O manto tupinambá no Sambódromo
por Walnice Nogueira Galvão
A repatriação do manto tupinambá no bojo do amplo processo de descolonização, que atualmente ajusta contas com a herança da violência do imperialista dos brancos, tem ponto de chegada no Carnaval. Em São Paulo, a escola de samba Acadêmicos do Tucuruvi desfilou com o enredo “Assojaba – a busca pelo manto”. O artefato de penas vermelhas de guará voltou ao Brasil após 4 séculos de desterro..Nada mais justo que seja homenageado no Sambódromo
Antes disso, o manto fez uma turnê pela Europa e enfeitou o pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza,
O assunto está rendendo, desde que a Dinamarca emprestou o manto para a Mostra dos 500 Anos (São Paulo, 2000), de que foi a atração maior, ao lado da Carta de Pero Vaz de Caminha.
Embora a Dinamarca nunca nos tenha invadido nem saqueado, o fato de possuir mais quatro mantos não deve empanar o lustro de seu gesto. Trata-se de um mantelete que cobre o alto das costas e que foi encampado pela comunidade Tupinambá de Olivença, na Bahia, recuperando o segredo de sua fabricação. É de alta ciência e arte, exigindo um entrançado minucioso de fibras sobre o qual são aplicadas as plumas, com cera de abelha. Seu nome apresenta variantes, indo desde Araçoiaba em Pernambuco e Araçoiaba da Serra em São Paulo, até a assojaba do samba-enredo, passando pela araçoia do poema “Leito de folhas verdes”, de Gonçalves Dias (“… a araçoia na cinta me apertaram”), primorosamente analisado por Antonio Candido na Formação da literatura brasileira.. Nesta grafia figura nos dicionários, às vezes com acepção um pouco diferente, mas sempre no sentido de adereço de plumas, como figuram nas ilustrações de viajantes e cronistas.

Não é de somenos o significado ritual da arte plumária nas Américas. Monumentos maias, aztecas e incas mostram como as plumas realçavam os suntuosos trajes cerimoniais de reis e sacerdotes. Em seu panteão há deuses como o azteca Quetzalcóatl e o maia Kuculcán, cuja forma terrena é a de uma serpente coberta de penas, que pode ser admirada nos museus e in loco, ornamentando as esplêndidas pirâmides que perfuram o dossel da selva. Na coroa de Montezuma, último imperador azteca, dispõem-se sobre uma base de ouro as plumas verde-azuladas de um metro de cumprimento da cauda do quetzal, ave sagrada. A cópia da coroa pode ser admirada no Museu de Arqueologia do México, pois, exemplificando as barbaridades do colonialismo, o original pertence à Áustria.
É oportuno que o desfile coincida com a reencenação da ópera O Guarani, de Carlos Gomes, no Teatro Municipal, neste início de 2025. A nova interpretação é permeada já pela militância e acentuou os elementos nativos. Indigenas participaram da montagem, tendo.ocupado o palco um coro formado por Guaranis do Estado de São Paulo. O espetáculo contou com a concepção geral de Ailton Krenak, escritor e ativista, recentemente eleito para a Academia Brasiieira de Letras.
Adaptações já se fizeram necessárias quando a ópera estreou na Itália. Como é que o malvado Loredano, padre renegado, poderia ser italiano, tal como é carcterizado no romance de Alencar? Carlos Gomes fez do arquivilão um espanhol chamado González… Português é que não poderia ser, tal como Dom Antonio de Mariz, o fidalgo pai de Ceci, de perfil positivo.
Ousada para a época, tanto no romance quanto na ópera, foi a insinuação de um idílio a ser consumado no futuro, entre Ceci e Peri. O fecho do romance, com o casal desaparecendo no horizonte em cima de uma palmeira arrebatada pelas águas, deve ser um dos finais mais celebrados da literatura brasileira. É claro que Alencar pensava numa “raça brasileira” surgindo da mistura entre indígenas e portugueses, E que Euclides da Cunha chamou de “amplexo feroz”, eufemismo para estupro.
Só que Alencar trocou os sinais do que estava se passando no processo histórico. Ou seja, a miscigenação se deu entre homens portugueses e mulheres indígenas, e não o contrário. Alencar avança e inverte a História. Ambos, romance e ópera, são obras-primas do Indianismo, relevante movimento estético dentro do Romantismo, precursor de tendência atualíssima.
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP
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