O Mundo de Trump

por André Moreira Cunha

Ele despiu o país e revelou o terrível segredo por trás do nosso idealismo: dinheiro e corrupção” (Lee Siegel, The New Stateman, “Trump’s America is a gangster’s paradise”)

As Brumas de Mar-a-Lago

Ao término do seu primeiro ano de mandato, em 18 de dezembro de 2017, a administração Trump publicou o documento norteador da sua política de segurança nacional: A New National Security Strategy for a New Era. Diferentemente de seus antecessores, particularmente na era da Pax Americana, Trump não fundamentou suas políticas a partir da perspectiva do internacionalismo liberal e da suposta missão dos Estados Unidos (EUA) em moldar o mundo à sua imagem e semelhança, assumindo que essa incorporaria valores morais universais[1].

Em seu mundo, chineses não precisariam seguir os valores “americanos”; mulçumanos não seriam terra-formados em puritanos recém-saídos do Mayflower ou seus Estados-Nacionais tornar-se-iam laicos; os europeus poderiam considerar o futebol como melhor do que o basebol; ou o Foie gras com trufas, regado a generosos goles de um bom Sauternes, melhor do que umhamburger com refrigerante. Cada país teria o direito de perseguir os grupos populacionais que supostamente prejudicassem seus valores e interesses nacionais, sem constrangimentos externos derivados de normas ou de instituições forâneas.

No campo de golfe em Mar-a-Lago emergem as brumas do século XIX, da competição permanente entre grandes poderes, onde o apelo moral do Direito Internacional não resiste aos estímulos mais atávicos do uso da força, a qual sempre pode ser justificada pela defesa de interesses nacionais projetados para além das respectivas fronteiras. Trump e seus asseclas não se comovem com força da virtude, apenas com a virtude da força. E estão dispostos a exercê-la para expandir o Império, como destacado no recente discurso de posse: “Os Estados Unidos voltarão a considerar-se uma nação em crescimento – uma nação que aumenta a nossa riqueza, expande o nosso território, constrói as nossas cidades, aumenta as nossas expectativas e leva a nossa bandeira para novos e belos horizontes.”

Trump sempre deixou claro que colocar a “América em Primeiro Lugar” não seria algo meramente retórico. Na apresentação de sua política de segurança, ainda em 2017, afirmou que: “Iremos perseguir esta bela visão – um mundo de nações fortes, soberanas e independentes, cada uma com as suas próprias culturas e sonhos, progredindo lado a lado na prosperidade, liberdade e paz … Promoveremos um equilíbrio de poder que favoreça os Estados Unidos, nossos aliados e nossos parceiros.”

Seu desdém pelas instituições multilaterais oficiais, muitas das quais idealizadas e nutridas por seus antecessores, é tão marcante quanto seu desprezo à democracia constitucional estadunidense e seus valores liberais. Assim foi em 2017, assim segue em 2025.

No meio do caminho havia uma China

No último ano do seu primeiro mandato, Trump sintetizou a visão de sua administração sobre a China, seu principal rival estratégico, no “United States Strategic Approach to the People’s Republic of China”. Abandonou-se, de forma clara, a perspectiva de que o Império do Meio poderia se tornar uma democracia liberal por força de seu progresso material. Essa ideia, derivada das teorias da modernização dos anos 1950, supunha haver uma trajetória linear de transformação das sociedades rumo a um padrão considerado universal e superior, o das economias de mercado alicerçadas em democracias constitucionais liberais.

Imaginava-se que o crescimento econômico, por meio de um “choque de capitalismo”, criaria as condições para a derrubada do Partido Comunista da China. Isso não ocorreu. Para a crescente preocupação de Washington, os estrategistas chineses teriam logrado explorar, com tenacidade e eficiência, as oportunidades de avanço econômico e tecnológico derivadas do sistema multilateral aberto, originalmente engendrado para beneficiar os interesses estadunidenses.  In verbis:

“Desde que os Estados Unidos e a República Popular da China (RPC) estabeleceram relações diplomáticas em 1979, a política dos Estados Unidos em relação à RPC baseou-se em grande parte na esperança de que o aprofundamento do envolvimento estimularia uma abertura econômica e política fundamental na RPC e levaria à sua emergência como uma parte interessada global construtiva e responsável, com uma sociedade mais aberta. Mais de 40 anos depois, tornou-se evidente que esta abordagem subestimou a vontade do Partido Comunista Chinês (PCC) de restringir o âmbito da reforma económica e política na China. (United States Strategic Approach to the People’s Republic of China, p.1, grifos nossos)

O novo consenso sobre a China converge com a visão trumpiana sobre a necessidade de pressionar Pequim. A “guerra comercial”, iniciada em seu primeiro mandato, não foi descontinuada por Biden. Pelo contrário. Nem mesmo as profundas divisões políticas impediram a aprovação, por ampla maioria de votos bipartidários, de políticas para revigorar a infraestrutura e os setores de alta tecnologia, como o Infrastructure Law (2021) e o “Chips and Science Act” (2022), ou limitar o acesso de empresas chinesas a insumos tecnológicos, financiamento, pesquisas de fronteira científica etc. Os relatórios anuais do Comissão do Congresso dos EUA, que tratam de temas de Securitários e Econômicos bilaterais, detalham a amplitude das medidas já tomadas.

Ao assumir seu segundo mandato, Trump se defronta com a dura realidade de que os esforços para conter a potência asiática não foram tão bem-sucedidos quanto se poderia depreender da retórica de seu establishment. Figuras proeminentes, como Elon Musk, foram forçadas a reconhecer a superioridade chinesa em áreas estratégicas, como na produção de veículos elétricos. Diante do avanço chinês, restou pedir “proteção tarifária”.

Em poucos dias no novo mandato, Trump se deparou com o “momento DeepSeek”, que chacoalhou a Nasdaq e reduziu o valor de mercado das Big Techs em US$ 1 trilhão em apenas um dia. Os avanços em Inteligência Artificial de um emergente laboratório chinês abalaram os mercados, mostrando a capacidade de inovação dos orientais, a despeito das medidas de restrição de acesso aos microprocessadores de última geração.

O sucesso do Sistema Nacional de Inovações da China já era conhecido, como atestam análises da Unctad, da McKinsey, do ITIF (The Information Technology and Innovation Foundation), para citar algumas. A Comissão do Congresso dos EUA que trata das relações sino-estadunidenses reconheceu que: “Os Estados Unidos e a China estão pescoço a pescoço, com um deles à frente ou atrás, dependendo da tecnologia crítica e emergente específica.” (p.170).

A Força da Gravidade das Transformações Globais

Nos últimos quinze anos, a economia global passou por vários choques disruptivos: a maior crise financeira desde 1929, a qual engendrou uma profunda reação, por meio de políticas monetárias excepcionais, que expandiram, de forma inédita, os balanços dos principais Bancos Centrais do mundo em cerca de US$ 20 trilhões; a pandemia da Covid-19; o avanço das tecnologias de fronteiras; o agravamento da crise climática; dentre outros. Enquanto as economias avançadas lidavam com a semiestagnação, a China seguiu sua marcha modernizante, com inequívocos ganhos quantitativos e qualitativos.

Para se colocar em perspectiva, é importante lembrar que:

  1. Em termos cumulativos, desde 2008, o PIB chinês triplicou de tamanho em termos reais, ao passo que o PIB dos EUA cresceu +35% e o da área do Euro variou +14%. Em 2008, a economia chinesa correspondia a 1/3 da estadunidense em valores constantes a preços de mercado; em 2023, o PIB dos EUA é apenas 20% maior que o da China.
  2. Em paridade poder de compra (PPC), que é a medida mais adequada para comparações internacionais, a economia chinesa já é maior que a estadunidense há uma década. O Banco Mundial estima que o PIB da China, em 2023, seria de US$ 35 trilhões (19% do total global) contra os US$ 28 trilhões dos EUA (15% do conjunto do planeta).
  3. Os indicadores em PPC convergem para outras grandezas estritamente físicas, onde se destaca a superioridade chinesa em termos absolutos ou de velocidade em convergir com o líder global. Em 2008, os EUA produziam 4,1 mil TWh ou 20,4% da produção mundial de energia elétrica; a China produzia 3,5 mil TWh ou 17,4% do total global. Em 2023, a produção estadunidense atingiu o pico histórica de 4,5 mil TWh, porém os chineses lograram gerar mais do que o dobro disso: 9,5 mil TWh. Em termos de participação na oferta mundial, passou-se a 32% (China) versus 14% (EUA).
  4. Em 2022, os portos chineses movimentaram 269 milhões de contêiners, quatro vezes mais do que o segundo colocado no mundo, EUA (62 milhões); em 2008, tal relação era de 2:1. No transporte aéreo de cargas, tal relação se inverte, com os EUA na frente em uma proporção de 2:1, em 2021.
  5. Em 2021, os chineses depositaram seis vezes mais patentes tecnológicas que os estadunidenses. Em 2008, residentes dos EUA aplicaram 20% mais patentes que seus congêneres na China.
  6. Atualmente, a expectativa de vida ao nascer na China (78,6 anos, em 2022) é superior à média estadunidense (77,4 anos). Em 1980, os estadunidenses viviam, em média, 9,2 anos a mais que os chineses. Hoje, dá-se o contrário. A taxa de mortalidade de homens na China é de 104 por 1.000 habitantes (2022) contra os 180/1.000 nos EUA (2021). Com isso, o indicador chinês é 40% menor que o dos EUA; ao passo que, em 1980, a mortalidade chinesa era 20% superior à média estadunidense. Em termos cumulativos, desde 2001, houve 26% de queda na mortalidade de homens na China, ao passo que o parâmetro estadunidense aumentou em 25%.

O intenso progresso da China e a força gravitacional de seu tamanho não implicam, necessariamente, que o jogo de disputa pelo poder global está predeterminado. Contudo, os indicadores mencionados anteriormente sugerem que o mundo de Trump 2.0 é mais complexo do que o de Trump 1.0 e, principalmente, do que aquele vislumbrado pelas lideranças estadunidenses no começo do século XXI. Há fragilidades políticas, econômicas e sociais internas aos EUA, cuja sociedade está esgarçada pelo efeito de quarenta anos de neoliberalismo. Desde Reagan, democratas e republicanos se revezam no exercício do poder sem alterar os rumos mais gerais da crise civilizacional do país. Essas duas forças políticas também foram sócias nas diversas intervenções militares no exterior, as quais geraram milhões de mortes de civis[2] nos países-alvo do “poder americano”.

Trump imagina que colocar mais pressão política e financeira sobre parceiros e rivais, sem reverter a deterioração de sua própria sociedade, é condição suficiente para conter as transformações em curso na ordem global. A sua retórica e as ações iniciais, para deleite Alt-Right, sinalizam para o aprofundamento da “guerra cultural”, o desdém por princípios humanitários essenciais, o desmonte do serviço público profissional, a redução da rede de proteção social e a ampliação da dissonância cognitiva na sociedade por meio do fim dos controles às mídias sociais. Ainda é cedo para saber se o presidente dos EUA será bem-sucedido em moldar essa realidade “feia, suja e malvada”. Para Lee Siegel, colunista da The Statesmen, pelo menos Trump oferece ao mundo uma vantagem: o MAGA “Masks All Gone Away”, sem espaços para disfarces na luta intestina pelo poder. Já David Runciman questiona sobre o que poderá acontecer com a democracia constitucional dos EUA se a nova investida de Trump contra “tudo o que está aí” não for contida


[1] A observação desse fato deve ser creditada ao sempre instigante José Luiz Fiori, em textos como “Nova Estratégia Americana”, do começo de 2018.

[2] Ver: Brown University  e John Tirman, “The Deaths of Others: The Fate of Civilians in America’s Wars”, 2011).

André Moreira Cunha – Docente do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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Last Update: 03/02/2025