Desde que Jair Bolsonaro se filiou ao PL em 2021, a legenda se tornou, na prática, apenas um hospedeiro institucional para uma engrenagem política muito mais complexa. Segundo pesquisadores do Centro para Imaginação Crítica do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em parceria com o Instituto Democracia em Xeque e o Projeto Brief, o verdadeiro “partido” de Bolsonaro é digital, descentralizado e opera fora das regras convencionais da política partidária brasileira. O estudo é um alerta ao sistema político tradicional, alheio e negacionista desta nova lógica.
A pesquisa revela que o bolsonarismo, que surgiu como movimento político em 2018, evoluiu para uma estrutura inédita, denominada pelos estudiosos como Partido Digital Bolsonarista (PDB). Diferente de partidos tradicionais, o que os pesquisadores observam é que o PDB opera à margem das instituições democráticas, utilizando redes sociais como ferramentas de mobilização e coordenação. O PDB não é apenas uma ideologia, mas uma organização política que “hackeia” partidos como o Partido Liberal (PL) para manter sua influência.
A análise, reunida no relatório “O Partido Digital Bolsonarista”, propõe uma tese inquietante: o bolsonarismo não é apenas um movimento de apoio a um líder, mas sim uma nova forma organizacional de poder — um partido digital — moldado pela lógica algorítmica das redes sociais e pelas dinâmicas do engajamento online. Essa estrutura seria responsável por coordenar ações políticas, controlar a narrativa pública e mobilizar massas, sem depender de diretórios físicos, congressos partidários ou regulamentação eleitoral.
O bolsonarismo atua paralelamente à institucionalidade, contorna regras de financiamento e mobilização, e mantém sua coesão não por estatutos, mas por códigos simbólicos e morais.
A máquina bolsonarista nas redes: coordenação, estética e fidelidade
Não é o PL que define quem são seus quadros mais influentes, mas o bolsonarismo nas redes elege e defende quem são os candidatos de Bolsonaro. Foto: Divulgação do PL
A pesquisa apresenta uma série de evidências que sustentam essa hipótese. No debate sobre a anistia aos golpistas de 8 de janeiro e na aprovação da chamada “Lei da Saidinha”, por exemplo, foi possível observar uma forte sincronicidade nos discursos e postagens de deputados bolsonaristas. Os conteúdos compartilhavam não apenas os mesmos temas, mas também a estética visual, os enquadramentos retóricos e até o timing das publicações — sinais de uma operação coordenada que lembra o funcionamento de partidos tradicionais.
Essa organização se estende também fora do Congresso. Nas eleições municipais de 2024, a família Bolsonaro lançou um site próprio para apoiar candidatos aliados. E mesmo quando Bolsonaro contrariou parte de sua base, como no apoio a Ricardo Nunes em São Paulo, a estratégia revelou racionalidade partidária: cálculo político, aliança de longo prazo, planejamento de 2026.
“Estamos diante de um fenômeno que combina coordenação política, construção simbólica e mobilização digital em níveis que superam as funções tradicionais dos partidos políticos”, aponta o relatório.
Um partido que age fora da lei — e fora do papel
Apesar de não existir formalmente, o partido digital bolsonarista tem estrutura, liderança e uma base de apoio consolidada. Ele se organiza por cadeias de lealdade que incluem parlamentares, influenciadores digitais, religiosos e militantes. Seu eixo de mobilização não é ideológico no sentido clássico, mas emocional: gira em torno de valores morais, discursos antissistema e de um messianismo em torno da figura de Bolsonaro.
O PL, nesse cenário, funciona como uma plataforma instrumental: oferece acesso a recursos públicos, tempo de TV e estrutura jurídica, mas não comanda o projeto político. Ao contrário, é comandado por ele.
A base do PDB é formada por cadeias de lealdade centradas em figuras como Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro e Carla Zambelli, além de influenciadores como Nikolas Ferreira e Gustavo Gayer. Esses atores atuam como “nós” de uma rede que conecta o núcleo ideológico à militância digital. Segundo o estudo, 75% dos deputados federais do PL são considerados líderes bolsonaristas, mesmo sendo muitos deles filiados ao partido apenas após 2022.
O relatório do Cebrap mostra que a atuação bolsonarista nas redes sociais é altamente centralizada em clusters digitais e pautada por campanhas coordenadas que orbitam temas como o ataque ao STF e a defesa de valores conservadores.
Redes sociais como arma política
Não é o PL que define quem são seus quadros mais influentes, mas o bolsonarismo nas redes elege e defende quem são os candidatos de Bolsonaro. Foto: Divulgação do PL
O PDB transformou plataformas como Instagram e TikTok em espaços de disputa eleitoral. Análise de 10 parlamentares durante cinco semanas-chave de 2024 (como a semana do 7 de Setembro e a ascensão de Pablo Marçal) mostra que o PL liderou o engajamento digital, com destaque para Nikolas Ferreira, que acumulou 537 mil interações por postagem.
O PL foi o partido com melhor desempenho em municípios acima de 200 mil habitantes nas eleições de 2024.
Parlamentares do PDB postaram, em média, 306 vezes sobre candidatos alinhados, muitos rotulados como “candidatos de Bolsonaro”.
Embora o PDB esteja integrado ao PL, sua atuação transcende as fronteiras partidárias. Em 2024, o grupo apoiou candidatos de outros partidos, como o PP e o Novo , através de um site chamado “Candidatos do Bolsonaro”. A pesquisa destaca que 33,8% dos candidatos apoiados foram eleitos, incluindo Abílio Brunini (MT) e André Fernandes (CE).
Desafios e riscos para o futuro
A estrutura descentralizada do PDB traz fragilidades. A pesquisa aponta o risco de saída, evidenciado pela ascensão de figuras como Pablo Marçal, que rompeu com o núcleo bolsonarista. Além disso, a falta de estatutos e programas claros gera instabilidade, com punições simbólicas para dissidentes, como Alexandre Frota e Joice Hasselmann.
Ameaça externa: A regulação de redes sociais e a censura de conteúdos (ex.: bloqueio de contas de Marçal) podem limitar a capacidade de mobilização do PDB.
Do partido de massa ao partido digital: a nova fronteira política
A emergência do “partido digital bolsonarista” marca, segundo os pesquisadores, uma inflexão histórica comparável ao surgimento dos partidos de massa no final do século XIX. Assim como aqueles partidos representaram a politização das massas operárias e a entrada de novos sujeitos na arena democrática, o partido digital representa a reorganização do poder político em tempos de algoritmos, redes e viralizações.
Mas, ao contrário de seus antecessores, essa nova forma partidária nasce à margem da legalidade institucional e tem vocação para a instabilidade. Ao operar fora das regras e simular espontaneidade popular, essa estrutura tem se mostrado capaz de manipular a opinião pública, fragilizar as instituições democráticas e legitimar a desinformação como tática de poder.
A retórica antissistema é a engrenagem central desse partido. Cada postagem, cada discurso inflamado, cada ataque ao Supremo é cuidadosamente ensaiado para deslegitimar a ordem constitucional de 1988.
A extrema direita como vanguarda algorítmica
O partido digital bolsonarista não é um fenômeno isolado. Ainda que a pesquisa se concentre no Brasil, há paralelos óbvios em outros contextos, especialmente nos Estados Unidos, onde o trumpismo segue uma lógica semelhante de mobilização digital, culto à personalidade e ataque às instituições. A diferença, segundo os pesquisadores, está na sofisticação da máquina brasileira e na sua capacidade de operar num ambiente institucional híbrido, explorando brechas da lei e zonas cinzentas da política digital.
Com isso, o bolsonarismo já não dependeria mais da presença física de Bolsonaro. Ainda que o ex-presidente venha a ser preso ou impedido de disputar eleições futuras, a máquina que ajudou a criar segue funcionando — replicável, escalável, adaptável.
O futuro incerto da democracia frente à nova forma política
O partido digital bolsonarista coloca a democracia brasileira diante de um dilema: como lidar com uma organização que não se submete às regras do jogo, mas é capaz de influenciar profundamente seus resultados? O relatório do Cebrap sugere que estamos apenas no início de uma transformação mais ampla e que a institucionalização ou não dessa nova forma partidária será decisiva para o futuro político do país.
O que está em jogo não é apenas uma disputa eleitoral, mas uma batalha sobre como se organiza o poder na era digital. E nessa disputa, quem controla os fluxos de atenção pode acabar controlando também os rumos da democracia.