Em outubro de 2023, quando o Rio Itajaí-Açu deu sinais de que inundaria Blumenau, em plena Oktoberfest, o governador Jorginho Mello (PL), apoiado pelo então prefeito de Blumenau, Mário Hildebrandt (PSD), mesmo sob protestos e resistência do povo Xokleng, ordenou imediatamente o fechamento das comportas da barragem, em uma tentativa de evitar que a festa fosse cancelada, ainda que isso significasse comprometer as terras indígenas e outros municípios a oeste de Blumenau.
Porém, se há uma região deste País que deveria saber como lidar com os eventos socioambientais adversos, é o Vale do Itajaí, atual Vale Europeu, que tem a cidade de Blumenau como polo regional, conhecida pela Oktoberfest, festa criada em 1984 para alavancar a economia e comemorar a superação da população frente às duas grandes cheias do Rio Itajaí-Açu em 1983 e 1984.
Ainda que o sítio geográfico do Vale do Itajaí seja historicamente propenso a enchentes, a urbanização e a industrialização certamente contribuíram para o agravamento dessa situação. Nos seus 175 anos de história, Blumenau enfrentou dezenas de enchentes, além de enxurradas e desastres socioambientais. De um lado, a ausência de políticas habitacionais no fim do século XX levou parte significativa das camadas populares a ocupar os topos dos morros ou outras áreas que não interessavam ao capital imobiliário. De outro, alterações em índices construtivos e, consequentemente, a verticalização, favoreceram a permanência dos mais ricos nos bairros centrais, apesar das recorrentes enchentes que os afligem.
Esse cenário colocou em evidência a necessidade de políticas e investimentos públicos para mitigar os efeitos das grandes enchentes e desastres socioambientais em todo o Vale do Itajaí. Em 1992, foi inaugurada a barragem de José Boiteux, que, assim como as demais barragens da região, exerce influência direta sobre o nível do Rio Itajaí-Açu em Blumenau. Construída sobre o território do povo indígena Laklano Xokleng, a barragem trouxe impactos negativos, interferindo diretamente no modo de vida dos povos originários, culminando em perdas sociais, territoriais e culturais.
Em novembro de 2008, Blumenau enfrentou o pior desastre socioambiental de sua história, quando chuvas incessantes provocaram dezenas de deslizamentos de encostas, resultando em dezenas de mortes e em milhares de famílias desabrigadas e desalojadas. Muitas dessas famílias permaneceram quase quatro anos nos abrigos “provisórios” disponibilizados pela prefeitura.
A partir da organização popular, frente às respostas – e não respostas – das autoridades públicas locais com relação às necessidades apresentadas pelos atingidos, surge o Movimento dos Atingidos pelo Desastre (MAD). A falta de respostas resultou na ocupação do MAD em área pública e desocupada, muito próxima ao centro da cidade. Quando chegou, a resposta se deu com o programa Minha Casa, Minha Vida. No entanto, todos os conjuntos habitacionais Faixa 1 foram construídos distantes da região central — mais equipada — e das antigas moradias dos atingidos, acentuando a segregação socioespacial no município.
Decisões políticas e econômicas sempre privilegiam o capital em detrimento da população. Tanto em 2023 quanto em 2008, as camadas populares foram negligenciadas e suas áreas residenciais ainda permanecem ocultas pela topografia, favorecendo o Estado e o capital, reservando os bairros centrais, as melhores localizações, para aqueles que podem pagar.
Há de se considerar que, além de barragens, houve investimentos para mitigação e prevenção de desastres a nível local, como a construção de diques de contenção de enchentes – embora estes estejam concentrados próximos aos setores de alta renda – e um Sistema de Monitoramento e Alerta de Eventos Extremos de Blumenau, mais conhecido como ALERTABLU, inaugurado em 2014, que disponibiliza um aplicativo para telefones celulares permitindo o acesso à informação sobre o nível do rio Itajaí-Açu, a cota de enchente de cada rua e o risco de deslizamento de encostas.
Lamentavelmente, mesmo com toda a tecnologia aplicada em mapeamento, monitoramento e alerta, as áreas mapeadas como inadequadas à urbanização continuaram – e continuam – sendo ocupadas, e não há esforço nem interesse do poder público em promover alternativas frente a essa realidade. O que se observa é a perversa permissividade do Estado, que, ao fechar os olhos para estas ocupações, sentencia-as ao descaso e até mesmo à morte.
Todo esse processo de produção das desigualdades em Blumenau, que é histórico e ainda está em curso, conta também com um forte discurso ideológico, bastante enraizado: o da europeização do Vale do Itajaí, divulgado como um “pedacinho da Europa no Sul do Brasil” ou “Alemanha sem passaporte”.
Difunde-se, enganosamente e com sucesso, a ideia de que Blumenau não possui pobreza. De que as disputas pela terra urbanizada, a autoconstrução da moradia e a segregação socioespacial não fazem parte do dicionário da realidade da vida urbana de Blumenau. Até mesmo a arquitetura da cidade, em lugares como a Vila Germânica, onde ocorre a Oktoberfest, é importada da Alemanha do século XIX, ainda que replicada falsamente. Sim, quase a totalidade do enxaimel de Blumenau é fake, herança de políticas de isenção fiscal para o comércio local durante as décadas de 1980 e 1990. O que vemos em Blumenau e em todo o Vale do Itajaí é o olhar do colonizador ainda sendo transplantado para o do colonizado.
Em maio de 2024, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC) aprovou o projeto do então deputado estadual e atual prefeito de Blumenau, Egídio Ferrari (PL), que alterou o nome do Vale do Itajaí para Vale Europeu. Essa alteração na nomenclatura reforça o discurso ideológico da europeização e evidencia o caráter de exploração de uma herança cultural através das festas típicas, da culinária e dos pontos turísticos praticados por uma administração pública cujo principal objetivo é o fortalecimento do capital, ainda que isso signifique deixar populações inteiras debaixo d’água.
Se de um lado a alteração da denominação do Vale enaltece, mesmo que de maneira ultrapassada, a cultura do colonizador e fortalece a economia de alguns poucos privilegiados, de outro ela representa uma tentativa de apagamento do Rio Itajaí-Açu, visto como inimigo, como único causador das enchentes, desconsiderando as ações antrópicas e sua importância histórica para a formação de diversas cidades catarinenses. O que predomina é a lógica do lucro em detrimento da vida, sobretudo a das camadas populares. Foi o capitalismo, selvagem e predatório, que tomou as rédeas sobre o enfrentamento dos eventos socioambientais adversos em Blumenau, cidade estruturada a partir da negação da natureza.
A crise climática, consequência de ações antrópicas, não bate mais à porta, ela já entrou e se instalou no mundo todo. Essa visita, embora desagradável, não é inesperada, mas parece passar despercebida pelas administrações públicas do nosso País. É necessário que a prática da política urbana e habitacional se estenda às camadas populares, que investimentos mitigadores ocorram em toda a cidade, não apenas onde predominam as elites. As decisões políticas e econômicas precisam ter como pauta a justiça social e o direito à cidade e à moradia digna. O futuro das nossas cidades depende disso.