O neostalinismo, nostalgia e o realismo capitalista
“É mais fácil imaginar um socialismo burocrático, autoritário e moralista do que um socialismo libertário”

Em 2023, publiquei um ensaio com o mesmo título na revista Marx e o Marxismo do NIEP-UFF. O texto surgiu de um ímpeto de indignação que me foi provocado ao navegar pela internet. Viajando por vídeos no Youtube me deparei com Ian Neves falando sobre o realismo capitalista. Até ali, considerei o vídeo superficial, mas de caráter introdutório ao pensamento de Mark Fisher, cumpria um papel pedagógico. Porém, os próximos vídeos do Youtuber que se sucederam pelos algoritmos de recomendação me mostraram uma faceta completamente oposta à teoria de Fisher. Tinha caído em um clickbait. De duas uma: Ou Ian não via contradição entre suas ideias e as de Fisher OU fazia uso instrumental do seu pensamento para alimentar seus próprios interesses. Em outras palavras, estava “surfando na onda” da popularidade que a edição brasileira do livro obteve com seu lançamento.

Se a indignação foi a gasolina para criar o texto, o processo de investigação para a escrita me levou para alguns pontos mais complexos sobre a performatividade dos Youtubers de esquerda nas empresas digitais. Desde 2012, é crescente o discurso que a esquerda não sabe utilizar as redes sociais, apesar de ter minhas questões com tal afirmação, decidi então observar dois “casos de sucesso”: Ian Neves e Jones Manoel. O primeiro ponto que me chamou a atenção dos dois personagens é que ambos compartilham de uma linha geral ideológica similar, na qual, defino como neostalinismo. Podemos caracterizar o neostalinismo como uma tentativa de revisão histórica e repaginada “clean”, “moderna”, das práticas associadas a tal tradição política.1

Apesar dos stalinistas viverem em negação de se assumirem como tais, é nítido em suas ações e práticas certas confluências, em especial, de difamação e perseguição ao pensamento trotskista. No caso de Ian Neves, em seu canal da Twitch e Youtube chamado História Pública, foi realizada uma live chamada “O que é leninismo? Trotskismo é leninista?”2. O vídeo se resume a ser uma propaganda anti-trotskista, resgatando argumentos datados da disputa do termo Marxismo-Leninismo como oposição à tradição trotskista. Enquanto Jones Manoel coleciona exemplos de vídeos que tentam trabalhar a oposição Trotsky x Stálin como falsas polêmicas, contudo sempre concluindo a favor do Stalinismo.3

Sem dúvida, ambos carregam suas diferenças individuais, mas defendo no ensaio que ambos estão imersos em uma dinâmica estrutural do realismo capitalista performado nas dinâmicas de plataformização que estimula, justamente, as piores características de tal viés ideológico. O de caça, difamação, raiva, agressividade, “cancelamento”, agressões de “manada”, entoando frases como “Stálin matou pouco” ou piada com picaretas, seja em ambiente virtual ou físico, ou seja, uma parcela do neostalinismo, especialmente o setor da juventude, age de maneira similar aos setores da alt-right em fóruns como o 4chan e Reddit. O “zumbi ideológico” do neostalinismo encontra alimento para se reproduzir nas estruturas algorítmicas que estimulam tal fruição.

De maneira resumida, “existe uma forma estética e de comportamento que é valorizado nas empresas digitais (redes sociais) para conseguir alcance de público. A extrema-direita contemporânea abusou de tais ferramentas para propagar e arrebanhar seguidores […] estava nascendo o Sujeito Ressentido” (Landarini, 2023). Dentro deste cenário, Ian Neves se dedicou a produzir longos vídeos de como o “trotskismo deve ser combatido”. Nestes vídeos, Ian profere frases como “para o trotskista todo mundo é burro menos ele”, “o trotskismo é pseudomarxista, ultrarevolucionário e esquerdista”, “todo trotskista tem como linha combater Stálin” – frase dita pela pessoa que dedicou a uma hora de vídeo para difamar o marxismo-leninismo de viés trotskista sob um argumento “científico histórico”.

Mas não só isso, segundo ele, o movimento estudantil trotskista utiliza de “coletivos de música” para atrair calouros e que as universidades estão infestadas de trotskistas, conteúdo argumentativo semelhante é utilizada por figuras da direita, como o Lobão4. Logo, o Sujeito Ressentido é acolhido pela dinâmica que as empresas digitais oferecem, principalmente por estimular tais discursos. Forma-se, então, o troll neostalinista.

Porém, não só as estruturas das empresas digitais criam este monstro, há também outro elemento: o realismo capitalista. A contradição de figuras como Ian e Jones falarem sobre este conceito, parte da própria definição que Fisher faz da sua proposta:

O termo Realismo Capitalista é inspirado na versão paródica de Realismo Socialista, mais conhecido como Socialismo Real, só que aplicada ao neoliberalismo após a morte deste último com a queda do muro de Berlim. Ou seja, “O ‘realismo’ […] é análogo à perspectiva deflacionária de um depressivo, que acredita que qualquer estado positivo, qualquer esperança, é uma perigosa ilusão” (FISHER, 2020, p. 14). Para Fisher (2020), “trata-se mais de uma atmosfera penetrante, que condiciona não apenas a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação – agindo como uma espécie de barreira invisível, limitando o pensamento e a ação” (FISHER, 2020, p. 33). (Landarini, 2023)

Jones Manoel, em seu vídeo sobre o realismo capitalista, utiliza o exemplo das eleições de São Paulo de 2020.5 Segundo ele, os candidatos de direita trataram Boulos como “algo radical, utópico, irrealizável”, enquanto Covas era “realista e sensato”. Isso evidenciaria o discurso do realismo capitalista. Apesar de pobre, essa definição sobre o conceito não está errada. Porém, em outro vídeo do seu canal,6 onde se pôs a criticar a postura ecossocialista de Michel Lowy, Jones utiliza da mesma ferramenta argumentativa realista da direita: “eu gostaria, mas não é assim que é o mundo”. Enquanto Ian como vítima do realismo capitalista, chega ao nível de defender o “centralismo teórico”, ao ponto de criticar o centralismo democrático do PCB, algo que nem Jones compactua.7

A instabilidade, insegurança material e social que o realismo capitalista provoca nos sujeitos é a atmosfera que envolve as estruturas algorítmicas das empresas digitais onde estes sujeitos performam sua forma de ser de esquerda. Nesse sentido, encontram a nostalgia como o sentimento companheiro para se proteger das agruras da vida, alimentando o zumbi stalinista através das empresas digitais capitalistas. E a maior vítima nesse processo todo é a juventude.

Pois, “[….] uma geração que já nasceu nesta cultura pontilhada, a-histórica e anti-mnemônica – uma geração para a qual o tempo, desde sempre, veio cortado e embalado em micro fatias digitais” (FISHER, 2020, p. 48) precisa encontrar segurança em algum lugar para conseguir criticar o capitalismo, e é muito mais fácil encontrar na fantasia do Socialismo Real.8 A dinâmica da internet ama, fetichiza e alimenta a estética de prisão no século XX, é o Vaporwave, é o meme “reject modernity, embrace tradition”, etc. Se criam espaços de afetação nostálgica para transportar sujeitos a lugares de segurança emocional a fim de conseguirem lidar com a instabilidade da vida cotidiana. É neste cenário que Jones Manoel e Ian Neves se tornam pseudo relevantes para uma parte da juventude de esquerda ao performar um passado idealizado da URSS.

O problema é que “[…] a nostalgia pelo contexto em que os velhos tipos de práxis podiam operar é simplesmente inútil” (FISHER, 2020, p. 50). Mas como ela é imaginada, embelezada e reduzida em sua complexidade, nos memes, nas palavras de ordem e nos clichês dos discursos, torna-se conveniente para os sujeitos escolherem tal caminho, sem nenhum processo autocrítico. (Landarini, 2023)

Segundo Svetlana Boym (2017) há duas formas de nostalgia aplicada ao presente: a restauradora e a reflexiva. A primeira se associa à ideia de conservação de um status quo, de retomada a um passado idealizado, encontrada nos grupos alt-right e no neoconservadorismo aliado ao neoliberalismo. Já a segunda, a nostalgia reflexiva, pode ser usada como um motor para o futuro, pois ela não “finge reconstruir um lugar mítico chamado lar” (BOYM, 2017. Pág. 160). Os neostalinistas como fruto do realismo capitalista têm muita dificuldade em tornar sua nostalgia um ato reflexivo, ou seja, de mudança futura. Pois estão presos nas redes de performatividade digital de reencenação de um passado idealizado. E quando propõe o futuro é submetido aos interesses campistas do imperialismo russo de Putin ou da defesa tecnológica dos bilionários chineses.

Por fim, recomendo a leitura do ensaio completo para os detalhes dos casos e da argumentação. De maneira geral, minha ambição foi situar o discurso de dois influencers da esfera digital da esquerda brasileira como fruto do espectro realista capitalista. Há uma contradição em utilizar deste conceito por parte destes influencers, pois sua performatividade digital reproduz a linha teórica neostalinista. Ou seja, as empresas digitais e seus algoritmos constroem um campo propício para encenar nostalgicamente o stalinismo, o que por sua vez, proporciona segurança em sujeitos vítimas da instabilidade e fragmentação da vida no neoliberalismo. Mas essa segurança é uma barreira, que estimula o “cancelamento do futuro”, para uma parcela da juventude da esquerda brasileira, impossibilitando-a de ser capaz de imaginar outras formas de construir a vida.

Sidarta Landarini é antropólogo, professor na UFRJ e militante da Rebelião Ecossocialista – PSOL.

Referências
BOYM, S. Mal-estar na Nostalgia. Revista hist. historiogr. Ouro Preto. n. 23. abril. p. 153-165. 2017
FISHER, Mark. “Realismo Capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?” Autonomia Literária. São Paulo. 2020.
LANDARINI, Sidarta . O neostalinismo, nostalgia e o realismo capitalista. Marx e o Marxismo , v. 11, p. 114-124, 2023.

1 CHAGAS, Juary. O (neo)stalinismo no Brasil contemporâneo: revisionismo teórico, apagamento da história e deformações metodológicas – Esquerda Online Publicado 23 nov. 2019 Teoria. Disponível em: <https://esquerdaonline.com.br/2019/11/23/o-neostalinismo-no-brasil-contemporaneo-revisionismo-teorico-apagamento-da-historia-e-deformacoes-metodologicas/> Acesso em: 14 jun. 22.

2 História Pública. O que é Leninismo? Trotskismo é “Leninista”? (part. Froggy). Youtube, 08 nov. 2021. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=mn8TeY-rMoI&t=623s&ab_channel=Hist%C3%B3riaP%C3%BAblica >. Acesso em: 14 jun. 22. E recomendo assistir ao “react” do canal Orientação Marxista, encontrado aqui: <HISTÓRIA PÚBLICA: MENCHEVIQUES, LÊNIN E TROTSKY | REAGINDO EP #176> e aqui: <HISTÓRIA PÚBLICA: Leninismo e trotskismo. A NEP | REAGINDO EP #175>

3 Jones Manoel. Revolução permanente ou socialismo num só país? 80 anos de uma falsa polêmica. Youtube, 03 mar. 2020. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=IBww6F2z3RE&ab_channel=JonesManoel>. Acesso em: 14 jun. 22.

E uma excelente resposta ou “react”: Orientação Marxista. JONES MANOEL ensina como falsificar a história EP #38. Youtube, 11 abr. 2020. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=qrdYCleezMA&ab_channel=Orienta%C3%A7%C3%A3oMarxista>. Acesso em: 14 jun. 22.

4 Cortes do História Pública. COMO ME TORNEI COMUNISTA | Cortes do História Pública. Youtube. 25 Jun 2002 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9PM8ewmunD4&t=1220s&ab_channel=CortesdoHist%C3%B3riaP%C3%BAblica> Acesso em 02 jul 2022.

5 Jones Manoel. Capitalismo, medo e dominação. Youtube. 13 dez 20. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OuZxXTOfqkQ Acesso em 28 jun 25.

6 Jones Manoel. A ecologia na União Soviética Biblioteca Crítica 08. Youtube. 9 dez 21. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eFc0NmBmH8M Acesso em 28 jun 25.

7 Disponível em <https://twitter.com/jonesmanoel_PCB/status/1551332180026134529> acesso em: 26 jul 22.

8 “Por um lado, é uma cultura que privilegia apenas o presente e o imediato – a extirpação do ‘longo prazo’ se estende no tempo tanto para frente quanto para trás […] por outro, é uma cultura excessivamente nostálgica, propensa à retrospectiva, incapaz de gerar novidades autênticas.” (FISHER, 2020. p. 99).

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Last Update: 04/07/2025