O artigo apocalítico “Um novo período histórico”, de Valério Arcary, publicado no Brasil 247 nesta quarta-feira (5) é uma pilha interminável de imprecisões e falsificações da realidade. No entanto, a confusão que se instala ali não é sem propósito; seu objetivo, não declarado, é convencer a esquerda a servir de linha auxiliar no projeto imperialista do “combate ao fascismo”. Em outras palavas, o novo período histórico de Arcary nada mais é que a velha e surrada colaboração de classes.
Arcary divide seu texto em quatro tópicos, que destacaremos individualmente; mas iniciemos analisando o olho que diz o seguinte: “Os EUA sob Trump estão com uma nova estratégia de preservação da hegemonia no sistema internacional de Estados. Trata-se de uma contra-ofensiva brutal”. Como se vê, é reforçado um clima de perigo que coincide com a subida de Trump a seu segundo mandato na presidência dos Estados Unidos, a mesma abordagem que encontramos em toda a grande imprensa, que é controlada pelo imperialismo.
Joe Biden, que sucedeu Trump e foi agora derrotado, iniciou uma ofensiva contra a China incitando a separação de Taiuan, promovendo alianças militares com Austrália, Japão, Índia e Reino Unido na região que costumam chamar de Indo-Pacífico para ameaçar os chineses e a Coreia do Norte.
Biden empregou bilhões de dólares na Ucrânia contra a Rússia, foi parceiro de “Israel” que despejou mais de 100 mil toneladas de bombas sobre Gaza e promoveu inúmeros ataques criminosos contra o Irã, Síria e Líbano. Sua administração colocou o mundo a um passo de uma Terceira Guerra, no entanto, para Valério Arcary, é somente agora presenciamos uma ‘contra-ofensiva brutal’.
Trump quer encerrar a guerra na Ucrânia, desmantelou a USAID, um organismo que promove pelo mundo golpes de Estado, espionagem, sabotagem, e toda sorte de crimes sob o disfarce de ajuda humanitária. Onde está a brutalidade, nas “ameaças” de anexação do Canadá, Groenlândia etc? O que importa é o que se faz, não o que se diz; e, até o momento, comparado a Joe Biden, Donald Trump está mais para monge franciscano.
1. Ponto de virada
Valério Arcary inicia seu primeiro tópico dizendo que “a etapa internacional aberta em 1989/91, quando da derrota histórica da restauração capitalista na ex-URSS, se encerrou. Estamos em um novo período histórico”. Não por acaso, Arcary parece ter emprestado alguns conceitos de Francis Fukuyama, o inventor do “fim da história” que, como é fácil constatar, não acabou.
Todo o trecho é um amontoado confuso de “mundialização da circulação livre de capitais e mercadorias”, ONU, “mini boom com Clinton”, “boom com Bush”, “custos de transição energética”, “descarbonização”, “saltos qualitativos de nanotecnologias” etc.
Arcary deveria ter recuado no tempo em vez de colar em Fukuyama se quisesse mesmo falar de um “um novo período”, pois tivemos, por exemplo, a derrota americana no Vietnã e a subsequente crise do petróleo no início dos anos 1970.
Na década seguinte, Margaret Thatcher sobe ao poder no Reino Unido e Ronald Regan nos EUA, marcando a ofensiva neoliberal, uma medida para tentar conter a crise no imperialismo, que vem se aprofundando ano a ano.
A incompreensão dos efeitos do neoliberalismo, da financeirização desenfreada da economia, e da decorrente divisão na burguesia americana, impede que Arcary faça uma correta avaliação política dos acontecimentos. É por isso que frases como “A orientação de Trump e de seus aliados da extrema-direita pelo mundo afora é uma ruptura ou um giro” não fazem sentido, servem apenas para gerar confusão.
2. Arcary x Realidade
O segundo tópico do texto começa com uma piada muito engraçada que diz assim: “O episódio ruidoso de abuso de poder de Trump na Casa Branca contra Zelensky confirma que estamos em outra etapa na situação mundial”. Arcary foge de duas questões fundamentais implícitas nessa frase: 1) A guerra é entre EUA/OTAN contra a Rússia, como dissemos desde o começo; 2) Trump quer acabar com a guerra.
Valério Arcary denuncia Trump dizendo que “há poucas semanas já tínhamos assistido perplexos e aterrorizados a defesa explícita de limpeza étnica palestina na Faixa de Gaza, com apoio às lideranças mais fascistas dentro da coalizão de governo chefiada por Netanyahu”. Porém, deixa de lado que foi Biden que forneceu dinheiro, bombas, soldados e apoio logístico para os sionistas cometerem seus crimes contra os palestinos, e foi o governo atual que estabeleceu o cessar-fogo. Vão nos acusar de estarmos apoiando Trump, no entanto, fatos são fatos.
No texto lemos que “Washington [Trump] não está disposto a manter, indefinidamente, apoio a uma guerra sem solução militar, a não ser um envolvimento total cujo desenlace teria que ser uma aposta na derrubada de Putin. Isso seria arriscar uma guerra atômica, uma aposta suicida”. E não tira daí as conclusões políticas.
Trump e o imperialismo não são a mesma coisa. O primeiro representa uma ala da burguesia americana, a do grande capital doméstico em choque com o grande capital internacional, pois está empobrecendo com o desvio das riquezas para o capital financeiro; enquanto o imperialismo está, sim, disposto a uma guerra atômica, basta ver as recentes ameaças de Macron e o anúncio de bilhões em armamentos anunciados pelos principais países da União Europeia.
3. O “imperialismo regional”
Em seu terceiro tópico, Arcary repete a falácia de sempre: “A Rússia se consolidou como um estado imperialista que ambiciona manter influência regional”. Se fosse marxista, Valério Arcary teria percebido a contradição em sua afirmação, pois se quem ambiciona ser uma influência regional, não pode ser, ao mesmo tempo, imperialista.
A operação militar da Rússia na Ucrânia foi uma resposta defensiva à expansão da OTAN, o braço armado do imperialismo. E Arcary, como toda a imprensa burguesa faz, aproveitou para também criticar o Irã, outro inimigo do imperialismo, que nas palavras ‘dele’ seria apenas um “regime ditatorial do aparelho religioso-militar”.
Coroando o final dessa seção, depois de Biden praticamente iniciar uma guerra nuclear, Arcary conclui que “O mundo ficou muito mais perigoso do que foi nos últimos trinta e cinco anos”.
4. Trump, o bruto
Na última parte, Arcary diz que o atual governo americano seria “uma contra-ofensiva brutal de longa duração. Quem a subestimar cometerá um erro irreparável”. Depois, que “outro giro da situação mundial é que o perigo de regimes autoritários é iminente e real”. Todo esse alarmismo no meio de uma série de imprecisões, e até invenções, do que teria ocorrido na China, termina dizendo que “o tempo não corre a nosso favor. Mais do que nunca, devíamos estar com pressa”. Pressa de quê? De nos unirmos às democracias (EUA, França, Reino Unido, Alemanha) contra o fascismo.
Nesta etapa mundial, quando a crise aguda do imperialismo coloca o mundo em uma situação pré-revolucionária, com países no mundo se rebelando à dominação, vem Valério Arcary propondo que nos unamos na defesa de uma democracia abstrata contra o fascismo. Omitindo que os democratas estão censurando, promovendo golpes de Estado, iniciado guerras.
Arcary é porta-voz de uma política abertamente contrarrevolucionária e de colaboração de classes. Quer que os trabalhadores auxiliem seu pior inimigo, o imperialismo. Trata-se de um golpe, pois o fascismo e a democracia burguesa não estão necessariamente em contradição.
A ameaça fascista neste momento é apenas um espantalho, um bicho-papão, que se utiliza para enganar a esquerda. E aqueles que tentam arrastar os trabalhadores para a política imperialista são igualmente inimigos da classe trabalhadora.