governo – qualquer governo – desde que o setor, com forte apoio da mídia oligárquica, foi alçado no fim do século passado à condição de carro-chefe do comércio exterior brasileiro. “O agronegócio, enquanto modelo voltado à produção de commodities para a exportação, possui uma grande atenção do governo. E esse setor se sustenta desse modo somente porque há financiamento estatal. Então, não há o que reclamar, pelo contrário”, afirma o deputado federal Valmir Assunção, representante do PT na Comissão de Agricultura da Câmara. O parlamentar aponta que, mesmo diante de dívidas bilionárias com o Estado, esse setor reiteradamente consegue regalias no que tange ao processo de renegociação, principalmente se há alguma intempérie climática: “Dados do Ministério da Agricultura mostram que a renegociação autorizada abrange operações de investimento cujas parcelas com vencimento em 2024 poderiam chegar ao valor de 20,8 bilhões de reais em recursos equalizados, outros 6,3 bilhões em recursos dos fundos constitucionais e mais 1,1 bilhão em recursos obrigatórios”.
Coordenador-executivo do Observatório do Clima, Márcio Astrini observa que o setor teve o seu melhor momento nos anos Bolsonaro. “Foi quando se integrou à imagem e à prática do governo. O passar a boiada de Bolsonaro terminou com a eleição, mas ainda está vivo nas ações do agro.” O ambientalista ressalta que o agronegócio brasileiro sofre pressões pela implementação de novos mecanismos climáticos, socioambientais e de controle de desmatamento, mas seu problema maior, avalia, é a militância constante pela destruição da legislação que já existe: “Querem destruir os mecanismos que estão aí, acabar com a reserva legal e com as demarcações de áreas indígenas, enfraquecer a proteção da Amazônia, atacar o Código Florestal, acabar com as regras de agrotóxicos e com o licenciamento ambiental no País. É um setor que se acostumou a poder fazer tudo e a não assumir responsabilidade de absolutamente nada”.
Vice-líder do governo na Câmara, o deputado Carlos Zarattini avalia que o entendimento do governo Lula com a FPA no Congresso é difícil porque há uma visão ideologizada na frente parlamentar: “Eles imaginam e trabalham com a ideia de que o agricultor brasileiro é bolsonarista, então se opõem ao governo. É uma postura ideologizada que visa ganhos eleitorais. Por mais que o governo faça, eles vão resistir. É uma postura política de oposição sistemática”. Dada essa postura, conclui Zarattini, acordos com o governo só se concretizam em matérias que atendam aos seus interesses: “A FPA foi a favor da reforma tributária porque o setor foi muito atendido nos seus pleitos. Excepcionalmente, não votaram com o bolsonarismo”.
Para Assunção, “espaço político é algo que é construído”, e a FPA tem livre trânsito nos espaços de negociação e diálogo com o governo, mas o deputado também é descrente em uma aproximação: “O processo é divergente justamente na crítica que fazemos ao modelo que não rompe com a concentração fundiária. É ecologicamente insustentável da forma como se apresenta atualmente e não prioriza a produção de alimento saudável. É uma questão de classe social e projeto político, cujas sínteses são desafiadoras e precisam estar na ordem do dia do debate do eleitorado brasileiro, quando forem escolhidas as próximas bancadas do Congresso”.
Essa adequação à realidade ambiental do planeta poderia ser “forçada” pelo próprio Plano Safra, afirma John Wilkinson, professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ. “Todo crédito agrícola deveria ter como premissa a adoção de medidas para cumprir os compromissos do Acordo de Paris. A adoção de uma agricultura de baixo carbono precisa ser a precondição para receber crédito público hoje. Mas, dada a força política e econômica do agro, bem como a sua força no Legislativo, essa premissa não parece realista”, afirma. Astrini concorda: “Se o Plano Safra condicionasse o acesso ao crédito ao setor à não promoção de retrocessos, talvez isso evitasse a desfiguração da legislação ambiental no Brasil”.
É verdade que há setores do agronegócio que tentam se modernizar. Um grupo composto de empresas e entidades reunidas nas associações Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável e Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura entregou ao ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, uma proposta de Política Nacional de Rastreabilidade Individual Obrigatória para a cadeia produtiva da carne. “Nossa intenção é apoiar as iniciativas do governo no caminho da implementação da rastreabilidade em todo o rebanho brasileiro, desmitificando as barreiras impostas e apresentando formas de viabilizar sua implantação de forma mais democrática e de fácil acesso pelos produtores”, esclarece João Schimansky Netto, presidente da Mesa Brasileira. Procurado por CartaCapital para comentar a relação do governo com as entidades do agro e a posição da pasta sobre a proposta de rastreamento bovino, Carlos Fávaro não respondeu até a conclusão desta reportagem.
A partir de 2025, a União Europeia levantará barreiras a produtos ligados ao desmatamento
A adoção da proposta seria uma antecipação às novas regras da União Europeia que entrarão em vigor no primeiro dia de 2025, para evitar a compra de produtos associados ao desmatamento. A implementação da lei de rastreamento ambiental será uma das bandeiras do novo mandato de Ursula von der Leyen na presidência da Comissão Europeia, mas já sofre a oposição pública da CNA. A entidade máxima do agro brasileiro afirmou que questionará a legalidade da nova lei europeia na Organização Mundial do Comércio ao mesmo tempo que pedirá à UE que adote uma moratória das eventuais multas aos produtores. “O mercado brasileiro está preocupado porque a lei pode fechar portas para o agronegócio”, afirma Suemi Mori, diretora de Relações Internacionais da CNA.
Astrini classifica como “uma vergonha absoluta” a postura da CNA: “Qual é o problema de provar que um produto não tem desmatamento? Qual mal isso causa? A regulamentação europeia não quer controlar a produção brasileira, mas foi feita para provar que não existe desmatamento associado àquele produto que está sendo comprado. Não quer fazer a rastreabilidade? Então acabe com o desmatamento!”
Uma nova realidade no comércio internacional se fará presente de forma crescente nos próximos anos