A Era da Emergência e as possíveis saídas
Crise civilizatória exige governança global, democrática e restauradora que desafie os hegemonismos e a milenar cultura patriarcal. Seria possível pensar uma Constituição planetária, sob uma ONU reestruturada, composta até por “bioregiões”? Talvez haja fendas pra isso
por Antônio Sales Rios Neto
Leia Para superar a agonia da civilização patriarcal, a primeira parte deste texto
A aposta num padrão civilizatório emergente restaurador
“É preciso agora uma governança global, que só será
funcional e democrática se estiver baseada nos territórios.
Essa agenda pode ser resumida na fórmula: desglobalização da economia,
que deve se radicar nos territórios, e globalização democrática da política.”
(Luiz Marques, 2023)
A cultura patriarcal milenar, que forjou o projeto de dominação do Ocidente, sempre atuou em três territórios, sem os quais não haveria como ela operar e se sustentar por tanto tempo. São eles: o militar, o religioso e o comercial, mutuamente imbricados. Dentro do longo processo civilizador do Ocidente, a cada crise epocal com que a humanidade se deparava, as saídas se davam pela sofisticação das ferramentas de controle e dominação nesses territórios. Foi nesse compasso que a cultura ocidental explorou três importantes campos da subjetividade humana: a razão, a transcendência e o desejo. Pela transcendência, o Cristianismo substituiu a tribulação do tempo dos impérios. Pela razão, o Estado-nação secular substituiu as contradições do Cristianismo. Pelo desejo, o mercado tende hoje a substituir a inépcia e a obsolescência do Estado-nação. A História constituiu-se, desse modo, num continuum de violência, sempre renovada e ampliada.
Se não tivesse esbarrado em seus limites lógicos (armas nucleares que não podem ser usadas e crescimento demoeconômico incompatível com a biocapacidade de regeneração do planeta), conforme mencionado no texto anterior, o modo de viver patriarcal ainda se manteria por muito mais tempo. Possivelmente, a próxima fase da cultura patriarcal milenar do Ocidente seria marcada por uma era da vigilância, tal como antevista por George Orwell. Por isso, não é exagero quando um pensador como o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) afirmava que “a alternativa para uma mudança da sociedade é a escuridão”, ou quando Edgar Morin alertou que “existem progressos possíveis, progressos incertos e todo progresso que não se regenerar, degenera. Tudo pode regredir.”
Portanto, o maior impasse geopolítico contemporâneo não se trata de uma disputa existencial entre democracias e autocracias, como grande parte dos analistas argumentam. Também não se trata da decadência da hegemonia americana, frente à emergência do mundo multipolar patrocinado especialmente pelo avanço e pela expansão dos Brics (que foi concebido inicialmente, em 2001, apenas como estratégia de investimento por Jim O’Neill, economista do banco Goldman Sachs). O grande impasse que está em curso é o declínio global dos regimes democráticos como parte de um processo de desconstituição do Estado-nação que vem cedendo lugar ao mercado como novo eixo civilizador. Já sabemos qual será o resultado último da evolução dessa lógica de dominação patriarcal: a autodestruição. Por isso, os dois primeiros desdobramentos civilizatórios que tratamos no texto anterior (o colapso socioambiental ou este mesmo colapso socioambiental antecipado por uma guerra nuclear global) representam, hoje, o desfecho mais provável para a humanidade.
No entanto, quem já estudou a abordagem da Complexidade sabe que a realidade resulta da interação entre uma infinidade de processos adaptativos complexos. A realidade que cada um nós vivenciamos, seja individual ou coletivamente, nunca é o que esperamos dela, mesmo para aqueles que alcançam um conhecimento razoável acerca do emaranhado de processos que produz a realidade em sua volta. Ainda assim, somos sempre surpreendidos, seja pelas nuances não percebidas, seja pelo contingente e pelo aleatório, que são atributos inarredáveis da realidade.
Outro aspecto que define a realidade, em especial a realidade humana, é que ela é condicionada pelo padrão cultural historicamente estabelecido, isto é, pelo modo de viver predominante a partir do qual as sociedades humanas se organizaram ao longo processo civilizatório. Estamos falando do processo de autoconservação de uma cultura, fenômeno estudado pelo neurobiólogo chileno Humberto Maturana, para quem “uma cultura é, constitutivamente, um sistema conservador fechado”.
A longa trajetória do conflituoso padrão civilizatório do Ocidente, que está amparado na cultura patriarcal milenar (argumento central dos textos que tenho publicado aqui no Outras Palavras para refletir sobre diversas nuances da realidade humana) esbarrou atualmente em um enorme impasse cognitivo que Maturana traduzia nos seguintes termos: “Para os membros da comunidade que a vivem, uma cultura é um âmbito de verdades evidentes. Elas não requerem justificação e seu fundamento não se vê nem se investiga, a menos que no futuro dessa comunidade surja um conflito cultural que leve a tal reflexão. Esta última é a nossa situação atual.”
Esses dois aspectos estão na raiz do entendimento acerca da conflituosa convivência humana, ao longo da História, e, portanto, explicam a dificuldade que temos de interpretar a realidade e criar consensos para, assim, lidar melhor com ela e tentar influenciá-la positivamente. Entretanto, algo que tem ajudado a superar essa dificuldade de apreensão da realidade é a noção de Emergência (comportamento emergente ou propriedade emergente), que diz respeito à formação de padrões complexos, normalmente associada ao estudo de Sistemas e Processos Complexos. Esse conceito tem ganhado relevância em diversos campos da Ciência, inclusive para entendermos a transição de época histórica na qual estamos imersos hoje.
Um dos pensadores que conseguiu observar bem os padrões civilizatórios emergentes, sob uma perspectiva histórica, foi o escritor e economista francês Jacques Attali, que exerceu o cargo de conselheiro e assessor do governo de François Mitterrand (1981-1995), na França. Attali parece ter captado com profundidade os padrões que moldaram a realidade humana, desde tempos imemoriais, e como eles podem se desdobrar nas próximas décadas. Ele abordou esse assunto no seu livro Uma breve História do Futuro (Novo Século Editora, 2008).
Contrariando o entendimento hegeliano do “fim da História” que animou o Ocidente durante os anos 1990, Attali contestou, à época, o ideário predominante de que “a História não contará daqui para a frente nada além da generalização do mercado, depois da democracia, dentro das fronteiras de cada país.” Percepção na qual se imaginava que “os povos se libertarão por si próprios, pelo simples jogo do crescimento econômico, da transparência da informação e da expansão das classes médias.” Trinta e cinco anos após o anúncio do fim da História (Queda do Muro de Berlim – 1989), a civilização desviou-se para uma trajetória totalmente inesperada. Attali foi muito presciente ao antever que estávamos saindo da “linha reta da História”, quando previu que “por volta de 2025, sob o peso das exigências do mercado e graças a novos meios tecnológicos, a ordem do mundo se unificará em torno de um mercado que se tornou planetário, sem Estado.”
Observando a degradada realidade política mundial, alguém tem dúvida de que o Estado-nação, fundado nos pressupostos de soberania, fronteira, moeda própria e entidade militarizada, está em vias de perder seu protagonismo e até mesmo sua razão de existir enquanto forma dominante de organização geopolítica mundial, sobretudo em face da crise socioambiental planetária em curso, sobre a qual ele não consegue mais ter qualquer ingerência? Como bem prognosticou Luiz Marques, ao refletir sobre a questão da soberania nacional como um dos principais entraves ao enfrentamento das mudanças climáticas, “os Estados-nações estão no centro da precarização das sociedades, da regressão democrática e dos direitos humanos.” Por isso Marques comunga com a ideia de Serge Latouche de que “o objetivo final claramente não é retornar ao Estado-nação ou ao sistema de Estados-nações. O horizonte permanece sendo uma organização confederativa de bioregiões.” Esta mesma percepção é compartilhada por John Gray, para quem “o Estado-nação soberano é uma relíquia em extinção da modernidade, com pouco poder sobre as necessidades atuais.”
Mas esse fenômeno do processo de desconstituição do Estado é resultado da natureza expansionista do mercado, que tende a transformar em mercado tudo o que não é mercado. Quem bem havia identificado esse fenômeno foi Attali:
“A situação é simples. As forças do mercado detêm o planeta ‘nas mãos’. Última expressão do individualismo, essa marcha triunfante do dinheiro explica o essencial dos mais recentes sobressaltos da História: para acelerá-la, para recusá-la, para dominá-la.
Se essa evolução chegar ao fim, o dinheiro acabará com tudo o que pode prejudicá-lo, incluindo os Estados, que ele destruirá aos poucos, até mesmo os Estados Unidos da América. Uma vez transformado na lei única do mundo, o mercado formará o que chamarei de hiperimpério.
(…)
Assim começará a primeira fase do futuro (o hiperimpério). Depois virá uma série de guerras de extrema violência, que levará a um hiperconflito. Enfim, diante do insucesso do hiperimpério e do hiperconflito, novos valores conduzirão a um reequilíbrio entre democracia e mercado em escala mundial, a uma hiperdemocracia planetária.”
Portanto, se observarmos os padrões da História, como fez Attali no início dos anos 2000, provavelmente concordaremos com o seu prognóstico para as próximas décadas: a perspectiva de que a “cara mais verossímil do futuro” será a de que, até 2060, rebentarão, uma após a outra, três ondas do futuro. São elas:
1) o hiperimpério (entre 2035 e 2050), no qual o Estado-nação será gradualmente absorvido pelas forças do mercado, representadas pelas corporações transnacionais, e substituído pela Vigilância proporcionada com o avanço da revolução algorítmica iniciada nos anos 1980;
2) o hiperconflito (entre 2050 e 2060), como desdobramento das instabilidades geradas pelo hiperimpério que não dispõe mais das contenções do Estado para regulá-lo, em que profundas convulsões, impulsionadas por “ambições regionais”, “exércitos piratas e corsários” e a “cólera dos laicos e dos crentes”, desencadearão guerras de toda ordem, em escala mundial; e
3) como resposta à perspectiva de uma autodestruição da humanidade, abre-se a possibilidade de uma hiperdemocracia planetária, assumindo os rumos de uma civilização devastada pelas duas ondas precedentes.
Assim, entendo que essa esperança de Attali numa hiperdemocracia planetária, por volta de 2060, na qual a humanidade possa superar as inevitáveis e insondáveis agonias da atual transição de época histórica em curso, poderá emergir de quatro premissas mutuamente interdependentes, sem a incorporação das quais o nicho climático humano provavelmente não será mantido, se não forem gradualmente assumidas como pressupostos de uma nova política de civilização, ou, como prefere Luiz Marques, de uma “política de sobrevivência”. São elas: uma Governança que seja Global, Democrática e, sobretudo, Restauradora.
Embora imperceptíveis para muitas pessoas hoje, essas premissas já estão operando de forma silenciosa e marginal. Por isso, são fenômenos emergentes que poderão nos desviar do atual curso de autodestruição, iniciado seis mil anos atrás, quando, possivelmente, também irrompeu outro fenômeno emergente – as sucessivas ondas de invasões kurgan –, que pode ter sido o responsável pela prevalência do modo de vida patriarcal, forjando o longo projeto civilizatório do Ocidente. Portanto, se quisermos sobreviver como espécie, precisamos compreender tais premissas, incorporá-las e agir a partir delas, conforme o campo de atuação de cada indivíduo e de cada agrupamento humano. Cabe, então, uma reflexão acerca do potencial emergente em cada uma dessas premissas.
1) Governança: para restaurar a pulsão de vida coletiva
As origens da ideia de Governança, que diz respeito aos processos de governar (do verbo grego kubernaein, que significa “dirigir”), remontam à Grécia Antiga e já foi experimentada sob diversos arranjos governamentais, especialmente na relação entre as nações e nos momentos mais agônicos da história da humanidade. O conceito surge na Inglaterra medieval, em decorrência dos tratados políticos do parlamento inglês, durante o século XV, no contexto da Guerra das Rosas (1455-1485), cujo registro ficou consignado na obra The Governance of England de Sir John Fortescue. Porém, foi somente nos anos 1990 que esse conceito ganhou grande expressividade e passou a ser disseminado e incorporado à dinâmica de funcionamento dos governos e das instituições, sejam elas públSalesicas, privadas ou sociais.
No caso específico do espaço público, a Governança surge como resultado de uma evolução cumulativa dos paradigmas de administração pública: patrimonialista (séculos XVII a XVIII – Estados Absolutistas), burocrático (séculos XIX e XX – Max Weber), gerencial (1979 – Era Thatcher-Reagan) e governança digital (1990 – Vale do Silício). Tal movimento surge a reboque dos avanços entrelaçados, também cumulativos, da Revolução Industrial, do liberalismo, do capitalismo e, mais recentemente, da disrupção algorítmica.
A chamada Governança Pública, com transformação digital, é a mais nova modalidade dessa tendência, que, no Brasil, foi introduzida pelo Tribunal de Contas da União, no início dos anos 2010, e é viabilizada por meio de programas de Compliance, Accountability, Inovação, Integridade e Riscos. Inclusive, já tangenciei esse assunto aqui no Outras Palavras, ao refletir sobre as dificuldades de capacidade de resposta do sistema de justiça brasileiro, arraigadamente patrimonialista, em resguardar o nosso anacrônico Estado Democrático de Direito.
Portanto, Governança é um conceito polissêmico que deriva da complexidade dos processos de autorregulação dos agrupamentos humanos, seja numa instituição, empresa, país ou grandes blocos econômicos regionais. Surge da necessidade de adoção de mecanismos de representação e de gerenciamento de conflitos entre partes interessadas – que no jargão do mundo corporativo é chamado de “dilema da agência” –, sobretudo para moderar e mitigar as perenes tensões geradas pelo desbalanceamento histórico dos privilégios de poucos em detrimento das carências coletivas. Por isso, tem sido crescentemente aplicada nas mais diversas esferas da conflituosa convivência humana, sobretudo nos campos da economia e da tecnologia, que são hoje os principais catalisadores dos conflitos societários e, portanto, desestabilizadores da civilização na contemporaneidade.
Com o neoliberalismo inaugurado após o “choque de Nixon” em 1971, que rompeu unilateralmente a política de bem-estar social promovida pelo consenso de Bretton Woods (1944), o mercado, em simbiose com a tecnologia, foi gradualmente assumindo a centralidade da dinâmica civilizatória. Fenômeno este que está destronando o Estado-nação como eixo regulatório da humanidade, assim como ocorreu com as crises do mercantilismo, do papado e do absolutismo, nos séculos XVI a XVIII, que ruíram a centralidade política do Cristianismo iniciada com o Papa Leão I, na Idade Média.
Nesse movimento histórico, a partir dos anos 1970, as crises inerentes ao sistema-mundo capitalista foram se tornando mais frequentes e agudas, em especial as crises econômicas e financeiras, alimentadas, como sempre, pela soberba e arrogância humanas, não só de agentes econômicos mas também e principalmente dos agentes de Estado. Este é o principal fenômeno que tem estimulado, em sentido contrário, mecanismos de Governança para conter o crescente narcisismo inerente à lógica tecnomercadológica. Como também anteviu no início dos anos 2000 o economista francês Jacques Attali, as ferramentas vigilantes tenderão a ser “o objeto substituto do Estado” e o mercado laissez-faire, por natureza cultuador da lei do mais forte, reinará supremo e, por consequência, “a apologia do indivíduo, do individualismo, fará do ego, do eu, os valores absolutos”, nesta nova realidade transumanista distópica que estamos vivendo.
No fundo, a ideia de Governança começa a irromper como uma espécie de força de reestabilização civilizatória nesta transição de época histórica, em resposta ao profundo desarranjo socioambiental causado pelo modo de vida tecnocapitalista hegemônico. Por isso, ela tem potencial para se tornar uma força emergente essencial ao resgate da pulsão de vida coletiva e plural, truncada seis mil anos atrás pela cultura patriarcal milenar que forjou o projeto do Ocidente, hoje representado pela ameaça do narcisismo capitalista ecocida, que se manifesta globalmente.
2) Global: para restaurar a percepção de que habitamos uma única Casa Comum
Para escaparmos do abismo civilizatório que se avizinha aceleradamente, uma segunda premissa, que na verdade já vem sendo incorporada há um bom tempo, é a consciência de que somos todos parte de uma Terra-Pátria, tal como concebida pelo filósofo francês Edgar Morin. Essa consciência começa a surgir como desdobramento histórico dentro do conflituoso projeto de ocidentalização do mundo, conquistador, dominador e predatório. Porém, é na segunda metade do século XX que o sentimento de uma Era Planetária irrompe com as mundializações civilizacional, econômica, tecnológica, política e cultural, acompanhada dos perigos de ameaça nuclear global e de esgotamento ecológico, como mencionado antes.
Contraditoriamente, essa mesma consciência planetária também é parte de um fenômeno global emergente que começa a questionar o legado civilizatório do Ocidente que forjou as noções de soberanias, fronteiras, nacionalismos, conduzindo a humanidade e todo o ecossistema Terra à exaustão total. As promessas de universalização, melhoramento humano e progresso material ad infinitum, ofertadas pelas experiências politicas totalizantes do século XX, representam o ápice dessa busca salvacionista na História, como bem expressou Morin:
“Desde a revolução francesa, já tinha havido irrupção e depois invasão de uma mitologia providencialista e de uma quase religião de salvação na política. Para Saint-Just, a revolução ia trazer a felicidade à Europa. Marx, por sua vez, transformou o socialismo do século XIX em religião de salvação terrestre, cujo messias proletário devia abolir tudo o que oprimia e dividia os humanos. Enquanto a social-democracia dava um sentido meramente assistencial/protetor à função providencial da política, essa providência adquiriu um sentido quase religioso de salvação na terra em sua versão dita marxista-leninista. A política se viu assim investida da grande missão das religiões de salvação, com a diferença de que, em vez de oferecer a salvação no céu após a morte, a prometia em vida, na terra.
A ideia de uma revolução que mudaria o mundo e mudaria a vida, animada por um mito poderoso e uma vontade implacável, inspirou uma política que se tornou totalitária. Assim, o século XX foi marcado pelo formidável desdobramento religioso e mítico da política totalitária.”
Os acontecimentos do trágico século XX já anunciavam o esgotamento do projeto civilizador do Ocidente, quando os ideais iluministas refletidos nos avanços do conhecimento e da técnica foram utilizados para justificar a morte numa escala jamais vista. Estima-se que pelo menos 187 milhões de vidas foram dizimadas (Brzezinski, 1993) por deliberações humanas, o equivalente a algo em torno de 12% da população mundial em 1900. Mesmo diante dos flagelos desencadeados no seio dos dois principais projetos civilizatórios fracassados – o capitalismo e o socialismo real –, o ímpeto expansivo do Ocidente continuou sua rota insana, agora sob o influxo da economia em simbiose com os algoritmos, dominando o mundo por meio da globalização, inviabilizando as democracias, degradando os ecossistemas e acelerando ainda mais a sexta extinção em massa da vida na Terra.
Para revertermos esse processo de destruição em escala planetária, é preciso, agora, assumirmos nossa cidadania terrestre, a nossa “comunidade de destino”, como alerta Morin: “A tomada de consciência da comunidade de destino terrestre deve ser o acontecimento chave do novo milênio: somos solidários desse planeta, nossa vida está ligada à sua vida. Devemos arrumá-lo ou morrer.”
A emergência de uma percepção coletiva de que pertencemos a uma Terra-Pátria, equivalente à grande Deusa Mãe que integrava a cosmogonia dos povos pré-patriarcais da Antiga Europa e que foi batizada de Gaia por James Lovelock e Lynn Margulis, em 1972, cuja natureza autorreguladora é caótica e incerta e ao mesmo tempo acolhedora e provedora, vem despertando a consciência de que o Homo sapiens e demais seres vivos coabitam uma mesma e única Casa Comum, numa relação de mútua interdependência.
Por isso, um novo padrão civilizatório emergente restaurador poderá advir de uma Governança articulada em âmbito Global.
3) Democrática: para restaurar o modo de viver não-hierárquico pré-patriarcal
Dediquei aqui no Outras Palavras uma série de textos em que refleti sobre a difícil tarefa de investigar as prováveis raízes da impossibilidade de realização – de uma forma mais espontânea, continuada e não violenta – das muitas tentativas de governança democrática já experimentadas pela humanidade, inspirado na seguinte máxima de Humberto Maturana: “a democracia não pode ser estabilizada nem defendida: só pode ser vivida. A defesa da democracia – com efeito, a defesa de qualquer sistema político – conduz necessariamente à tirania”.
A tese central dessas reflexões é a de que a democracia só se realiza como modo de vida, na medida em que as relações constitutivas da longa evolução do Homo sapiens e seus ancestrais hominídeos ocorreram numa dinâmica que Maturana chamava de “cooperação não-hierárquica”. Para sairmos da crise sistêmica que se abate sobre a humanidade, é preciso vislumbrar uma perspectiva de resgate aprofundado da democracia, enquanto modo de viver, e não de governar. O pressuposto que alimenta o anseio democrático que acompanhou boa parte da história da civilização reside num impulso ancestral, ou seja, num impulso inerente à natureza do animal humano. Seja qual for a adversidade de sua circunstância, ele sempre seguiu um modo de viver em participação, inclusão, cooperação, compreensão, acordo, respeito mútuo e, sobretudo, em parcimônia com o seu meio ambiente. Assim, devemos compreender que a democracia é essencialmente um modo de viver, não de governar.
As primeiras experiências de democracia das ágoras gregas (espaços públicos onde os temas de interesse da sociedade eram debatidos e resolvidos) que afloraram dentro da dinâmica patriarcal representaram, segundo Maturana, “uma cunha que abriu uma fenda em nossa cultura patriarcal”. A democracia emerge, desse modo, em oposição à cultura patriarcal, que passa a aceitá-la, porém dentro da sua lógica de apropriação e dominação, isto é, limitando-a e negando-a. Inclusive, essa mesma dinâmica se dá também na ciência e na filosofia, conforme observava Maturana: “tanto a democracia quanto a ciência são rupturas matrísticas da rede de conversações patriarcais, ambas enfrentam uma contínua oposição patriarcal. Esta as destrói totalmente, ou as distorce, submergindo-as numa classe de formalismo filosófico hierárquico.”
Maturana sustentava que “só o aparecimento da democracia foi de fato uma ameaça ao patriarcado”. A democracia representa, segundo ele, uma nostalgia do modo de viver matrístico pré-patriarcal que irrompeu dentro do viver patriarcal. Nas palavras dele, a democracia é “uma ruptura em nossa cultura patriarcal europeia. Emerge de nossa nostalgia matrística da vida em respeito mútuo e dignidade, que são negadas pela vida centrada na apropriação, autoridade e controle”. Por isso, a sua impossibilidade de realização ao longo da história. Dizendo de outro modo, a sociabilidade ocidental que está amparada na cultura patriarcal limita e impede a realização da sociabilidade democrática que é uma manifestação das antigas culturas pré-patriarcais, ainda presentes no modo de viver humano. Assim, o surgimento da democracia, mesmo ela estando sempre negada pelo patriarcado, representa um resgate da nossa ancestralidade, uma tentativa de tornar novamente prevalente o modo de viver da antiga cultura europeia pré-patriarcal.
A profunda crise da democracia representativa parece indicar que se aproxima o tempo de revivermos uma democracia do dia a dia, como outrora (na Antiga Europa pré-patriarcal), sem precisarmos de apropriações e distorções para defendê-la, alimentando e mantendo as tiranias, em especial a do capital e a dos algoritmos, que estão arrastando a civilização para o precipício. O crescente declínio de regimes democráticos pelo mundo talvez seja um indicativo de que a democracia representativa, cuja dinâmica é patriarcal, chegou no seu estágio de esgotamento.
Nessa perspectiva, o que provavelmente estejamos vivenciando no atual momento de mudança de época histórica é o gradual crepúsculo daquela democracia inaugurada na República Romana, uma democracia imposta “de cima”, de baixa intensidade, uma democracia apropriada pelo patriarcado. Apropriação esta que se dá por meio do que Maturana chamava de “conversações recorrentes que negam a democracia”. Assim, observamos, por um lado, o desenraizamento de um modo de viver democrático da base que lhe deu sustentação, a cultura patriarcal, e, de outro, a difícil, lenta e imperceptível tentativa de resgate de uma democracia a partir do Comum, do cotidiano, da convivencialidade, da sociedade em rede, que começa a irromper nos tempos atuais.
Portanto, um novo padrão civilizatório emergente, que seja restaurador das culturas pré-patriarcais, poderá advir de uma Governança que consiga se manifestar em âmbito Global e sob um modo de viver (e não de governar) Democrático. Sabemos, no entanto, que essas premissas já estão atuando silenciosamente, porém todas elas ainda muito apropriadas pela cultura milenar patriarcal. Por isso a restauração necessária hoje diz respeito ao campo cultural, no sentido antropológico que esse termo comporta, em que essas premissas passam a ser canalizadas para a valorização dos atributos que sustentam a teia da vida e regem o metabolismo do grande ecossistema Terra. Atributos estes que passam pela ideia de que a vida em sociedade é fruto de um movimento coletivo, plural, dialógico, interdependente e, portanto, complexo.
Por isso, só um fenômeno global emergente, restaurador do modo de viver que permitiu a longa evolução dos seres vivos, incluídos os primatas hominídeos que nos antecederam, pode dar conta da crise existencial contemporânea. Assim, a possibilidade de irrupção de uma hiperdemocracia imaginada por Attali, como resposta às convulsões das duas ondas precedentes (hiperimpério e hiperconflito), comportaria, pelo menos, três principais fenômenos emergentes entrelaçados:
1) Ascensão do altruísmo social, em que a alteridade e a cooperação substituirão o individualismo e a competição que regem as relações políticas. Novos atores sociais e políticos exercerão um tipo de liderança na qual, segundo Attali, “não se acreditarão os proprietários do mundo, admitirão que só têm o seu usufruto”;
2) Uma nova “economia relacional” emergirá afastando-se da atual lógica predatória do lucro, da acumulação e do consumo. Ela “não obedecerá às leis da raridade” e “permitirá produzir e trocar serviços realmente gratuitos – de entretenimento, saúde, educação, relações etc –, que cada um julgará bom que se ofereça ao outro”. Uma economia em que “a gratuidade se estenderá a todos os domínios essenciais à vida”;
3) O resgate dos Bens Comuns, dentre eles a “inteligência universal”, como resultado coletivo da hiperdemocracia. “O bem comum da humanidade”, diz Attali, “não será a grandeza, a riqueza ou mesmo a felicidade, mas a proteção do conjunto dos elementos que tornam a vida possível e digna: clima, ar, água, liberdade, democracia, culturas, línguas, saberes…”.
Quem bem soube conceber uma proposta inicial de Governança Global Democrática, muito coerente com essa antevisão de Attali, foi Luiz Marques, que entende que “nada pode ser considerado impossível diante de uma ameaça existencial”. Para que ocorra uma ruptura civilizacional à altura dos desafios atuais, Marques propõe na sua corajosa e reveladora obra O Decênio Decisivo (Editora Elefante, 2023), uma política não só civilizatória, mas de sobrevivência das sociedades, que precisaria começar a ser articulada ainda neste decênio (2021-2030), amparada nos seguintes princípios:
“1- redução emergencial das diversas desigualdades entre os membros da espécie humana;
2- diminuição do consumo humano de materiais e de energia;
3- extensão da ideia de sujeito de direito às demais espécies, à biosfera e às paisagens naturais;
4- restauração e ampliação das reservas naturais e das reservas indígenas, a serem consideradas como santuários inacessíveis aos mercados globais;
5- desmantelamento da economia global e transição para uma civilização descarbonizada;
6- desglobalização do sistema alimentar e sua transição para uma alimentação baseada em nutrientes vegetais;
7- o arcabouço jurídico internacional vigente deve superar o axioma da soberania nacional absoluta em benefício de uma soberania nacional relativa;
8- a aceleração da transição demográfica aumenta as chances de sucesso das rupturas acima enunciadas.”
A encruzilha civilizatória à qual chegamos pode ser resumida nos seguintes termos: há dois grandes movimentos geopolíticos, antagônicos e conflitantes, em curso, que marcam a atual transição de época histórica. De um lado, a crescente hegemonia do mercado enquanto eixo civilizatório, que vai gradualmente desconstituindo o Estado-nação e acelerando o processo de colapso socioambiental em curso, e, de outro lado, o despertar de movimentos, ainda muito embrionários, de restauração convivencial entre os povos e para com a Terra, com potencial de criar as condições para a emergência de uma Governança Global Democrática restauradora. A força do primeiro movimento é hoje infinitamente superior ao do segundo. Nossa sobrevivência como espécie está na possibilidade de que haja uma inflexão nas próximas décadas, antes do processo de colapso socioambiental alcançar seu ponto de irreversibilidade.
Contra esse destino patriarcal suicidário, a História tem seus precedentes para nos animarmos com a possibilidade de um impensável desdobramento civilizatório, no qual uma Governança Global Democrática emergente possa restaurar a convivencialidade que existia na Antiga Europa, encerrando seis milênios de agonia patriarcal. Aqueles que viveram até o fim do século XIX jamais imaginariam a criação de uma Liga das Nações, que depois daria origem a uma ONU; ou um atuante terceiro setor da economia, movido pelo voluntarismo; ou, ainda, a gratuidade de alguns serviços públicos, como já existe hoje; a crescente ideia de pensar os recursos naturais e culturais como Bens Comuns; e um livre acesso e compartilhamento de conhecimentos em escala global.
Por isso, podemos antever até mesmo a possibilidade de uma Constituição do planeta, de dimensão supranacional e não mais multilateral, que supere a disfuncionalidade da soberania dos Estados-nações e subverta a ordem vestfaliana. Uma Constituição planetária, sob a guarda de uma ONU reestruturada, congregadora de uma federação mundial de bioregiões, como sugere Latouche, com paridade de representação de todos os povos e de todos os ecossistemas, constituiria um passo importante na direção desse novo padrão civilizatório restaurado. Enfim, uma Constituição por meio da qual se possa alcançar uma civilização tolerante, democrática e cooperativa, equivalente àquele estágio culminante sonhado por Immanuel Kant, que nada mais é do que uma civilização restaurada da destruição inerente à lógica milenar patriarcal.
As condições para que haja a possibilidade de uma ruptura civilizatória, capazes de encerrar seis milênios de agonia patriarcal e restaurar o modo de viver em sociedade, estão dadas. Aprendemos com Maturana que é por meio da linguagem e das emoções que um padrão cultural – o modo de viver humano – se conserva. Temos hoje fortes evidências vindas das Ciências Sociais de que o padrão cultural que sustentou a longa evolução do Homo sapiens e dos hominídeos que o precederam era um padrão cultural que dava centralidade à teia da vida, um modo de viver em participação, inclusão, cooperação, compreensão, acordo, respeito mútuo e integrado ao meio ambiente. Precisamos, portanto, resgatar a linguagem e as emoções apropriadas à possibilidade de um padrão civilizatório emergente restaurador.
Enfim, para não sucumbirmos à crescente ecoansiedade de viver num buraco negro produzido por um sistema-mundo capitalista antivida, que já afeta principalmente crianças, jovens, mulheres e povos indígenas em todo o mundo, resta-nos, portanto, apostar e, desde já, assumir um novo modo de viver emergente, por uma Governança Global Democrática e por uma civilização restaurada, a única possível diante da agonia planetária que se avizinha.
Mas até que esse novo padrão civilizatório possa emergir, conviveremos com a perspectiva da autodestruição e suas agonias inimagináveis. Podemos, no entanto, encontrar esperança nas palavras do poeta Thomas Eliot: “o homem não suporta muita realidade”. Diante de um flagelo planetário sem precedentes, deve aflorar por volta de 2060 – como anseia Attali –, sob os escombros de uma civilização patriarcal milenar que forjou a quimera da dominação Ocidental, o reencontro do Homo sapiens demens com a sua ancestralidade.
“Deixemos de procurar um sentido na História, que não o tem.
Ela está constantemente à beira do aborto.
O mundo não vai a parte alguma.
Pode a qualquer momento retornar à barbárie;
com ele, o pior é sempre o mais provável.
Mas precisamos recusar a evidência e portanto resistir ao inelutável:
para dar uma pequena chance à eternidade,
já que não podemos prever o futuro, resta-nos inventá-lo.”
(Jacques Attali)
Leitura recomendada
ATTALI, Jacques. Dicionário do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.
ATTALI, Jacques. Uma breve história do futuro. São Paulo: Novo Século Editora, 2008.
BENTO, Leonardo Valles. Governança global: uma abordagem conceitual e normativa das relações internacionais em um cenário de interdependência e globalização. Tese de doutorado do curso de pós- graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.
EAGLETON, Terry. Esperança sem Otimismo. São Paulo: Editora Unesp, 2023.
HAN, Byung-Chul. O espírito da esperança: contra a sociedade do medo. Petrópolis: Vozes, 2024.
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Antônio Sales Rios Neto – Servidor público federal. Estudioso da cultura patriarcal (entendida como principal elemento constitutivo do processo civilizatório e propulsor do antropoceno) e das novas abordagens da Complexidade (um dos meios de superação do patriarcado). Coordenador, representando o Brasil, do projeto “La Emergencia de los Enfoques de la Complejidad en América Latina”, iniciativa da Comunidad de Pensamento Complejo (CPC), sediada na Argentina.
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