O Motim Contra a Advocacia: como STF e STJ inauguram um novo ciclo de hostilidade ao contraditório, por Damares Medina

O Motim Contra a Advocacia: como STF e STJ inauguram um novo ciclo de hostilidade ao contraditório

por Damares Medina

A Constituição brasileira afirma que a advocacia é função essencial à Justiça. Não acessória, não contingente, não ornamental. Essencial. Significa que a justiça não se realiza sem a voz do advogado, sem o contraditório vivo, sem a presença humana que tensiona, amplia e equilibra o poder decisório. Quando o advogado é silenciado, é o próprio povo que é silenciado. E o que ocorreu hoje, simultaneamente no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, revela que esse princípio estruturante começou a ser erodido por dentro.

Na manhã desta terça-feira, na Primeira Turma do STF, o advogado Jeffrey Chiquini, defensor de Filipe Martins, discutiu com o ministro Flávio Dino após ter negado seu pedido para excluir documentos juntados pela Procuradoria-Geral da República na fase de alegações finais. Chiquini insistiu que as provas eram irregulares, que violavam o devido processo legal, que não poderiam ter sido incorporadas sem contraditório. Tentou explicar. Tentou falar. Não lhe foi concedida a palavra. Ao permanecer na tribuna, Dino ordenou à Polícia Judicial que o retirasse fisicamente — gesto que sintetiza, com brutalidade simbólica, a expulsão do contraditório do espaço de julgamento. Nunca um advogado deveria ser retirado à força da tribuna de uma Corte constitucional. Mas foi. E o fato de ter acontecido, e de ter acontecido ali, não é acidental. É sintoma.

No mesmo dia, na Terceira Turma do STJ, ocorreu algo talvez ainda mais grave, porque institucionalmente mais revelador. O ministro Villas Bôas Cueva, relator do REsp 2.236.191/RO e de outros dois processos correlatos, havia pautado expressamente os casos para ouvir os advogados. Repetiu isso em plenário: os processos estavam ali para que as partes pudessem exercer seu direito constitucional de sustentar oralmente. Ainda assim, o que se seguiu foi uma cena de constrangimento institucional: os demais ministros discutiram, por longos dez minutos, se permitiriam ou não que os advogados sustentassem. Em determinado momento, ecoou na sala a frase: “Vamos ficar ouvindo advogados dizerem a mesma coisa…?” — pronunciada justamente quando a ministra indicada pela OAB, que deveria representar as prerrogativas da categoria que a colocou ali, liderava a resistência à palavra da advocacia. Não havia dúvida regimental, não havia vedação normativa, não havia sequer disputa sobre o objeto. Havia apenas uma resistência crescente à presença humana no ambiente deliberativo. O resultado foi que, apesar da autorização expressa do relator, a sustentação oral foi suprimida por uma maioria circunstancial. O relator, ao tentar reafirmar seu papel histórico de conduzir o processo, foi simplesmente ignorado.

A convergência desses episódios revela que não estamos diante de excessos isolados, mas de um movimento estrutural: a hostilidade sistêmica à presença humana nos processos judiciais, que atinge primeiro o advogado — porque é ele quem verbaliza o conflito —, mas não se limitará a ele. O advogado é o primeiro corpo expulso; o magistrado será o próximo, substituído pela lógica impessoal da automação, pela inteligência artificial, pelos sistemas digitais de processamento de decisões.

Esse movimento se inscreve em transformações mais profundas da Justiça brasileira. Desde a introdução da repercussão geral, em 2007, o STF passou a julgar cerca de 20 mil processos por ano, concentrando-se em macrotemas constitucionais, em mediação político-estrutural, em litígios paradigmáticos. O STJ, por sua vez, absorveu a massa litigiosa — mais de 600 mil processos por ano, transformando-se, na prática, na corte que dita o direito aplicado cotidiano. Esse deslocamento silencioso de poder não foi acompanhado de fortalecimento das garantias processuais. Ao contrário: coincidiu com a maior onda de virtualização decisória da história.

Hoje, o STF julga 99,5% de seus processos no Plenário Virtual: ambiente assíncrono, opaco, silencioso, sem copresença, sem fricção deliberativa, sem contraditório real. A sustentação oral virou upload. A deliberação virou interface. O processo deixou de ser cena pública de reconhecimento e passou a ser plataforma de processamento de votos. É um sistema em que o humano se tornou uma anomalia logística. O advogado, um inconveniente. A palavra, um ruído.

O que nasce como lógica de gestão no STF se converte, no STJ, em restrição direta ao exercício profissional. Consolidou-se ali uma prática não escrita, mas reiterada: só sustenta quem está perdendo. O advogado que vence é punido com invisibilidade. O espaço da tribuna — constitucional por excelência — transforma-se em gentileza, em concessão, em favor. E quando tribunais passam a decidir, caso a caso, quem pode falar, deixam de garantir igualdade de armas e passam a administrar presença como se administram recursos escassos.

Esse processo de exclusão simbólica da advocacia se articula com outro movimento igualmente grave: a interferência judicial na autonomia privada entre advogado e cliente. Cortes têm reduzido, reinterpretado e, na prática, confiscado honorários livremente pactuados. Nunca se cogitou reescrever contratos de médicos, engenheiros ou arquitetos. Mas com a advocacia essa intervenção parece naturalizada. O paradoxo, porém, é ainda mais profundo: enquanto honorários privados são comprimidos e controlados, as sucumbências milionárias da advocacia pública permanecem intocadas, e magistrados são aplaudidos publicamente, inclusive no CNJ, ao defenderem aumentos de vencimentos próprios. A contenção econômica, portanto, recai seletivamente sobre o profissional liberal que enfrenta o Estado — nunca sobre aqueles que o integram ou dele dependem.

O discurso da “sobrecarga” — apresentado como justificativa recorrente — também merece ser confrontado. A massa litigiosa que sufoca o sistema não é fenômeno natural; é produzida por escolhas institucionais que estimulam recursos repetitivos, revisitam temas pacificados, ampliam competências e reforçam a economia política do litígio: mais processos, mais poder, mais orçamento, mais autorreferência. A advocacia privada, que deveria ser parceira do sistema na contenção dos excessos, é transformada no inimigo interno, no elemento supérfluo, no corpo descartável.

É nessa moldura que os episódios de hoje precisam ser lidos. A retirada forçada de um advogado da tribuna do STF não é um deslize. É o símbolo da expulsão física da voz que confronta. A supressão da sustentação oral na Terceira Turma do STJ, contra a vontade expressa do relator, não é uma divergência interna. É a exteriorização da ruptura do respeito mínimo ao papel de quem conduz o processo. Em ambos os casos, o que se exclui não é uma pessoa, mas uma função constitucional.

E o alerta, esse sim, precisa ser dito sem meias palavras: hoje, os excluídos são os advogados; amanhã, com a automação das decisões e a inteligência artificial, os excluídos podem ser os magistrados. A máquina não distingue toga de petição. Ela substitui o humano — e, uma vez substituído o primeiro, todos são substituíveis.

A advocacia é função essencial porque é a última fronteira entre o poder que decide e o poder que responde por essa decisão. Silenciar o advogado é silenciar a Constituição. E silenciar a Constituição é abrir o caminho para o poder absoluto — que nunca chega de uma vez, mas sempre começa assim: confiscando seus honorários, retirando alguém da tribuna, impedindo alguém de falar, confinando alguém ao silêncio.

O motim contra a advocacia é um motim contra o contraditório.

E um Judiciário que rompe com o contraditório rompe sua própria razão de existir

Damares Medina – Advogada, professora doutora de Direito Constitucional com pós-doutorado em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: https://www.catarse.me/JORNALGGN

Artigo Anterior

Pesquisa testa Haddad, Alckmin e Erika contra Tarcísio em SP; veja os resultados

Próximo Artigo

Sintaema denuncia atraso nos salários e precarizaçãono teleatendimento da Sabesp

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter por e-mail para receber as últimas publicações diretamente na sua caixa de entrada.
Não enviaremos spam!