O peso amargo de perder uma luta
O choro de uma mãe a favela toda escuta
Nas cores do Brasil tá faltando uma cor
Vermelho, que era do sangue do morador
O Estado tava só fazendo o seu trabalho
Matando um inocente lá no Santo Amaro
Depois cês vão falar que o problema sou eu
Mas as almas que aqui tem foi vocês que vendeu
(Manifesto #1 – A Rua Cercada Por Divisão Real Fubá, part. Oruam e MC Poze do Rodo)
No livro “O negro: de bom escravo a mau cidadão?”, Clóvis Moura identifica que a mesma burguesia branca que criou uma narrativa idílica sobre a escravidão como sendo branda, de senhores benevolentes e escravos passivos, do “Pai João” e da “Mãe Preta”. Foi a mesma burguesia que, no pós-abolição, construiu a imagem do “Negro” como um ser perigoso, desequilibrado um mau cidadão. Ambos os conceitos, o de bom escravo e o do mau cidadão, são mitológicos, mas ajudam a entender a prisão do MC Oruam e as perseguições ao Mc Poze do Rodo.
Quem acha que o Oruam foi preso porque é filho de Marcinho VP, e o Poze porque é faccionado, está redondamente enganado. A manutenção do tráfico é uma necessidade da burguesia, porque ajuda a desorganizar os trabalhadores. O tráfico não quer treta com a polícia, quer estabilidade para gerir seus negócios. A questão é muito mais profunda que parece ser.
Essa burguesia, sabe que negro favelado não é sinônimo de criminoso, nem mesmo perigoso. O que faz a burguesia temer a juventude e a classe trabalhadora deste país, ambas majoritariamente negras, é a realidade em que estes estão inseridos.
A imagem que ela forjou do Negro é expressão da realidade social, econômica e cultural para onde o empurrou. Oruam e Poze estão metidos de corpo inteiro nisso aí, mesmo que sem qualquer vocação revolucionária. Mas juventude é sinônimo de imprevisibilidade. Se é preta e pobre, eleve isso aí à última potência.
O mar é de sangue e colocar a cabeça para fora em busca de ar está cada vez mais difícil, porém respirar é uma condição humana. O ódio aos negros e aos pobres tem limites e acho que a burguesia pode estar atravessando essa fronteira de raça e de classe. A lógica – não dita, mas cada vez mais explicita – é a seguinte: você é pobre porque você é negro, logo, se não tem como você mudar a sua condição racial, não terá como mudar a sua condição social. No passado seus avós eram escravos porque eram africanos, hoje você é pobre porque é negro, então conforme-se e seja um bom cidadão!
A base dessa naturalização é a meritocracia: se a sociedade é democrática, e você é pobre, então o problema não está na sociedade, está em você. Aceite sua condição e seja um negro resignado, pois assim é melhor para nós, para vocês, para o Estado, para a polícia, em fim, para o Brasil.
Sociedade capitalista
E se as pessoas começarem a entender que essa situação não é produto de condição racial alguma, e sim da forma como esta sociedade capitalista está organizada? Quais conclusões tirarão? Creio que Poze e Oruam sabem que estão sendo perseguidos porque resolveram bater de frente com esse tipo de ideologia e de situação. Nada a ver com um suposto faccionamento, mas porque não assimilaram a ideologia do “Pai João”. Isso que fez soar o alarme.
Durante a escravidão, a realidade objetiva não permitiu que os nossos antepassados construíssem um projeto nacional que pudesse destruir completamente com a escravidão e organizar uma outra ordenação social. Mas hoje essa possibilidade de mudar, não só existe, como é cada vez mais urgente. Essa juventude pode até não ter consciência disso, mas está cada vez mais desejosa por essa mudança. A burguesia, por sua vez, sabe que essa possibilidade é real, mas tenta todos os dias nos convencer do oposto. A luta política ferve também em sua esfera ideológica e essa disputa não é para amadores.
A juventude, ao perceber que o mundo está cada vez mais pesado, canaliza muito dessa percepção para o universo artístico. Às vezes por mero entretenimento, outras no uso da arte como forma de conscientização política ou simplesmente como válvula de escape deste mundo insuportável. Contudo, nem sempre o mais perigoso é a arte mais politizada. A depender do contexto, fechar a válvula de escape de sentimentos humanos reprimidos pode ser bem mais explosivo. Pode ser que a burguesia brasileira esteja cometendo este erro.
Oruam e Poze nem faziam canções batendo de frente com o Estado e a burguesia, mas agora estão fazendo. A realidade impôs isso a eles e a burguesia reagiu colocando os dois em sua alça de mira, como se dissessem: convertam-se em “Pai João” que nós os deixaremos em paz. Por tudo que vi até aqui, acho que não se converterão. A dialética em curso que mescla perigo e medo, repressão e reação.
Tudo será resolvido aqui
No Brasil colonial, o escravo não tinha interesse em disputar a parte das riquezas que ele mesmo produzia, da mercadoria que ele produzia, até porque ele mesmo era uma mercadoria-humana. Por isso, sua reação era fugir mata adentro e organizar quilombos. No máximo organizavam investidas nas senzalas para resgatar seus pares e incinerar a casa do senhor com tudo que tivesse dentro, sem projeto de expropriá-lo. A vida nova e livre estava nos quilombos, distantes da casa grande e das senzalas.
Hoje, por mais que não existam revoltas e mais revoltas estouradas como no período colonial, a época histórica é mais perigosa para a burguesia que para seus antepassados. O trabalhador hoje sabe, minimamente, que ele produz riquezas, ele quer aumentar o salário, quer melhorar sua condição de trabalho, quer reduzir a jornada de trabalho, quer o fim da escala 6×1. E mais, se a favela não é quilombo, ela também não é senzala.
Lamento dizer, mas não há pra onde ir. Tudo será resolvido aqui. Não existe mata para embrenhamento, e a burguesia também sabe disso. E dentro desse cenário, tem aquela juventude que é muito mais perigosa do que qualquer juventude faccionada: a operária, cada vez mais negra, feminina e LGBTIAPN+.
Já disse outras vezes que a burguesia, enquanto classe social, tem consciência histórica. Ela aprende muito mais com a história que os trabalhadores, porque ela é a classe que domina conscientemente a sociedade. Mas há momentos em que ela fica tão envolvida em suas crises que a amnésia política toma-lhe a consciência. Por ora, penso que esqueceram do caso Amarildo, Ana Cláudia, das rebeliões nas obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), das jornadas de junho, dos rolezinhos e das ocupações de escolas. Esqueceram que isso aqui é Brasil e que o “bom escravo” pode estar com os seus dias contados pela própria dinâmica da luta de classes.
Esses jovens do funk e do trap, que polícia e justiça burguesas atacam, tendem a reagir dentro do seu inverso artístico individual, sem compreender as contradições mais abrangentes desse tipo de sociedade e dos próprios ataques que sofrem. Porém, à medida que os ataques vão crescendo, a juventude tende a adquirir uma ideologia mais globalizadora e dinâmica, se aproximando de uma ideologia da classe à qual pertencem. Isso ficou expresso na solidariedade que Oruam e Poze prestaram aos familiares e amigos do jovem morto pela polícia do Rio de Janeiro na comunidade Santo Amaro. Ali eles atravessaram a fronteira permitida pela polícia, pelo Estado e pela indústria cultural. Talvez, sem saber, entraram em rota de colisão com o Estado e sua burguesia racista. Oruam foi preso novamente e pode pegar 18 anos de prisão e Poze teve seus shows nacionais e internacionais cancelados pela gravadora Mainstreet Records, que gerenciava sua carreira.
Luta de classes
Essa passagem de uma posição mais individualizada para outra de nível mais ideológico e abrangente, é qualitativa, mas é também traumática. E aqui não me refiro só aos artistas, mas ao grupo social do qual eles fazem parte. Ela vai cobrar seu preço, o preço da luta de classes. A pergunta é: eles estão todos dispostos a pagar pelo preço dessa ousadia? Eu acho que o público que os segue, sim!
No geral, os grupos que controlam a indústria cultural nunca viram problema algum nas letras de rap, funk, trap ou qualquer outro estilo musical que diminuem e ridicularizam mulheres e pessoas LGBTIAPN+s ou que fazem apologia à violência e às armas. Isso aí é papinho Cinderela!
Oruam e Poze nunca se converteram em problema para a hipócrita burguesia brasileira por suas letras de outrora, simplesmente, nunca! Numa sociedade machista e LGBTfóbica, Oruam e Poze jamais seriam perseguidos por isso, assim como não há perseguições aos artistas sertanejos que fazem apologia a armas e à violência nas festas de rodeio promovidas pelo agronegócio.
A questão aqui é outra, justamente porque a realidade é outra. Uma realidade em que esses artistas, por mais milionários que possam ser, estão espremidos em uma situação-limite que se confunde com a situação-limite de milhões de jovens negros e pobres que os seguem, o que pode implicar uma viragem antissistema, ou não. A verdade, contudo, é que já não se trata mais só de música, crime, polícia e facção. Todo furacão dorme, mas é na calmaria do seus olhos que mora os perigos mais tempestuosos da luta de classes.
Liberdade para MC Oruam!
MC não é bandido!