O Supremo Tribunal Federal fixou uma tese equilibrada ao ampliar a responsabilidade civil das big techs por conteúdos criminosos de usuários e, agora, o principal risco envolve o modo como as plataformas aplicarão as novas regras. A avaliação é de João Brant, secretário de Políticas Digitais da Presidência da República.
O receio do secretário é que empresas possam adotar normas mais restritivas do que as definidas pelo STF, apenas para construir o clima político propício ao afrouxamento delas pelo Congresso. Em 2023, o lobby das gigantes de tecnologia foi bem-sucedido ao interditar as discussões sobre o Projeto de Lei 2630, que recebeu a alcunha de PL das Fake News.
Em nota, o Google alegou que as mudanças no Marco Civil da Internet “podem impactar a liberdade de expressão e a economia digital”. O argumento convence parte significativa da Câmara dos Deputados e do Senado, especialmente os bolsonaristas.
Parlamentares também criticam o que consideram uma intromissão do Supremo em prerrogativas do Legislativo – preocupação compartilhada por ministros que ficaram vencidos no julgamento. Edson Fachin, por exemplo, afirmou que a regulação tem de ser “estrutural e sistêmica” e não deveria, “preferencialmente”, partir do Judiciário.
O que muda
Em resumo, enquanto o Congresso não editar uma nova lei sobre o tema, as plataformas podem ser responsabilizadas civilmente pelos danos decorrentes de publicações terceiros em casos de crimes ou atos ilícitos se, após receberem um pedido de retirada — a chamada notificação extrajudicial —, deixarem de remover os conteúdos.
Os provedores também estão sujeitos à responsabilização civil caso não ajam imediatamente para excluir posts que configurem a prática de crimes graves. A lista inclui conteúdos referentes a tentativa de golpe de Estado, abolição do Estado, terrorismo, instigação à mutilação ou ao suicídio, racismo, homofobia e crimes contra mulheres e crianças.
Além disso, os provedores serão considerados responsáveis se não agirem para retirar do ar conteúdos ilícitos veiculados por anúncios e impulsionamentos pagos. Em suma, não podem lucrar com publicações de teor ilegal.
No caso de crimes contra a honra — injúria, calúnia e difamação —, as big techs só terão de pagar indenização se descumprirem uma ordem judicial para remover o conteúdo. Elas podem, contudo, excluir as publicações com a partir de uma notificação extrajudicial. Esse é um aspecto particularmente relevante à medida que se aproximam as eleições de 2026.
“O que a gente espera é que elas não usem essa aplicação para fazer briga política por mudança da tese no Congresso Nacional — ou seja, que não a apliquem de uma maneira mais restritiva do que poderiam apenas para gerar um movimento de comoção, afirma João Brant.
Confira os destaques da entrevista:
CartaCapital: Qual a sua avaliação sobre a tese fixada pelo STF?
João Brant: É uma tese adequada à realidade brasileira, protetiva de direitos e, ao mesmo tempo, alinhada com os melhores padrões internacionais.
Ela tem elementos que estão presentes na regulação europeia ou na regulação britânica, mas tem coisas que estão mais protetivas. No caso de crimes contra a honra na Europa, se eles estiverem no ordenamento jurídico, tornam-se passíveis de notificação e retirada. No Brasil, não. Então, é uma proteção relevante ao debate público.
A tese avança na proteção de direitos em questões importantes como o reconhecimento de que há uma pressuposição de conhecimento do conteúdo impulsionado ou publicidade. Também é uma medida importante.
CC: Há, como diz o Google, risco à liberdade de expressão?
JB: Não. Essas regras novas são bastante equilibradas e não geram, per se, risco relevante para a liberdade de expressão.
Obviamente, o Google e as empresas não têm interesse na mudança de um regime em que elas não têm responsabilidade praticamente nenhuma. Mas essa decisão sai bastante consistente.
CC: Quais são os principais desafios para a aplicação das novas regras?
JB: A gente espera que as plataformas simplesmente se adequem. O que se exige ali não é desproporcional, é bastante adequado. São investimentos perfeitamente cabíveis no orçamento que elas têm e recebem aqui no Brasil.
Temos um desafio, que é o fato de que essa tese será aplicada com os provedores como intermediários.
Então, o que a gente espera é que eles não usem essa aplicação para fazer briga política por mudança da tese no Congresso Nacional — ou seja, que não a apliquem de uma maneira mais restritiva do que poderiam apenas para gerar um movimento de comoção.
CC: A nova tese é suficiente para lidar com os desafios nas redes?
JB: A tese do Supremo funciona como base. Já tem uma capacidade significativa de alterar o problema de ausência de proteção de direitos fundamentais no ambiente digital, mas, obviamente, para ter efetividade, precisaria ser complementada com uma legislação que estabeleça obrigações das plataformas de agir de forma a garantir a prevenção e a precaução na proteção de direitos — e que haja um órgão administrativo capaz de acompanhar sistematicamente, pari passu, a ação das plataformas e exigir delas o cumprimento das obrigações administrativas.
Ou seja, não precisamos de nenhum instrumento que regule conteúdo de usuários. Precisamos é de um instrumento que organize as responsabilidades administrativas das plataformas e de enforcement, de aplicação e garantia do cumprimento dessas regras.
CC: A discussão deveria ter ocorrido no Congresso, em vez de no STF?
JB: O que está acontecendo é uma profusão de casos no Judiciário brasileiro. Dois deles chegaram ao Supremo e, justamente por não serem casos isolados, mas casos que representam um conjunto de processos que têm chegado ao Judiciário, foram tratados como uma tese de repercussão geral.
Você não pode decidir algo sobre um caso específico que depois também não se reflita em uma aplicação alinhada do Judiciário. Então, o Supremo fez o trabalho dele.
De fato, o Congresso, se tivesse atuado no sentido de aprovação de um marco regulatório, talvez tivesse evitado a necessidade de se trabalhar em uma nova tese de repercussão geral. Precisamos entender quais serão os movimentos do Congresso neste momento.