O novo momento para o planejamento dos dados
por Marcio Pochmann
A relação entre estatística e Estado moderno é profunda e estrutural. Contar, medir e classificar nunca foi um ato neutro, constituindo a forma pela qual o poder e condição do exercício da governança do território e população se estabelece. No Brasil, essa relação atravessa períodos distintos — do Império ao regime militar, da redemocratização ao marco digital contemporâneo interpenetrados por ciclos de modernização estatal, padrões de desenvolvimento e mudanças tecnológicas globais.
Nesta passagem para o segundo quarto do século 21, o Brasil vive um momento singular que aponta para a reconstrução das capacidades do Estado possível. A partir da erosão do regime neoliberal, a recentralidade necessária da governança dos dados e a imposição da soberania pública sobre as plataformas privadas constitui a base fundamental para a retomada do planejamento no país.
O sistema estatístico e geográfico nacional torna-se, nesse sentido, o pilar estratégico da reorganização do planejamento com o fortalecimento da democracia e do enfrentamento decisivo das desigualdades estruturais. Esse foi o eixo motivador que mobilizou servidores públicos durante a realização da maior Conferência Nacional de diálogos com produtores e usuários de dados no Brasil entre os dias 3 e 5 de dezembro na cidade de Salvador. Um exemplo concreto da participação democrática da superação possível do passado autoritário do sistema estatístico e geográfico brasileiro.
A trajetória autoritária do Sistema Estatístico e Geográfico Nacional
O Sistema Estatístico e Geográfico oficial brasileiro tem raízes no período imperial, quando o país, inspirado pelas conferências estatísticas internacionais e pelo modelo institucional europeu, iniciou a organização sistemática da produção pública de informações oficiais. A lógica autoritária era clara: a organização das informações sobre população, território e economia era essencial para consolidar o Estado nacional durante uma sociedade agrária atrasada e assentada na escravidão. Em 1871, por exemplo, surgiu a Diretoria-Geral de Estatística vinculada à Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Império responsável até 1930 pela realização dos censos demográficos e trabalhos estatísticos na época.
Esse processo ganhou impulso decisivo com a Revolução de 1930 a partir da criação do Instituto Nacional de Estatística, em 1934, e a sua transformação no IBGE no ano de 1938 diretamente vinculado à presidência da República. Como fundamento do planejamento da transição do longevo agrarismo para a nova sociedade urbana e industrial, a consolidação institucional do moderno Sistema Estatísticas e Geográfico Nacional somente terminou ocorrendo sob os auspícios do autoritarismo prevalecente no Estado Novo (1937-1945).
A partir da década de 1950, a transição da antiga e primitiva sociedade agrária para a urbana e industrial se afirmou em pleno acirramento da Guerra Fria (1947-1991) com a emergência do novo e importante movimento de massas em torno da defesa democrática das Reformas de Base no governo do presidente João Goulart (1961-1964). O Golpe de Estado em 1964 foi acompanhado da transformação autoritária do IBGE com prisões, afastamentos de servidores e a perda do regime de trabalho da estabilidade, ao mesmo tempo que deixou de estar vinculado diretamente à presidência da República.
A transferência do IBGE para a linha ministerial, equivalente a experiência antiga da Diretoria-Geral de Estatística, aconteceu materializada simultaneamente tanto por sua alteração institucional de autarquia para fundação pública como pela aniquilação da faculdade interpretativa dos seus servidores da própria produção científica. Com isso, o perfil dos servidores identificados como intelectuais pela capacidade de compreensão do Brasil foi remodelado pela onda da tecnocratização super qualificada.
A compensação imposta pelo Estado autoritário ocorreu com o surgimento do Instituto de Pesquisa Aplicada que a partir de 1964 passou a ser o intérprete oficial da produção científica gerada pelo IBGE. Em grande medida atendeu aos propósitos da Aliança para o Progresso lançado pelos Estados Unidos desde o início da década de 1960 para conter o avanço do comunismo após a Revolução Cubana, em 1959.
Naquele contexto global ocorreu o importante aprofundamento da modernização estatística e geográfica do IBGE a partir da internalização de parte de metodologias científicas oriundas dos Estados Unidos. Desde 1967, o Instituto passou a desenvolver pesquisas amostrais como a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios, os índices de preços no final da década de 1970 e o aprimoramento das Contas Nacionais que apuram o Produto Interno Bruto iniciado ainda no começo dos anos de 1980.
Nesse sentido destaca-se a importância do Projeto Atlântico que constituiu o braço mais operativo mais amplo da Aliança para o Progresso. Por meio de diversas missões técnicas aos Estados Unidos avançaram diversas cooperações técnicas e universitárias com a formação de especialistas brasileiros nos centros avançados de estatística, geografia, economia e planejamento no Census Bureau, Bureau of Labor Statistics e Universidades de Michigan, Stanford e Wisconsin, além da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID)
A modernização democrática do Sistema Estatístico e Geográfico Nacional
De forma democrática, transparente e participativa, o Brasil avança no presente a modernização democrática do seu Sistema Estatístico e Geográfico robusto, cada vez mais alinhado às melhores práticas internacionais e às demandas de planejamento do Estado brasileiro. Isso porque, o Brasil chegou ao início da década de 2020 tendo percorrido um brutal ciclo de enfraquecimento e instabilidade institucional.
Somente entre os anos de 2016 a 2023, por exemplo, o IBGE registrou, por exemplo, cinco presidentes em apenas sete anos, cujo mandado médio foi de apenas 1,4 anos de duração. Sem concursos público para renovação dos seus servidores, a ausência de reajustes nas remunerações e a queda orçamentária que congelou estudos e pesquisas apontava para o desmanche da maior e mais importante instituição de pesquisa pública do Brasil.
Desde o ano de 2023, contudo, encontra-se em curso o reforço inédito do Sistema Estatístico e Geográfico Nacional. Uma condição fundante da reconstrução do Estado social e de planejamento. A disputa entre o Estado nacional e as big techs da atualidade exige novas políticas de soberania informacional, proteção de dados e regulação das plataformas.
Ao contrário dos períodos autoritários anteriores, a transformação digital ocorre com no Brasil com ampla e democrática participação social por meio de conferências nacionais, encontros de servidores e diversos mecanismos de escuta e transparência. Por isso, este terceiro grande ciclo transformador do Sistema Estatístico e Geográfico Nacional surgido do período agrarista Imperial–Republicano que concedeu a sua formação incipiente e de inspiração europeia, passando pela sociedade urbana e industrial de consolidação e modernização autoritária tanto no Estado Novo como na Ditadura Civil Militar, chega-se ao novo modelo em curso digital–democrático sob a soberania informacional, a governança participativa e a disputa com plataformas privadas globais.
Pela construção do Plano Geral de Informações Estatísticas e Geográficas para o período de 2026 a 2030, o IBGE consagra pela primeira vez de forma democrática e participativa o planejamento da produção oficial e soberana dos dados nacionais. Antes disso, somente em 1974 havia ocorrido o planejamento da produção estatística e geográfica sob o manto da modernização tecnocrática e profundamente autoritária.
Referências
DESROSIÈRES, A. The Politics of Large Numbers: A History of Statistical Reasoning. Cambridge: HUP, 1998.
POCHMANN, M. O próximo Brasil: um olhar a partir das estatísticas. São Paulo: Ideias & Letras, 2025.
PORTER, T. Trust in Numbers. Princeton: PUP, 1995.
SENRA, N. História das Estatísticas Brasileiras. Rio de Janeiro: IBGE, 2006.
SOARES, L. O Império das Estatísticas. Rio de Janeiro: Revan, 1998. Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor de mais de 70 livros, entre eles,Declínio da vida em sociedade e o Brasil no início do século XXI(Ideias & Letras) e Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Ed. Unicamp).
Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor de mais de 70 livros, entre eles, Declínio da vida em sociedade e o Brasil no início do século XXI (Ideias & Letras) e Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Ed. Unicamp).
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: https://www.catarse.me/JORNALGGN “