Em um ano atípico, as inundações deixariam o Pantanal submerso no primeiro semestre do ano. Somente agora, entre o fim de agosto e início de setembro, a estiagem atingiria o seu auge, com o esvaziamento completo das cheias. Esse é o fluxo natural do bioma, em um ecossistema ambientalmente equilibrado: períodos de enchentes e secas intercalados. Esse cenário faz parte, porém, de um passado cada vez mais remoto.

Há pelo menos seis anos o Pantanal não enche, alterando consideravelmente a vida no bioma, com cerca de 1,5 milhão de hectares de seu território devastado pelo fogo neste momento. Desde janeiro, quando o Pantanal deveria estar enchendo, já eram perceptíveis alguns focos de incêndio. A partir de maio, as chamas alcançaram grandes proporções, difíceis de ser controladas, causando danos irreparáveis. O saldo é desolador: cerca de 10% do bioma destruído, animais carbonizados ou migrando para outras regiões em busca de sobrevivência, lutando contra a fome e a sede.

“Mesmo sem a presença do fogo, em algumas regiões a fauna está sendo impactada. Os corixos (bacias d’água) estão vazios e os rios secaram, obrigando os animais a se deslocarem. Mas o que a gente tem observado é que a seca é tão grande que não existem locais para migrar. O clima impacta na flora, a base da cadeia alimentar dos animais, e eles ficam sem condições clínicas, não têm escore corporal para fazer grandes migrações porque estão debilitados”, explica o veterinário Enderson Barreto, diretor da ONG Grupo de Resposta a Animais em Desastres, que atua no Pantanal Norte, em Mato Grosso. “Temos imagens no monitoramento de animais atolados ou revirando a lama para tentar beber água. São imagens que trazem um alerta muito grave de onde a fauna sofre não pela presença do fogo, mas pela seca extrema, que também ocasiona incêndios florestais de grande magnitude.”

Os incêndios já devastaram 10% da cobertura vegetal. E a seca ainda não atingiu o seu ápice

Em Mato Grosso, ao menos por ora, as queimadas estão concentradas no município de Poconé, na Transpantaneira. A situação é mais preocupante em Mato Grosso do Sul, onde os focos de incêndios estão localizados majoritariamente na Serra do Amolar, em Corumbá, e em Nhecolândia. O Rio Paraguai, que corta todo o Pantanal, não está enchendo mais, então a vegetação que antes ficava submersa acumula matéria seca, favorecendo a propagação das chamas. As queimadas só não estão piores porque uma frente fria passou pela região no início deste mês e deu uma trégua nas chamas. Tão logo parou de chover, o fogo voltou a castigar.

“Boa parte das chamas foi controlada, mas muitos focos estão voltando e se espalhando novamente. A gente estava vendo 100 mil hectares por dia sendo queimados e, com a chuva, teve uma melhora momentânea. Agora, é concentrar esforços no rescaldo dessas áreas que foram apagadas para garantir que elas não vão reacender”, explica Gustavo Figueiroa, do SOS Pantanal, entidade que conta com brigadistas no combate aos incêndios. “Aquela chuva que caiu no Rio Grande do Sul era para ter passado pelo Pantanal, mas uma massa de ar seco gigante no meio do País bloqueou e impediu essa frente fria de entrar pelo Centro-Oeste”, completa.

Segundo o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, a seca prolongada no Pantanal é resultado da crise climática, agravada pelo desmatamento no Sul da Amazônia e nas cabeceiras do Rio Paraguai. “Como o Pantanal não enche mais, o pessoal está querendo cultivar dentro da área e, por isso, tem feito o desmatamento, que antes era mais na Amazônia e no Cerrado. A gente, inclusive, detectou incêndios criminosos para fazer desmatamento no Pantanal”, explica. Em setembro, o Ministério do Meio Ambiente deve lançar o Plano Nacional de Combate ao Desmatamento no Pantanal, mesmo período que promete entregar planos similares voltados para o Pampa, a Mata Atlântica e a Caatinga. No ano passado, o governo já havia publicado os planos contra a devastação na Amazônia e no Cerrado.

Recursos. O governo federal destinou 137 milhões de reais para combater as queimadas no Pantanal, diz Agostinho – Imagem: Valter Campanato/ABR

Há poucas semanas, o governo conseguiu aprovar no Congresso a Lei de Manejo Integrado do Fogo e três Medidas Provisórias voltadas para o combate às queimadas no Pantanal. “Ela institui uma política nacional de manejo do fogo, criando uma estrutura de governança para monitorar as queimadas”, explica Agostinho, acrescentando que o governo federal destinou 137 milhões de reais para o combate aos incêndios no Pantanal.

Até o momento, já foram identificados 90 focos de incêndio na região pantaneira, provocados principalmente pela ação do homem, seja intencional ou não. São muitas as origens do fogo, desde uma simples fogueira para queimar lixo ou material vegetal, passando pelo fogo utilizado na coleta de mel, até ações criminosas ou mesmo acidentes, como o ocorrido em junho, quando um caminhão pegou fogo e as chamas se propagaram por uma vasta extensão territorial. “Em 15 de julho, a gente tinha conseguido controlar 100% dos incêndios. Aí teve esse acidente e o incêndio espalhou-se por toda a região de Nhecolândia, uma área muito sensível”, destaca Agostinho. Também são muito comuns queimadas no Pantanal provocadas pela queda de raios, embora não existam registros recentes de tempestades com raios.

A proporção que o fogo está tomando este ano só não é pior que os incêndios de 2020, considerados os maiores da série histórica, com 3,9 milhões de hectares queimados, o equivalente a um quarto do Pantanal. “A resposta tem sido melhor que em anos anteriores. Em junho, quando as chamas ainda não tinham alcançado 500 mil hectares, já se viam ações do governo federal. Há quatro anos, só quando o índice estava batendo em 2 milhões de hectares queimados, por conta da pressão externa e porque não tinha mais como negar o que estava acontecendo, é que a gestão Bolsonaro começou a se mexer. Espero que este ano não supere 2020, até porque a gente tem visto a mobilização do Poder Público e da sociedade civil, está muito mais ágil”, destaca Figueiroa.

A seca é agravada pelo desmatamento no Sul da Amazônia e nas cabeceiras do Rio Paraguai, alerta o presidente do Ibama

Segundo Barreto, os incêndios deixaram um saldo de 17 mil animais mortos em 2020. Por onde o fogo passou houve perdas genéticas e populacionais de animais, os quais acabam passando por um processo de readaptação, em um ambiente que não é naturalmente deles. “A gente sabe que o fogo é algo que está presente no Pantanal, faz parte da composição do bioma. No entanto, os recorrentes incêndios de grande magnitude não estão permitindo uma readaptação da fauna. Morrem muitos animais e não dá tempo de o bioma se restabelecer com o nascimento de animais no mesmo ritmo.”

Neste ano, ainda não dá para estimar a quantidade de animais carbonizados e, devido à proporção dos incêndios, muitos nem sequer vão entrar nas estatísticas. A morte de três onças-pintadas, um adulto e dois filhotes, despertou, porém, um sinal de alerta. Em 2020, não foi registrada a morte de nenhuma onça, um animal sagaz, habituado a fugir do fogo. “Se as onças, que são animais com grande capacidade de correr, nadar e escalar árvores, estão sendo afetadas, a gente entende que todos os outros são impactados de forma muito mais brusca”, salienta Barreto. Segundo Agostinho, até agora foram resgatados 564 animais da região do fogo.

A Secretaria de Meio Ambiente ­(Sema) de Mato Grosso está monitorando as condições da fauna no estado, mas nega a gravidade da situação, alegando que, por enquanto, está tudo dentro da normalidade. “A gente percebe que a vida continua no Pantanal, apesar da seca. Os animais têm se reproduzido, estão saudáveis. A gente não nega a seca, a falta de chuvas, a falta de uma cheia volumosa na planície pantaneira, mas o nosso bioma é resiliente. A tendência é de que, cessando este período de seca severa, o Pantanal vai se recuperar”, diz Waldo Troy, gerente de fauna silvestre da Sema. “Até o momento, não vemos necessidade de interferência. Lógico que isso pode mudar, porque o pico de seca vai ser em setembro ou outubro. Mas a gente está vendo os animais com escore corporal bom, com alimentação, saudáveis”, completa a médica-veterinária ­Caroline Machado. •

Publicado na edição n° 1324 de CartaCapital, em 21 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pantanal em chamas ‘

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Última Atualização: 15/08/2024