
O momentum Trump-Putin
por Daniel Afonso da Silva
Banaliza-se, frequente e facilmente, o significado do qualificativo “histórico”. De tempos em tempos, qualquer gesto, simples e efêmero, em momentos de tormentas, vira “histórico” e admite como sinônimo o acesso à condição de “importante”, “decisivo”, “excepcional”, “marcante”.
O encontro de sexta-feira, 15 de agosto de 2025, entre o presidente Donald J. Trump e o seu homólogo russo, Vladmir Putin, avariou todas as condicionantes dessas definições vazias e afirmou-se, demonstrou-se e impôs-se efetivamente como histórico, importante, decisivo, excepcional e marcante. Em todos os níveis. Em todas as direções. Sentidos e inspirações. Sem partilha.
Deu-se no Alasca. Lugar híbrido. Campo sem minas. Espaço dividido. Que um dia foi a Rússia. Passando a pertencer aos Estados Unidos em 1867. Por iniciativa do presidente Andrew Johnson (1808-1875). Que endossou rapidamente a sua aquisição após o império russo soterrar-se em dificuldades financeiras, decorrentes da Guerra da Criméia, e propor a sua venda. Pois sabia-se da abundância de recursos naturais na região. Inicial e fundamentalmente, de sua quantidade ouro. Mas, também, de petróleo. O ouro negro da segunda revolução industrial. Atributos que conduziram o Senado e o secretário de estado, William Seward (1801-1872), a acelerar a compra. Deixando o caminho sem rusgas para o presidente norte-americano de então atuar e adquirir imediatamente aquela extraordinária oportunidade.
Perto de 160 anos depois, russos e norte-americanos voltam ao Alasca comum de sempre. Um lugar simbólico e histórico. Que foi objeto de variadas vivências paralelas inesquecíveis. Como aquelas da partilha do espaço aéreo durante as batalhas contra o Reich de 1942 a 1945 até as mais recentes envolvendo a constituição do Conselho do Ártico que permite a Estados Unidos e Rússia gerenciar descobertas, exploração e usos estratégicos do continente gelado que dispõe de 13% das jazidas de petróleo e 30% das reservas de gás do mundo além de, pelo menos, 25% do estoque de terras raras, essenciais para a Economia 4.0 adicionadas a percentuais expressivos de diamante, níquel, cobre, carvão, ferro, ouro, urânio.
Foi, assim, aí, no Alasca, que teve lugar o encontro “Pursuing Peace”. Onde e quando, pela primeira vez, Trump e Putin estiveram tête-à-tête para iniciar decidir soluções para o destino da Ucrânia, a sorte da Europa, a interação Rússia versus Estados Unidos, o lugar da China e da Ásia no ordenamento internacional, novos dimensionamentos do comércio internacional, novos enquadramentos para assuntos nucleares e assuntos de armamentos convencionais, novas gramáticas para a partilha de poder mundial e, ao fim das coisas, novas determinações para conquistar-se, manter-se e atribuir-se “une place au soleil” [um lugar ao sol].
Na primeira conferência de imprensa ainda na sexta-feira, 15 de agosto de 2025, Trump e Putin apenas trocaram afabilidades. Lembraram da gravidade da situação. Ressaltaram a multidimensionalidade da complexidade do problema. Que ultrapassa o confronto Moscou-Kiev chegando a condicionantes energéticas, comerciais, armamentistas, nucleares e de economia do futuro. Mas não indicaram acordo.
Putin declarou confiança em seu homólogo. Trump, por sua vez, sinalizou que vai contatar a OTAN, Zelensky e as principais potências capazes de interagir positivamente na solução.
Não houve – ainda – acordo.
Não se sabe se haverá.
Mas alea jacta est [a sorte está lançada].
Entretanto, independentemente de acordo, a dimensão histórica do meeting do Alasca, “Pursuing Peace”, ultrapassa todas as querelas hodiernas e alça-se no tempo, na história e na memória. Pois foi a primeira vez na história da interação russo-norte-americana que um presidente russo foi recebido com tanto lustro, pompa, prestígio e glamour.
A administração norte-americana jamais havia mobilizado tamanho empenho numa recepção formal de um presidente estrangeiro. Menos ainda de um mandatário vindo do frio, desde Moscou.
O esmero chegou ao extremo. O profissionalismo também. Tudo para marcar. Impressionar. Como, por vez, faz-se em encontros da última chance. Aqueles capazes de selar destinos. Pessoais, coletivos e mundiais.
Tudo, portanto, feito pra ser harmônico. Mobilizando os melhores estímulos e as melhores vibrações em busca do deal.
Para tanto, de saída, despachou-se aviões norte-americanos para Moscou para escoltar voo do presidente Putin até o Alasca. O presidente norte-americano, ao mesmo tempo, singrou de Washington para o meeting.
Uma vez no Alasca, o Air force one e o Illyushin II ficaram estacionados frente-à-frente com seus locatários respectivamente a bordo.
Trump desembarcou primeiro e Putin, longo em seguida.
Um e outro sem afetação nem demonstrações de superioridade.
Humildes.
Sóbrios.
Até festivos.
De parte a parte.
Em nítida percepção do peso do momentum que estavam protagonizando. Um momentum carregado em valor, respeito, esperança e determinação.
Cientes de que do bom andamento daquele encontro depende o novo tempo das relações russo-norte-americanas e, por extensão, o novo tempo do mundo.
Trump aplaudiu os gestos e o caminhar de Putin no Alasca.
Putin ameaçou sorrir.
A emoção entre ambos era imensa. A sua harmonia também.
Era o seu primeiro encontro deles dois em pessoa depois de 2019.
A primeira vinda de Putin aos Estados Unidos sob a presidência Trump. O primeiro gesto verdadeiramente determinado de distensão, détente, inflexão.
Tudo muito importante. Fascinante.
Trump estava diante do único líder planetário que ele efetivamente respeita, admira e leva em consideração.
Putin, por sua vez, sendo recebido nesse estilo honorífico pelo mandatário da maior potência mundial.
Decisivo e determinante.
Goste-se ou não, uma vitória triunfante do deal, da raison d’état, da realpolitik. Que lança a Rússia à condição de partner prioritário dos Estados Unidos pela primeira vez na história, antes e depois de 1917. Superando-se, assim, mais de um século de confrontação direta, intensa, psicológica, ideológica e moral. Inaugurando novos tempos para a Rússia e novos tempos para a relação Rússia versus Estados Unidos. Com repercussão instantânea em todas as partes. Vez que, doravante, já começa a ocorrer um new balance of power no mundo inteiro. Pois, como bem sinalizou o ministro Sergey Lavrov, “Russia is back”.
E está de volta no melhor estilo. Com Putin sendo recebido com tapete vermelho pela Casa Branca com direito a desfile aéreo dos faustosos B2 e F22, melhores máquinas aeronáuticas disponíveis no planeta.
Não tinha como ser diferente.

Putin é um dos agentes políticos mais importantes do presente século. E Trump – goste-se ou não – é o mandatário da ainda principal potência do planeta.
Não teria como ser diferente.
É como dizia Henry Kissinger (1923-2023) e todos os veteranos da Guerra Fria, da boa, sincera, verdadeira e segura aproximação entre essas duas potências, Rússia e Estados Unidos, depende a estabilização do sistema internacional. Independentemente do que venham a pensar e querer europeus, ucranianos, latino-americanos, africanos, asiáticos e médio-orientais.
Momento de relevância quase similar ocorreu exatamente há oitenta anos, naquele fevereiro de 1945, quando, em contraponto, o presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) singrou para a Criméia ao encontro de Stalin para se fazer o momentum Yalta.
Hitler ainda vivia. Mussolini também. Mas a Overlord havia sido um sucesso na Normandia. Paris estava liberada. A França, em vias de sê-lo. A Itália também. Londres estava fora de perigo. A Inglaterra, como um todo, também. Os aliados avançavam determinados na reconquista dos territórios absorvidos pelo Reich. Expulsando a Wehrmacht e dando amparo aos espaços do front Oeste. O Exército Vermelho, por sua vez, ocupava todo o front Leste. Avançando seguro pelo Reich. Às voltas de chegar às portas de Berlim.
Roosevelt, malgrado a sua deficiência física, viajou doze horas de Washington para a Criméia e foi recebido pelo protocolo de Stalin. Stalin era cioso demais, vaidoso demais, altivo demais e considerava inconsequente chegar à hora para receber e reverenciar o seu homólogo vindo de Washington. Deixando, assim, o pobre presidente norte-americano por mais de seis horas esperando o momento do tête-à-tête.
A intenção Stalin era evidente: humilhar Roosevelt. Fazendo-o restar no frio e no desbrio daquela Criméia árida, cinza e recém-evacuada das tropas nazistas. Para o bem de sua imagem e para o bem da imagem da União Soviética. Em demonstração clássica e nítida de rapport de force. A única linguagem que potências verdadeiramente mundiais entendem e praticam. Notadamente em tempos difíceis. Especialmente em horas de precisão. Como naqueles tempos guerras totais. Quando a contenção do Reich e a liberação da Europa foram transformados em imperativos existenciais.
Nikita Kruschev (1894-1971), por seu turno, tempos depois, nutriu relações amistosas com os presidentes Dwight Eisenhower (1890-1969) e John F. Kennedy (1917-1963). Mikhail Gorbatchev (1931-2022) também foi bem-tratado pelos presidentes Ronald Reagan (1911-2004) e George Bush (1924-2018). Mas claramente mais por protocolo que por respeito.
Kruschev era a encarnação do após-Stalin.
Gorbatchov, o representante da Glasnost, Perestróica e da aceleração do fim da União Soviética.
Só por isso. Nada mais.
Tanto que, depois do Muro, a degradação das relações norte-americanas e ocidentais com a Rússia só aumentou. E aumentou a ponto de nenhum adulto consciente se esquecer da franca e gratuita humilhação pública do presidente Bill Clinton vis-à-vis de Boris Iéltsin (1931-2007).
Um verdadeiro escárnio misturado a difamação, hostilização e opróbio a céu aberto. Constrangendo os herdeiros de Tolstói. Humilhando os descendentes de Dostoiévski.
Simples e corrente assim.
Até que Putin, um quarto de século atrás, começou a inverter a tendência. Impondo um basta. Um chega de humilhação. Que começou com o reavivamento do sentimento nacional russo logo no início de seu mandato em 2000. Passando pelo melhoramento da autoestima do povo e desembocando numa profunda modificação do rapport de force da Rússia vis-à-vis do Ocidente.
Pegando carona na ascensão da Ásia, da China e dos BRICs. Fixando-se como país determinante nesses novos reagrupamentos geopolíticos de poder. Até chegar ao momento do basta final. Que ocorreu em 2007. Naquele encontro de Munique. Onde ele decretou o fim da algazarra mundial de humilhação da Rússia. Dando um ultimato. Determinando um ponto final. Que repercutiu mal em todas as partes. E desembocou na brutalização de todas as relações da Rússia com o seu entorno estratégico e com todos os países hostis a Moscou.
A incontinência da presidência de Barack Obama e da presidência de Joe Biden impulsionou abertamente essa nova fase de confrontações. Notadamente entre Moscou e Kiev. A inconsequência de gente de Bruxelas e de lideranças das principais capitais europeias também alimentou o mal-estar euroasiático. Que, pouco a pouco, foi reabilitando o chão de ruínas no espaço europeu e, conseguintemente, atualizando os episódios mais degradantes daqueles momentos que Roosevelt e Stalin queriam encerrar. Momentos Hamlet. De Ser ou não Ser. Onde a política, a geopolítica, a geoeconomia e a geoestratégia singravam no desconhecido. E precisavam urgentemente localizar novos rumos.
Ainda candidato à reeleição, Trump prometeu solucionar as querelas euroasiáticas em vinte e quatro horas. Parecia ilusão. Desespero. Mas, também, um alívio. Alento. Enfim aparecia alguém com condições e inclinações para mudar o jogo.
Uma vez eleito e empossado, ele alargou o prazo para cem dias. Que também não foram suficientes, mas tiveram passagens importantes. Com aproximações e hesitações. Dúvidas e convicções. Meditações: apoiar ou abandonar Kiev; apoiar ou confrontar Moscou.
Protelou-se a decisão o máximo que se pôde. Até que não teve jeito. Impôs-se a realização do meeting de titãs. O momentum Trump-Putin. Para chegar-se a alguma solução.
Ainda não se sabe qual será o desfecho. Não existe nenhum acordo a vista. Nem cessar-fogo. Muito menos caminhos para a securitização da Ucrânia.
Existe apenas um monumental conjunto de gestos. Que, instantaneamente, tornaram-se históricos. Parte da história da interação russo-norte-americana e parte da história do mundo antes e depois de 1917. E, quem sabe, parte momento geopolítico mais importante do presente século.
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
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