Está em cartaz um novo filme baseado no romance Drácula, escrito pelo britânico Bram Stoker e publicado pela primeira vez em 1897. Trata-se de uma versão estadunidense chamada Nosferatu, dirigida pelo jovem cineasta Robert Eggers.

De acordo com a publicidade do filme, repetida por 11 de 10 pseudocríticios que existem por aí, Eggers decidiu fazer uma refilmagem do clássico de mesmo nome do diretor alemão F.W. Murnau, de 1922, que entrou para a história do cinema como um dos principais representantes do movimento de vanguarda que ficou conhecido como expressionismo alemão. 

No entanto, é evidente que, apesar de ignorado pela crítica, a refilmagem de Werner Herzog, de 1979, também faz parte das inúmeras fontes de Eggers. Com Isabelle Adjani e Klaus Kinski nos respectivos papeis de Ellen e do Conde Orlok, a realização do diretor alemão explora as fronteiras entre o sonho e a realidade, a alienação e a consciência, e trata o tema de uma forma política.

A proposta deste texto é explorar essas versões a partir do que a crítica materialista nos ensina e compreender como esses três pontos no tempo – Alemanha, 1922, Alemanha, 1979 e, Alemanha/Estados Unidos, 2024 – impactam na forma como os materiais políticos são trabalhados pelos diferentes diretores.

Robert Eggers e a crise do cinema hollywoodiano

No atual momento, o cinema estadunidense está procurando alternativas para seu declínio. Um dos problemas é fazer com que o público volte às salas de cinema, que ainda sofrem os efeitos da pandemia e da ascensão dos serviços de streaming.  Outro é a ausência de material novo. A própria audiência americana está cansada das mesmas velhas ideias e dos gêneros caducos.

Eggers, que está apenas no seu quarto filme, parece ter encontrado uma saída. A Bruxa (The Witch, 2015) e O Farol (The Lighthouse, 2019) trabalham com temas bastante conhecidos, mas que receberam uma abordagem que consegue captar a subjetividade contemporânea e mostrá-los com um novo olhar.  O Homem do Norte (The Northman, 2022) é uma adaptação de Hamlet, de Shakespeare, que vai pelo mesmo caminho.  

Em comum, essas obras partem de mitos e fantasias para narrar histórias de suspense e horror psicológico sobre personagens em situações limites em condições extremas de vida.  Os três filmes têm uma cinematografia espetacular e atores do primeiro time de Hollywood. Com isso, Eggers e sua equipe de relações públicas têm conseguido construir sua aura de diretor independente e intelectual, ou seja, de autor. Dessa forma, Nosferatu não é mais um filme sobre Drácula, mas um filme sobre Drácula de Robert Eggers. É, sem dúvida, uma forma de marketing que ajuda muito a cinefilia a voltar às salas de cinema.

Drácula e a indústria cinematográfica

Quando Drácula deixou o romance de Stoker e chegou ao cinema de Murnau há 100 anos, houve uma espécie de casamento perfeito entre o personagem e as possibilidades criativas tanto nos enredos, quanto na cinematografia. É possível dizer que Drácula e o cinema são inseparáveis. 

Há centenas de filmes e variações sobre o tema do vampiro e é impossível encontrar alguém que não tenha assistido ao menos um deles. O século XX é marcado por diferentes adaptações como as de Bela Lugosi nos anos 1930 e os filmes da produtora B inglesa Hammer, com Christopher Lee, nos anos 1960 e 1970. 

Surgiram também as sátiras, como A Dança dos Vampiros (The Fearless Vampire Killers, 1967), de Roman Polanski. No Brasil, ainda nos anos 1960, temos o surgimento do personagem Zé do Caixão, criação do cineasta José Mojica Marins, que marca a incursão nacional mais consistente no gênero terror e que foi bastante popular.

Drácula, de Bram Stoker (Bram Stoker ‘s Dracula, 1991), dirigido por Francis Ford Coppola, é outro filme que tenta atualizar o tema para um público mais contemporâneo (na época). Contudo, de todos, é o mais fraco. O monstro de Klaus Kinski e Max Schreck é substituído pelo charme de Gary Oldman, que faz um personagem romântico e angustiado, vítima de trágicas circunstâncias que o levam, ao final, a uma espécie de redenção.

O sucesso desse filme deu origem a um novo tipo de vampiro no cinema hollywoodiano, agora como personagem principal, belo, sexy e angustiado, e não o monstro a ser combatido, mas uma espécie de super-heroi imortal. É nessa chave que estão Entrevista com o Vampiro (Interview with the Vampire, 1994, Neil Jordan) e A Saga Crepúsculo (The Twilight Saga, 2008 a 2012), esta última uma verdadeira estaca no coração do tema.

Onde está o conde?

Dessa forma, o novo Nosferatu pode ser definido como o reaproveitamento de um tema que é uma receita infalível de sucesso há mais de 100 anos. Acrescida de atores e de diretor que uma nova geração de cinéfilos adora, oferece um olhar fresco para que a indústria consiga o sopro de rejuvenescimento de que necessita. 

Porém, surpreendentemente, o filme vai além do esperado e aborda as questões política e social de uma maneira fora da curva no cinema estadunidense, conseguindo ser tão bom quanto as duas versões antecessoras. Além de se colocar razoavelmente distante do identitarismo fácil. Isso é possível porque, com o tema fantástico, em um momento de repressão, é possível preservar as questões políticas de uma maneira bem ousada. 

Na minha percepção, a grande sacada da história de Bram Stoker está na associação entre o vampiro, o morto-vivo, via o título de conde, à nobreza. No final do século XIX, o conde Drácula surgiu como o representante de uma classe de parasitas que insistia em ficar viva, que se recusava a morrer. É evidente a associação. É importante lembrar que o título de nobreza é concedido pelos reis e ratificado pelas igrejas, sejam elas Católica, Ortodoxa ou protestante. (Outro excelente conto que fala sobre essa decadência é A Queda da Casa de Usher, do escritor inglês Edgar Allan Poe, de 1838).

No entanto, é impossível encontrar uma crítica aos filmes ou ao livro que analise, como ponto de partida, as relações de classe que ali estão explícitadas. A crítica profissional concentra-se em explorar a história de um ponto de vista simbólico e psicológico. Lembro que na época do lançamento do filme de Coppola, os críticos foram uníssonos em associá-lo à epidemia de AIDS. 

O problema da análise que apenas vê aspectos psicológicos é que, além de limitada, é um dos sintomas do quanto a psicologia, como área de conhecimento, é frágil. A disciplina mostra que pode ser facilmente cooptada pela classe dominante como arma poderosa para a defesa de seus próprios interesses, disfarçados de ciência, algo que também é extremamente preocupante. Para não dizer aterrorizador, já que estamos no tema. Ela pode ser usada para determinar quem é doente mental ou não de acordo com os interesses dessa classe. Pior, ajuda a apagar a luta de classes, colocando os problemas mentais como questões individuais. Infelizmente, nem todo mundo é capaz de se adequar a sugadores de sangue em seu pescoço sem reagir ou adoecer.

Não é possível ter dúvidas de que os três filmes retratam o Conde Drácula, ou Orlok, como um parasita por causa da sua classe social. No caso do filme de Eggers, a representação é espetacular. Trata-se de um corpo em putrefação sustentado por sangue dos que estão vivos, ou seja, dos que trabalham. Nesse contexto, o cineasta enterra de vez o vampiro sedutor e angustiado das décadas anteriores.

O motivo fundamental que coloca a história em movimento é econômico. Thomas Hutter (Nicholas Hoult), marido de Ellen (Lily-Rose Depp), é um pequeno-burguês que trabalha em uma imobiliária. Ele é enviado por seu chefe a Romênia. O sujeito é o dono do negócio e servo voluntário de Orlok, como são no geral todos os administradores pagos pelos capital. O corretor deve vender ao morto-vivo uma casa na cidade e, assim, conseguir a comissão necessária para dar à esposa uma vida melhor. 

Ao contrário das duas versões anteriores, Orlok não é um anfitrião que usa do disfarce da boa educação para receber seu hóspede. E é nesse ponto que a questão de classe fica explícita no filme de Eggers: Orlok coloca Hutter em seu lugar de empregado em questão de segundos, fazendo-o lembrar de maneira clara e ameaçadora para quem ele trabalha e exigindo respeito de classe.

A questão que se coloca aqui é se, como no livro de Stoker ou no conto de Poe, podemos fazer a relação do Conde Orlok só com a nobreza. Em minha opinião, isso também está superado. Já estava superado em 1922, quando Murnau adaptou o livro em uma Alemanha que ainda se recuperava da I Guerra Mundial, em plena República de Weimer e com o socialismo alimentando as massas de trabalhadores industriais e camponesas do país que também vivia sob o impacto da ainda recente revolução bolchevique.

O título pode ter sido mantido, mas Orlok torna-se também uma representação da burguesia parasita que levou a Alemanha à guerra. É fácil também perceber essa associação com a burguesia no filme de Herzog, feito em um momento em que a Alemanha ainda estava dividida em dois países, um deles socialista. Na versão do cineasta estadunidense, de 2024, a associação da figura repulsiva aos plutocratas que mandam no país é total, mesmo que essa nem tenha sido a intenção, o que duvido. Podemos sugerir que a passagem do castelo isolado nas montanhas para uma propriedade urbana pode representar essa espécie de modernização, no qual ele se integra como classe dominante ao capitalismo.

O foco na luta de classes continua no filme de Eggers em uma outra cena que é um espelho do primeiro encontro entre Orlok e Hutter. Trata-se de uma discussão entre Friedrich Harding (Aaron Taylor-Johnson), um comerciante rico e amigo do corretor, e Ellen. Orlok já está na cidade e ela tenta convencê-lo de que é necessário caçá-lo e matá-lo, caso contrário sua própria família irá morrer. Harding não lhe dá ouvidos, pois acredita que tudo não passa de superstição. Capitalista e com um discurso muito parecido com o do conde, ele a coloca no seu devido lugar, não só por ser uma mulher com uma doença mental, mas também por sua posição de classe.

Ellen, alienação social e subjetividade contemporânea

Eggers informou em uma entrevista que o ponto de vista da história é o de Ellen. A questão da consciência de classe acaba sendo tema das três versões, possibilitando a partir dos filmes, uma análise dessa representação ao longo dos últimos 100 anos.

Ellen representa a subjetividade contemporânea possível para a pequena-burguesia no capitalismo neoliberal: aquela que sofre com doenças mentais como a depressão.  Se, no século XIX, o diagnóstico era de histeria, agora, a depressão é o seu substituto científico. Nos filmes, associa-se isso ainda ao sonambulismo e à dificuldade de entender o que é ilusão e o que é real, diante da manipulação psíquica do conde, ou seja, de sua capacidade de alienar as classes mais baixas de acordo com seus propósitos.

Mas é a personagem de Ellen, nos três filmes, que conseguem chegar à verdadeira natureza do conde e entende a importância de destruí-lo. Diante do ceticismo, da indiferença e até mesmo da adesão à ideologia do monstro, ela se torna responsável pela tarefa de enfrentá-lo e vai para o sacrifício.

O filme de Herzog talvez seja o que melhor compreendeu essa passagem.  Ellen (Adjani) não tem a ajuda de médicos ou estudiosos, o Van Helsing no original, ao contrário das outras representações. No caso, os habitantes da cidade alemã onde vive estão completamente cegos e apenas se preparam para o fim. É interessante notar sua passagem de sonâmbula e esquizofrênica para uma mulher racional e lúcida. 

O conflito entre a alienação de toda uma sociedade sobre sua própria destruição e a única voz contra-hegemônica acaba sendo o grande trunfo explorado pelo diretor e as ligações com o nazismo são evidentes.  A cena final de Van Helsing sendo preso pelo “assassinato” do conde e um cidadão afirmando que não havia mais prisão para levar o prisioneiro, nem prefeitura, nem estado, é para entrar na história do cinema.

No caso de Eggers, essa tomada de consciência também acontece.  Aqui, ele acrescentou algo a mais: a personagem carrega a culpa por ter invocado o monstro, como se fosse dela a responsabilidade por tudo que está acontecendo. Muitas críticas que vi alimentam essa perspectiva, esquecendo totalmente a questão de que o ponto de vista dela não é necessariamente o do filme. Há, na verdade, uma subtrama de pedofilia, talvez uma crítica ao filme de Jordan, ou, mais factual, ao escândalo de tráfico de meninas que envolveu políticos dos partidos Democrata e Republicano e o bilionário Jeffrey Epstein, morto em 2019. 

Eggers faz de seu Conde Orlok um parasita movido pela perversidade. Essa é a subjetividade que encontramos nos indivíduos da classe dominante atualmente. (Alguém duvida que esse é o caráter de alguém que toma a decisão de bombardear crianças em Gaza?). A relação que mantém Orlok com Ellen é de pura perversão. Ela é submetida às suas vontades até a morte para única e completa satisfação dele. É assim que os parasitas agem. Eles usam o hospedeiro até sua completa destruição: pode ser uma pessoa, pode ser um país. Nesse contexto, a única forma de superação dessa condição, ou seja, de cura e de libertação, é a tomada de consciência de classe, representada pelo dia e pela luz do sol.

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Last Update: 19/01/2025