Os bancos centrais assumiram, no período da financeirização, pós-1980, um papel crucial e quase exclusivo na gestão da política econômica, magnificando o impacto de suas ações na economia e sociedade. A desregulação radical dos mercados financeiros paradoxalmente exacerbou as ações dos bancos centrais, sobretudo na correção dos distúrbios decorrentes das operações desses mercados. Nesse contexto, é quase incompreensível que o debate sobre esta instituição seja, ainda hoje, marcado pelas propostas de ampliação da independência e não da sua democratização.

Atribui-se ao general alemão Clausewitz, um estrategista militar e cientista político, a frase “a guerra é um assunto sério demais para ser deixado aos generais”. A afirmação não questionava o conhecimento técnico dos militares, mas destacava as amplas implicações econômicas e sociais das guerras, bem como as escolhas que deveriam ser feitas, muitas vezes com informações imperfeitas. Ora, por sua natureza, a guerra era sobretudo um prolongamento da política e não deveria ser deixada a cargo dos burocratas, e seus interessados, no caso, os generais e os produtores de material bélico.

A analogia da guerra com a moeda, ou dos poderes de monopolizar a força, em suas várias dimensões, com o da emissão e gestão da moeda, ambos poderes basilares dos Estados soberanos, é irrecusável. A moeda e sua gestão, tanto quanto a da guerra, têm vastas implicações econômicas sociais e, ademais, envolvem escolhas. Logo, cabe perguntar: por que insular uma função tão essencial do Estado soberano por meio do banco central independente do governo? No sentido contrário, não seria mais correto democratizá-la?

Para explicitar a centralidade que tem um banco central, na economia e sua gestão, cabe assinalar o seu papel. De uma perspectiva histórica, os bancos centrais responsáveis exclusivos pela emissão e controle da moeda fiduciária estatal tiveram a seu cargo algumas funções essenciais: a determinação da taxa de juros, os empréstimos de última instância e o financiamento do Estado. Outra função relevante, mas não exclusiva, é a da regulação e supervisão bancária com o intuito de evitar as crises sistêmicas.

A fixação das taxas de juros no regime financeirizado e desregulado, tinha, até recentemente, como alvo, as taxas de curtíssimo prazo, fundada na troca de títulos por dinheiro no mercado de reservas bancárias. Ao mercado cabia determinar o espectro das taxas de juros nos mercados secundários. Esse paradigma foi rompido após a crise financeira de 2008 por meio da compra massiva de títulos utilizando-se a emissão de moeda para tal fim. O objetivo era ao mesmo tempo garantir a liquidez, num momento de explosão da sua preferência e evitar aumentos expressivos das taxas de juros longas.

Esta última intervenção realça a função de emprestador de última instância, ou seja, a de criador de moeda. Isto pode ocorrer de maneira limitada e individualizada por meio de instrumentos de redesconto, ou empréstimos de liquidez com instituições específicas, ou de uma forma generalizada e mais ou menos massiva, por meio das operações de mercado aberto. Como foi assinalado acima, as mudanças recentes dizem respeito tanto à intensidade dessas operações quanto à elegibilidade de títulos.

No período da financeirização e da desregulação dos mercados, o banco central perdeu a sua função de financiar o Tesouro. Ou seja, ao banco central independente é vedado financiar o Tesouro, sob vários argumentos: a validação automática dos déficits públicos e seus impactos na inflação, a ineficiência alocativa do gasto público e por aí vai. É curioso que esse tipo de argumento não inclua nunca a validação de dívidas privadas, em particular aquelas decorrentes das bolhas financeiras. No dizer de várias correntes do pensamento econômico, o banco central converteu-se num instrumento de validação de dívidas e títulos podres do setor privado.

Cabe ainda referir que os bancos centrais no período pós-Bretton Woods, de taxas de câmbio flutuantes, ampliaram uma função essencial, a de gestores das operações cambiais, aspecto tão mais relevante quanto mais fraca ou inconversível a moeda de um país. Para o emissor da moeda reserva no âmbito internacional, a operação cambial é pouco relevante, em particular a fixação da taxa de câmbio. Isto porque tanto os preços importantes quanto as dívidas são estabelecidas na sua própria moeda. Já para países periféricos, a flutuação da taxa de câmbio tem muita importância tanto para a evolução dos preços quanto para a dívida emitida na moeda reserva. Por essa razão, é necessário administrar a taxa de câmbio, o que envolve compra e gerenciamento de reservas, emissão de swaps cambiais, limitação das posições de bancos, dentre outras.

Com tantas atribuições e implicações econômicas e sociais, como explicar a progressiva importância do regime de independência dos bancos centrais? Para aprofundar a questão é necessário discutir os fundamentos teóricos e ideológicos que dão lhes dão sustentação, no âmbito do mainstream. A primeira e mais importante postulação da ortodoxia é a da neutralidade da moeda. Nas versões iniciais, monetaristas, essa neutralidade era advogada apenas para o longo prazo. Com a economia em equilíbrio de pleno emprego, para o qual sempre convergiu, a emissão monetária poderia provocar temporariamente a ilusão de maiores salários, mas que seria corrigida progressivamente pela elevação dos preços. As expectativas – adaptativas – sobre as trajetórias dos preços corrigiram o movimento inicial de ganho salarial. Ao fim e ao cabo, a tentativa de alcançar um crescimento mais alto, pela expansão monetária, resultaria apenas em inflação.

Esse argumento foi radicalizado na teoria mainstream contemporânea pela incorporação do axioma das expectativas racionais. Sua postulação essencial é a de que os agentes aprendem com as práticas das autoridades econômicas e corrigem instantaneamente as suas posturas. Por exemplo, numa economia em equilíbrio de pleno emprego – que seria o seu estado natural e permanente -, os trabalhadores não são enganados, mesmo temporariamente, por salários nominais mais elevados porque sabem que a inflação futura os rebaixará. Essa antecipação, ou expectativas racionais, ocorre em todos os mercados, corrigindo e sobretudo limitando a ação da política econômica. Só ações baseadas na surpresa podem produzir resultados temporários e indesejáveis, porque tiram a economia do equilíbrio natural.

O maior problema dessa teoria reside no conceito e no papel das expectativas, cruciais para determinar a trajetória de variáveis-chave, em particular da inflação. Qualquer suspeita de inconsistência temporal na política econômica altera as expectativas sobre a trajetória das variáveis relevantes no futuro – e implica no seu ajuste imediato, no presente. Se a definição das expectativas como elo crucial entre o futuro e o presente é explicitamente postulada nessa teoria, o que fica muito pouco claro é como essas expectativas são formadas, ou seja, quais os agentes relevantes e como interagem e, também, quais os seus canais de transmissão sobre a economia real, principalmente nos parâmetros essenciais da formação de preços – mark-ups, negociações salariais, preço de commodities.

A inflação torna-se a variável-chave da economia a ser controlada pela política econômica, tanto porque pode distorcer os preços relativos quanto porque pode tornar incerto o cálculo e o valor dos ativos financeiros. É por essa razão que a política monetária, em particular a política de juros e sua vinculação direta com a inflação, pelo regime de metas, é a âncora central do sistema, e as demais políticas, em particular a fiscal, estão a ela subordinadas, devendo exercer o papel de coadjuvante na garantia da estabilidade de preços.

Da perspectiva desse aparato teórico, o isolamento do banco central do poder político seria crucial. Vale dizer, os políticos em geral, e sobretudo, o governo, estariam submetidos, por definição, a um conflito de interesses expresso no desejo de ampliar o crescimento econômico às custas do aumento da inflação. Como reza a teoria do mainstream, a impossibilidade de acelerar o crescimento por meio da política econômica só conduziria a maior instabilidade do sistema e a mais inflação, sendo, portanto, essencial afastar o poder político da gestão monetária. É curioso e até surpreendente que não haja na teorização sobre o banco central independente uma reflexão sobre os interesses de agentes privados como banqueiros, mercados financeiros e rentistas em geral. E em boa medida isto se ancora no pressuposto do mercado como instituição abstrata, atomizada, e concorrencial.

A evolução do banco central independente e as escolhas políticas que lhes são subjacentes têm gerado nos países desenvolvidos críticas recorrentes ao papel dessas instituições. Nesse plano, pelo menos duas delas merecem ser destacadas. A primeira diz respeito à fixação da taxa de juros básica da economia e o efeito contraditório que pode exercer sobre dois conjuntos de preços: o dos bens e serviços e o dos ativos. Ou seja, eleger como objetivo gerenciar preços de bens e serviços pode ser incompatível com a trajetória dos preços dos ativos, e suas bolhas. Assim, é necessário fazer escolhas com impactos sociais e econômicos expressivos.

O outro aspecto controverso se refere às operações ampliadas de emprestador de última instância, que se converteu recentemente num eufemismo para designar o salvamento – de si próprio – do mercado financeiro. Salvar ou não salvar? Quais segmentos salvar? Que títulos serão elegíveis? Qual a magnitude desse salvamento? São escolhas políticas relevantes com impactos distributivos e no crescimento muito significativos. É justificável entregar essas decisões a uma burocracia com intensos laços com o sistema financeiro?

Isto posto, cabe aprofundar a discussão da institucionalidade do sistema monetário brasileiro, no qual o banco central independente é a instituição basilar. A independência formal do Banco Central do Brasil foi estabelecida pela lei complementar nº 179, de 24 de fevereiro de 2021, aprovada após mais de vinte anos parada no Congresso e sob o patrocínio de um governo de extrema-direita. Ela sucede o regime de autonomia operacional para cumprir a meta de inflação que se inicia com o regime de metas em 1999. Introduz legalmente a independência por meio dos mandatos não coincidentes de diretores, em especial o do presidente com o do presidente da República. Ademais, dificulta a demissão desses diretores pelo Poder Executivo, ao exigir a aprovação da maioria do Senado. 

A lei também consagra o conjunto de atribuições do banco central, parte das quais foram se construindo por normas e regulamentos internos ao longo do tempo. Essas atribuições são: a fixação da taxa de juros básica da economia em associação com a administração do regime de metas; a assistência de liquidez aos bancos e sistema financeiro; a gestão das operações cambiais; a regulação e a supervisão do sistema financeiro. É um conjunto de atribuições tonitruante e que define o banco central como principal instituição na gestão da política econômica.

Uma das atribuições do Banco Central brasileiro, a gestão das operações cambiais, chama a atenção por conta da sua magnitude e da ausência de parâmetros gerais e específicos para esta atuação. O banco central opera com inteira liberdade a gestão das reservas internacionais do País (350 bilhões de dólares) e os swaps cambiais (100 bilhões de dólares em maio de 2024). Vale dizer, um valor equivalente a 25% do PIB brasileiro. É comum sua diretoria se referir ao objetivo dessa operação como reduzir a volatilidade da taxa de câmbio, mas a verdade é que não há um padrão de atuação e tampouco de accountability. Como e quando vender ou comprar reservas? Como e quando intervir na taxa de câmbio?

Com tal conjunto de atribuições, a pergunta que não quer calar é: a quem presta contas o banco central? Deixemos de lado as respostas mistificadoras que postulam ser o banco central uma instituição gerida por uma burocracia sem interesses e ideologia e que visa essencialmente o bem comum. Na prática, como veremos a seguir, o Banco Central brasileiro – ao contrário de outros como o FED, no qual o Congresso tem forte poder fiscalizatório, ou os de Reino Unido e Suécia, que admitem membros da sociedade civil nos respectivos comitês de política monetária – interage e presta conta apenas à sua comunidade de interesses, o sistema financeiro.

Isto pode ser ilustrado pelo funcionamento do regime de metas de inflação, nos seus dois pilares básicos: o Copom e o Sistema de Expectativas de Mercado. Na composição do Copom, exclusiva dos diretores e presidente, a presença de ex e futuros executivos ou técnicos qualificados do mercado financeiro é dominante. É uma manifestação radical do fenômeno da porta giratória ou da intercambialidade entre as funções públicas e privadas. Uma ilustração: no período pós-1994, dos onze presidentes do Banco Central do Brasil (BCB), apenas um era funcionário de carreira e continuou sendo; os demais ou eram ou viraram executivos do mercado financeiro.

A operação do Sistema de Expectativas de Mercado, que articula banco central com cento e setenta e três instituições financeiras, envolve três instrumentos: o Boletim Focus, cuja função é coletar as expectativas do mercado e divulgá-las; o Questionário Pré-Copom, preenchido por essas instituições em data próxima da reunião, explicitando suas preferências; e, por fim, as reuniões periódicas e informais, cujo papel não está definido na operação do regime. Em breves palavras, o BCB atua como coordenador do mercado, influenciando-o e sendo influenciado por ele. E o que sobra para o controle público? Nada ou quase nada: a fixação e a revisão da meta de inflação pelo CMN em caráter bissexto e a carta de perdão do não cumprimento eventual da meta de inflação, endereçada ao governo.

Numa reunião recente no exterior, o atual presidente do banco central foi taxativo: segundo ele, no futuro, todos – até o presidente da República – compreenderão o caráter técnico das análises e decisões do Banco Central. A rigor, a afirmação, além de mistificadora, lança luzes sobre o caráter autoritário do funcionamento e das decisões do banco central. Isto porque mesmo sobre a égide do pensamento único, as decisões complexas são sempre fundadas em escolhas. Não admitir essas disjuntivas é apenas a reafirmação da adesão a um modelo não democrático de funcionamento. A analogia nesse caso é com os partidos autoritários nos quais o comitê central – no caso, o Copom – opera em uníssono com os membros do diretório – ou seja, as entidades financeiras do Sistema de Expectativas –, coordenando-as. Mais ainda, o comitê central, no caso o Copom, funciona sob o regime de centralismo democrático – vale dizer, as decisões têm de ser unânimes.

Com tal grau de centralização de poderes, o banco central opera as políticas monetária e cambial num contexto muito particular. O principal ativo financeiro da economia, a dívida pública, tem sua maior parcela indexada à taxa de juros de curto prazo (Selic). Esta parcela indexada, por sua vez, está prioritariamente alocada nas carteiras próprias dos bancos e nos ativos dos fundos de investimento. Para esses grandes players do mercado financeiro, o aumento das taxas de juros não implica perdas de capital, mas ganho de rendimento. Ao contrário dos países nos quais o crédito e a alavancagem são importantes, no Brasil o rentismo parasitário é o principal sócio do aumento das taxas de juros.

Outro fato recente ilustra o modus operandi do Banco Central brasileiro. Após o anúncio da revisão da meta fiscal em abril de 2024, do déficit zero para 0,5% do PIB – uma revisão per se irrelevante –, a reação do presidente do banco central provocou uma reviravolta nos parâmetros da política monetária em curso. A partir de então o presidente do BCB retomou o seu discurso dos riscos fiscais, da falta de convergência entre política monetária e fiscal e provocou num curto espaço de tempo uma reversão de expectativas, registrada pelo boletim Focus, que forçou nas duas reuniões seguintes do Copom a revisão do corte continuado da Selic. Mas o que de fato estava em jogo? A perda de controle do déficit e da dívida pública?  Não, apenas a tentativa do Banco Central de definir os termos do ajuste fiscal, priorizando o corte dos gastos ante a revisão da meta e, nos primeiros, o corte dos gastos sociais ante os tributários.

As crescentes atribuições e a insuficiência de prestação de contas do Banco Central podem ganhar novo impulso se a PEC da autonomia financeira e administrativa – que também poderia ser denominada de PEC da Privatização – for aprovada no Congresso, ampliando a sua independência e a ausência de controles democráticos. Visando viabilizar essa autonomia, a PEC propõe a transformação do banco central de uma autarquia em empresa estatal. Ou seja, substitui-se uma entidade de direito público que exerce atividade típica do Estado por outra de direito privado que exerce atividades não privativas do Estado.

As principais implicações seriam: (a) enfraquecimento do poder do banco em questões como a criação de normas, sanções e liquidações no sistema financeiro, dando margem à sua judicialização; (b) financiamento automático da instituição pela apropriação do ganho de senhoriagem, mas que continuaria a ser financiada pelo Tesouro no caso de prejuízo; (c) seleção de pessoal por critérios privados (celetistas), dando margem à extensão da porta giratória para vários níveis técnicos; (d) fiscalização pelo Congresso e não mais pela Controladoria-Geral da União. Em síntese, o processo de privatização e captura do BC pelo sistema financeiro se completaria.

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Última Atualização: 09/07/2024